É uma das fundadoras e coordenadora da Academia dos Sonhos do Centro Social Paroquial dos Pousos (CSPP), em Leiria. Onde se inspirou?
Começou com a minha tese de mestrado sobre envelhecimento activo, que procurava perceber o que é que as pessoas, na fase final da sua vida, ainda desejam ter ao nível dos seus cuidados físicos, mentais e espirituais. E como é que poderíamos corresponder a esses desejos, estando as pessoas num registo institucional. Na minha tese inspirei-me na frase de uma empreendedora, Candy Chang: “antes de morrer, eu quero”. No CSPP investigo o que é que as pessoas ainda desejam ou querem e, com a equipa interveniente, coloco isso nos seus projectos de vida. Isso aconteceu há 13 anos. Mais tarde, integro a direcção da instituição e começo a trabalhar nesta área e a contagiar a equipa. É assim que surge a Academia dos Sonhos, que tem três pilares – sonhos reais, sonhos virtuais e sonhos de mestre -, todos com o objectivo de trabalhar o idadismo, ou seja, a tentativa de diminuição do preconceito da sociedade relativamente à idade.
Ainda há muito preconceito?
Muito. Cada vez menos, e ainda bem, mas ainda há muito preconceito relativamente à terceira e quarta idades.
Onde se nota mais?
Nota-se logo quando as pessoas passam à reforma. Há um sentimento generalista de auto-incapacidade. É um auto-preconceito. Depois, a própria sociedade olha para estas pessoas como potenciais incapazes a vários níveis. Mas é exactamente o contrário. Estamos a fazer caminho, mas ainda existe muito o idadismo, que é transversal a toda a sociedade. Quando o idoso é institucionalizado, o preconceito agrava-se.
Quantos sonhos já foram concretizados pela Academia?
Entre reais, virtuais (com recurso à tecnologia da realidade virtual) e de mestre (patilha de conhecimentos com jovens universitários e outros) já ultrapassámos os 250.
Houve algum que a tenha marcado de forma especial?
Claro que me marcou a visita ao Papa. Foi a partir daí que registámos o projecto e que criámos a marca. Mas os sonhos que possamos considerar pequenos têm igual importância aos que possamos entender como grandes. Possibilitar que uma senhora de 96 anos pudesse conduzir pela primeira vez – fê-lo com um carro adaptado e no aeródromo de Leiria – é tão importante como visitar o Papa, pelo menos para ela. Ou fazer os caminhos de Santiago, com um grupo dependente em cadeira de rodas, pelos percursos que os peregrinos fazem a pé.
O público-alvo forte da Academia dos Sonhos são os idosos. A capacidade de sonhar não tem idade?
Os sonhos devem acompanhar-nos até ao momento de fecharmos os olhos pela última vez. Mesmo as pessoas acamadas e já com pouca vitalidade não perdem esta capacidade. Em utentes com índices demenciais ou em fases delicadas, tentamos na mesma descobrir o que é que faz sentido para essa pessoa ou o que é que a poderia motivar. Nada é impossível à priori, mesmo fisicamente debilitados. Na Academia dos Sonhos chegamos aos idosos institucionalizados no CSPP e da comunidade, mas também àqueles que, no distrito, passam pelos cuidados paliativos. Queremos agora avançar com a iniciativa da prescrição social.
Como pensam operacionalizar essa valência?
Será um projecto-piloto no centro de saúde dos Pousos, já com o conhecimento do Hospital de Leiria. A ideia é sensibilizar os médicos de família que atendam idosos e que se encontram a passar por estados de depressão, ansiedade e/ou situações de solidão e de isolamento, para que prescrevam actividades da Academia dos Sonhos, em complemento à prescrição farmacológica. Entre as actividades a recomendar estão as disciplinas da universidade sénior, os projectos de voluntariado e os sonhos reais, virtuais e de mestre ou outros que possamos criar para melhorar a saúde física e mental dessas pessoas.
A ideia é que o idoso saia do consultório com a receita famarcológica e a receita social.
Exacto. O que se pretende é que as duas propostas em conjunto, melhorem o seu estado de saúde, físico e mental. Claro que fica à liberdade do doente aceitar ou não. O utente também não é obrigado a comprar os medicamentos.
Que impactos tem tido o projecto na instituição e nos idosos?
Com base na medição de impacto que fazemos, com validação académica, através da colaboração de uma investigadora do Politécnico de Leiria, medimos a felicidade subjectiva e a vitalidade, após a realização de cada sonho. O projecto é acompanhado por medições da sintomatologia depressiva do idoso e do índice de depressão. Nos cuidados paliativos, apenas se avalia o índice da dor. Os resultados têm sido muito simpáticos. Ao nível da vitalidade e da felicidade, o impacto tem sido sentido para além do momento. Em alguns beneficiários, os efeitos perduram, tanto no idoso como na família.
Se lhe fosse concedida a realização de um sonho, o que escolhia?
Gostava que a Academia dos Sonhos fosse tão conhecida e tão útil na vida das pessoas, que conseguíssemos vários investidores de impacto/financiadores, para que o projecto fosse itinerante, quase como um franchising, permitindo influenciar e contagiar o maior número possível de locais, de regiões e de países. E que um dia a política pública da saúde e da segurança social pudesse apoiar estas iniciativas nos cuidados às pessoas idosas.
A sua formação-base é em gestão de recursos humanos, mas trabalha, há anos, em inovação social. Como surgiu esta área no seu percurso?
Foi surgindo. Quando trabalho na gestão de recursos humanos, já estou a trabalhar com e para as pessoas dentro de uma empresa. Rapidamente, isso misturou-se com o social. Com a experiência na Portugal Inovação Social apaixonei-me por estas áreas dos cuidados, da inovação e do empreendedorismo, associado ao social.
O que mais a motiva?
Ser um agente activo para transformar, para melhor, o mundo de alguém ou de alguns. Esta é uma área que tem tido impactos muito positivos no País. A Portugal Inovação Social financiou cerca de 700 projectos. Fomos um laboratório deste tipo de financiamentos na União Europeia, que terá agora continuidade no Portugal 2030.
O que é um projecto de inovação social?
Deve começar por se definir um problema social que se quer mitigar. O empreendedor só deve aspirar resolver ou a atenuar um indicador de um problema social de um público-alvo específico. Exemplo: se pensarmos em crianças, criar um projeto para atenuar problemáticas associadas ao bullying, ao insucesso escolar, à obesidade infantil, etc. Temos de escolher um indicador, identificar causas e efeitos, analisando também o que a política pública já apoia, não havendo sobreposição de intervenções semelhantes. Escolhido o indicador, passa-se para a definição de um programa de acção.
Que requisitos deve ter este tipo de projectos?
Tem de ser diferente do que a política pública já está a executar ou a apoiar ou do que o privado já se encontra a executar em grande escala. As universidades seniores, por exemplo, já estão de tal forma implementadas ao nível da política pública local, que deixaram de ser inovação social. E ainda bem. É sinal que o modelo foi experimentado, resultou e foi replicado no território. Em inovação social o que se deseja é que os projectos deixem de ser inovadores. É sinal que contagiaram, que tiveram resultados positivos e que são úteis na vida das pessoas, melhorando uma série de indicadores pessoais, de saúde, sociais e ambientais. Por isso, é tão importante a avaliação de impacto, através de parcerias com a academia/entidades do ensino superior. Uma vez que esses projectos [de inovação] são experimentais, não é grave o empreendedor ou a sua equipa errar.
Porquê?
Porque estamos em registo de inovação. Durante a execução pode haver necessidade de se alterarem estratégias e isso não tira mérito ao projecto. Maria Manuel Leitão Marques, agora eurodeputada, que tutelou a área da inovação social, dizia muitas vezes aos empreendedores: “se erram pouco é porque estão a inovar pouco”.
Os projectos de inovação social não estão apenas relacionados com vulnerabilidade financeira?
Não. Qualquer um de nós, durante o nosso ciclo de vida, tem imensas vulnerabilidades e, portanto, qualquer um de nós pode ser um beneficiário de um projecto de inovação social. Todos podemos passar por processos de luto, ter filhos com insucesso escolar ou pais com demência, ficar desempregados ou sofrer de uma doença grave
Gestora apaixonadapor voluntariado
Nascida e criada em Vila Pouca de Aguiar, na região de Trás-os-Montes, apelidada de “reino maravilhoso”, por Miguel Torga, escritor que passou a apreciar há uns anos, Alexandra Neves sonhava, em criança, ser jornalista e psicóloga. Queria trabalhar em cenários de guerra ou de catástrofes, “para noticiar e, a seguir, apoiar as vítimas”. Acabou por se formar em Gestão de Recursos Humanos no Instituto Politécnico de Leiria. Tem ainda pós-graduações em gestão avançada, em gerontologia, em luto e perdas e mestrado em envelhecimento activo, área onde está a iniciar um doutoramento. Em termos profissionais, foi, até há pouco tempo, representante regional do Centro do Programa Portugal Inovação Social, tendo, recentemente, assumido a coordenação do Programa de Revitalização do Pinhal Interior. É fundadora e coordenadora da Academia dos Sonhos do Centro Social Paroquial dos Pousos, em Leiria, um dos vários projectos de voluntariado que tem abraçado. Desde há 17 anos, é família de acolhimento de cães-guia, um projecto que lhe provoca “grande felicidade”. Ri “por tudo e por quase nada” e diz que o seu trabalho profissional, no voluntariado e nas aulas que dá e que recebe é “um pouco jornalista, um pouco psicóloga, um pouco missionária e um pouco gestora”, de várias vidas, incluindo a própria, sempre em modo de pupila.