Comemora-se hoje o Dia Mundial da Doença de Parkinson. Qual a importância de se assinalar esse dia?
Serve de pretexto para alguma reflexão à volta da doença, das suas especificidades e implicações em termos individuais e do impacto social que a doença tem. Estamos a falar de uma doença com um impacto muito marcado de incapacidade e, portanto, é muito importante haver respostas para os doentes e suas famílias.
Qual a causa da doença de Parkinson?
A causa da doença de Parkinson é desconhecida. Genericamente é uma doença que resulta de uma interacção complexa entre um conjunto de factores genéticos e ambienciais. Há factores genéticos envolvidos, alguns que podem ter um efeito causal directo em relação à doença e outros que são factores genéticos que funcionam essencialmente como factores de risco e cuja expressão vai ser condicionada por alguns factores ambienciais, que também não estão completamente identificados. Também aí existem várias teorias. Fala-se, por exemplo, na exposição a pesticidas e herbicidas. O risco de doença parece ser maior em contextos em que as pessoas vivam em ambientes rurais ou que bebam água não canalizada. Há aqui um mediador que é um constituinte de vários destes pesticidas e herbicidas que é a metil tetrahidropiridina, (mptp). Houve estudos sobre a prevalência da doença de Parkinson em jogadores profissionais de futebol, por causa do contacto diário com o relvado. Fala-se nestas questões, mas não há uma causa para a doença. Mais recentemente, foi possível demonstrar que em ambiente laboratorial, a doença de Parkinson pode ser transmitida. Ou seja, teria um comportamento para-infeccioso. Aqui vão-se buscar teorias relacionadas com os modelos das doenças por priões ou a famosa doença das vacas loucas.
É possível travar a progressão da doença?
Não. A luta tem sido fundamental e o próximo passo no tratamento vai ser uma possível geração de medicamentos que possam modificar a história natural da doença, ou seja, intervir no comportamento da doença ao longo do tempo. O tipo de abordagem e aquilo que conseguimos fazer hoje é exclusivamente na vertente sintomática. E, curiosamente, os dois primeiros medicamentos que apareceram para tratar a doença de Parkinson continuam a ser hoje os dois medicamentos mais eficazes.
Têm aumentado os casos?
Diz-se que em Portugal haverá entre 18 e 20 mil doentes de Parkinson e que em cada ano aparecem mais 1.500 a 2.000 novos casos. Temos de ter a noção de que a doença de Parkinson está associada ao envelhecimento. Sendo uma doença da idade, é evidente que pode haver alguma variação com o envelhecimento da população. Mas dizer que há propriamente um aumento do número de casos, não.
Quais são as doenças mais comuns que afectam o sistema nervoso central?
A neurologia é uma especialidade que abrange um grupo muito grande de doenças. Aliás, há dados da Organização Mundial de Saúde que dizem que as doenças neurológicas são a principal causa de incapacidade e de morte a nível mundial. Por exemplo, sabemos que a principal causa de incapacidade laboral é uma doença neurológica: a enxaqueca. Os neurologistas lidam com as cefaleias (dores de cabeça), epilepsias, com um conjunto de doenças inflamatórias do sistema nervoso central, das quais, evidentemente, a principal é a esclerose múltipla e que medicaé uma doença com um grande impacto, até porque aparece em jovens adultos. Leiria é uma das zonas com uma alta prevalência de esclerose múltipla. Depois existe um conjunto das doenças do movimento em que o Parkinson é talvez a principal e as demências. O Alzheimer é uma delas, embora muitas vezes as pessoas façam a ligação directa entre demência e Alzheimer. O Alzheimer é só um dos subtipos de demência. A neurologia tem depois ligações a muitas outras áreas, como o sono, a dor e os acidentes vasculares cerebrais.
Porque há em Leiria uma alta prevalência da esclerose múltipla?
Se vamos falar de doenças de causa desconhecida, então citar a esclerose múltipla torna-se muito giro, porque, não se sabe porquê, mas desde sempre que há uma repartição geográfica da doença. Comecei a fazer consultas em Leiria em 1996 e a experiência era quase assustadora. Na altura trabalhava no hospital dos Covões e não havia semana em que não levasse dois doentes para confirmar o diagnóstico. Não há uma explicação linear para isso. Uma das teorias que procuram explicar a fisiopatologia da esclerose múltipla tem a ver com a falta de vitamina D, sobretudo na infância. O facto de Leiria ser uma zona muito industrial e as pessoas trabalharem em ambientes fechados talvez possa ter alguma coisa a ver com isso. Mas, quando analisamos ao pormenor percebemos que a maior parte dessas pessoas acabavam o dia na sua horta. Mas, os dados sugerem que realmente Leiria será uma zona de alta prevalência.
Qual o ponto de situação do tratamento para a esclerose múltipla?
Esta é talvez uma das áreas mais interessantes da neurologia, porque o avanço em termos de capacidade terapêutica tem sido uma coisa absolutamente incrível. Em 1990, o que podíamos fazer pelos doentes era muito pouco. Hoje há uma panóplia de medicamentos que permitem fazer uma gestão muito eficaz desta doença. E 90% dos doentes de esclerose múltipla têm níveis de incapacidade mínimos e conseguem fazer uma vida perfeitamente normal, ao contrário do que se passava há 20 ou 25 anos. Já é possível retardar a evolução da doença? Sim. É evidente que é uma área imensamente exigente e estamos a falar de medicamentos que são extremamente eficazes, mas com um perfil de risco e de exigência na monitorização do tratamento muito alto. Estamos a falar de 15 ou 16 medicamentos, cada um com exigências muito próprias. Para a equipa que trabalha nesta área, a gestão do risco/benefício destes medicamentos é uma pressão gigantesca. O resultado do lado do doente é muito bom e tem havido uma evolução fantástica nesta área.
Qual foi a importância da criação das Vias Verdes para o AVC?
Muito importante. Lembro-me muito bem da primeira fibrinólise que fiz num doente, um rapaz com 22 anos, que fez um AVC. Aquela sensação de ao fim de 20 minutos o rapaz acordar e começar a mexer o braço foi absolutamente incrível. A Via Verde nasce a reboque das unidades de AVC, que criaram uma série de dinâmicas diferentes. Em 1980, 80% dos AVC eram de causa desconhecida. Hoje conseguimos atribuir uma etiologia à quase totalidade dos AVC, o que nos permite ser muito mais eficazes na prevenção secundária. E ajudou a salvar muitas vidas? Tenho a certeza que sim, sobretudo função. Há estudos que dizem que o principal benefício das vias verdes do AVC não tem a ver com o número de mortes que se poupam, mas essencialmente com a função que é preservada.
Numa sociedade envelhecida, as demências são uma inevitabilidade?
Quando comecei a trabalhar em neurologia havia dados perfeitamente catastróficos sobre aquilo que se antecipava que fosse a prevalência das demências daí a uns anos. Dentro das doenças neurológicas degenerativas, as demências são as mais comuns, nomeadamente o Alzheimer. Mas houve dois grandes factores que contribuíram para que talvez as coisas não tenham corrido tão mal como se imaginava. Uma é o facto de termos uma população que pode ser absolutamente analfabeta, mas que vigia atentamente a sua tensão arterial e as suas glicemias, ou seja, os factores de risco vascular. Depois, a maneira como a nossa sociedade evoluiu em que temos pessoas com 80 anos e semi-analfabetas com o seu tablet e a sua conta do Facebook. Há toda uma série de estratégias que envolvem processos de estimulação cognitiva e que também terão um efeito muito grande. A principal prevenção da demência é a reserva e a estimulação cognitiva. Agora, é uma doença do envelhecimento e, claro, quando temos uma população envelhecida, temos mais casos demência.
E é possível prevenir Parkinson ou Alzheimer?
A resposta formalmente é não. Quando não sabemos quais são as causas, a nossa possibilidade de intervir também é limitada.
Há exames que possam detectar algumas doenças neurodegenerativas?
Estamos a falar de muitas coisas diferentes. O diagnóstico de Parkinson ou do Alzheimer é eminentemente clínico. Fazemos TAC ou ressonâncias, essencialmente para excluir que haja outra patologia que mimetize os sintomas. Na esclerose múltipla é um diagnóstico de exclusão, mas há muitas análises e exames que têm de ser feitos quer no momento do diagnóstico, quer depois no seguimento do doente, devido aos potenciais riscos associados aos tratamentos.
É possível chegarmos a uma cura?
Na área da esclerose múltipla já temos qualquer coisa parecida com uma cura. Há medicamentos de reconstituição imunitária que utilizamos em tratamentos muito circunscritos no tempo e há dados que dizem que uma percentagem grande desses doentes, ao fim de 10 anos, não tiveram mais nenhuma manifestação de doença e não precisaram de ser tratados. Claro que não são todos os doentes nem as formas mais agressivas da doença. Para mim, que conhecia outra face da esclerose múltipla, isto é a coisa mais próxima que eu conheço de uma cura.
No Parkinson e no Alzheimer ainda estamos longe de algo assim?
Estamos. A abordagem é exclusivamente sintomática. Limitamo-nos a fazer a gestão dos sintomas da doença. Não temos nenhuma capacidade de intervir no seu percurso.
Há alguma destas doenças que o preocupe mais?
É evidente que a preocupação tem fundamentalmente a ver com a relação entre algumas destas doenças e o envelhecimento. Depois estas pessoas não têm só Parkinson e Alzheimer, mas todas as outras doenças associadas ao envelhecimento. Neste momento, conseguimos que as pessoas vivam muito tempo, mas a questão é com que qualidade de vida. Não vamos falar de eutanásia, mas há muitas situações em que temos a noção que estamos a lutar bravamente para manter as pessoas vivas, mas o que isso traz em termos de qualidade de vida? Isso evidentemente que me preocupa. Por vários motivos, pelas pessoas, evidentemente, mas também pelo peso que representa para os serviços de saúde e para o País como um todo. Começamos a ter problemas muito graves em termos do que é que vai ser a sustentabilidade económica dos serviços de saúde, com gerações de medicamentos cada vez mais caros. Antigamente, quando tinham uma doença as pessoas sobreviviam ou morriam. Agora as doenças tornaram- se crónicas, como o cancro e a sida. Quem é que vai pagar isto e durante quanto tempo?
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