Em Leiria, no ano de 1925, o professor e historiador José Saraiva debruça-se sobre a produção mais famosa da pintura portuguesa no Renascimento e publica o livro Os Painéis do Infante Santo, em que identifica D. Fernando como figura central do políptico, contra a tese dominante que vê em destaque o padroeiro de Lisboa, São Vicente.
A polémica dura até hoje. Painéis de São Vicente (conforme a leitura de José de Figueiredo, em 1910) ou Painéis do Infante Santo. E desdobra-se em múltiplas dimensões, incluindo o lugar de destino da obra, datada do século XV e atribuída a Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V.
No debate que atravessa todo o século XX e se mantém aceso, Almada Negreiros (1893-1970) é protagonista. O que o Mosteiro da Batalha agora oferece, numa exposição inaugurada no último domingo, dia 20, é a oportunidade de observar ao vivo e em tamanho real, pela primeira vez, a visão de Almada Negreiros para os Painéis, no cenário que o artista para eles imaginou há 62 anos.
A exposição assinala meio século desde a morte de Almada Negreiros em articulação com outra, sobre o mesmo tema, patente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, até 10 de Janeiro.
Uma proposta radical
Após décadas de pesquisa, quase obsessão, Almada Negreiros aceita o raciocínio de José Saraiva (acerca da figura duplicada que segura o livro aberto e a vara dourada) e apresenta os Painéis como parte de um retábulo constituído por 15 tábuas em que inclui o Ecce Homo (o Cristo das Portas Verdes) e outras pinturas primitivas. Contextualiza o retábulo na parede norte da Capela do Fundador, espaço do Mosteiro da Batalha onde se encontram os túmulos do Infante Santo, dos outros elementos da Ínclita Geração e dos monarcas D. João I e D. Filipa de Lencastre. E afasta-se da generalidade dos especialistas, para quem os Painéis atribuídos a Nuno Gonçalves estariam, originalmente, integrados na Sé de Lisboa.
[LER_MAIS]
A abordagem de Almada Negreiros – radical, ousada, original – “foi imediatamente recusada e de um modo geral continua a sê-lo”, reconhece Simão Palmeirim, o comissário da exposição Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha – 15 Pinturas Primitivas num Retábulo Imaginado.
A mensagem dos Painéis, na explicação de José de Figueiredo, está relacionada com a adoração ao padroeiro de Lisboa. Na versão de José Saraiva, transforma-se em funeral simbólico do Infante Santo, que morreu cativo em Fez, entregue ao inimigo, no decurso de uma campanha militar mal sucedida.
Segundo Simão Palmeirim, o ângulo de investigação de Almada Negreiros “procura fundamentar” a prática artística “exclusivamente pela geometria”, o que “não é comum”.
Almada começa por se aperceber das linhas de fuga nos ladrilhos e sugere que os dois trípticos são na realidade um conjunto, o que está na origem da disposição dos Painéis como políptico, desde 1940, e, também, da desavença com José de Bragança, que envolve relatos de confronto físico, pela autoria da descoberta.
Com o tempo, Almada “passa a ver a geometria como ferramenta para aprofundar o conhecimento sobre a arte”. Procura a harmonia, a proporção e a regra não só na pintura como na escultura ou na poesia.
Ao longo dos anos, no caso dos Painéis, as análises geométricas tornaram-se cada vez mais complexas, até ao resultado final, o retábulo de 15 tábuas destinado à parede norte da Capela do Fundador no Mosteiro da Batalha. “Uma proposta arriscadíssima”, reconhece Simão Palmeirim, “mas do maior interesse independentemente da validade histórica”.
Objectos inéditos
O foco da exposição está “nos materiais plásticos que Almada produziu” no processo de pesquisa, explica Simão Palmeirim, muitos deles, pela “complexidade formal” e “dedicação” do artista, são objectos “iminentemente de usufruto estético” e com “natureza de obra de arte”.
Além da reprodução em tamanho real do retábulo idealizado por Almada Negreiros – uma instalação com mais de 10 metros de altura – a exposição na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha reúne desenhos, maquetas, fotografias e cadernos. Estudos em grande parte inéditos, no sentido em que são mostrados ao público pela primeira vez.
Em 2020, além dos 50 anos desde a morte de um dos principais nomes do modernismo português, na primeira vaga do movimento ligado à revista Orpheu, criador multidiscipliar das artes plásticas à escrita, há mais duas efemérides que justificam a homenagem: 110 anos da exibição dos Painéis na Academia Real de Belas Artes de Lisboa após restauro por Luciano Freire e 60 anos da divulgação por Almada Negreiros da montagem fotográfica inserida no estudo para o retábulo.
Passam também 60 anos da publicação, no Diário de Notícias, entre 9 de Junho e 28 de Julho, de oito entrevistas ao jornalista António Valdemar em que Almada detalha o pensamento e caminho pessoal relacionado com os Painéis.
A investigação sobre Almada Negreiros levada a cabo nos últimos anos por Simão Palmeirim e Pedro Freitas, pelo olhar da pintura, da geometria e da matemática, abarca peças provenientes do espólio do artista que se encontra à guarda das netas, Rita e Catarina Almada Negreiros.
Para o director do Mosteiro da Batalha, Joaquim Ruivo, a exposição, que estava a ser preparada há dois anos, oferece “a dimensão de um Almada desconhecido” e uma interpretação “muito mais completa do pensamento e da obra” do artista em torno do “Santo Graal” da pintura portuguesa. “Se o Almada estivesse cá, até a sua neta me confirmou isso, estaria felicíssimo ao ver a forma como reconstituímos a sua tese”.
Segundo Joaquim Ruivo, fica também evidente que o Almada “modernista”, e “porta-voz da geração de ruptura” na arte portuguesa, “integra o passado numa dimensão extraordinária”, sem o rejeitar.
Palestras e livro
Os Painéis de Nuno Gonçalves, que actualmente se encontram em restauro, mas patentes ao público, no Museu Nacional de Arte Antiga, foram redescobertos em 1882 no Mosteiro de São Vicente de Fora. Constituem um retrato colectivo com 58 personagens da corte e de vários estratos da sociedade portuguesa da época, cuja mensagem, segundo José de Figueiredo, se centra no culto de São Vicente enquanto figura inspiradora das conquistas marroquinas encaradas como cruzada contra os infiéis. Uma peça central da história da arte em Portugal que alguns críticos situam também entre as obras singulares da pintura europeia no período em questão.
A autoria, a nacionalidade do autor, o tema central dos Painéis, a identificação das figuras representadas, o restauro de Luciano Freire e a disposição em políptico motivaram sucessivas polémicas com correspondência trocada nos jornais, querelas científicas e até um suicídio.
A exposição Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha – 15 Pinturas Primitivas num Retábulo Imaginado ficará patente até Dezembro de 2021. Ao longo do próximo ano, estão previstas palestras e a edição de um livro da autoria dos investigadores Simão Palmeirim e Pedro Freitas.