Em que medida é que a tragédia dos fogos é reflexo da falta de ordenamento do território?
Quando somos confrontados com situações de elevado poder de dramaticidade, queremos pacificar-nos, encontrando bodes expiatórios. Nesta questão dos incêndios, há uma diversidade de razões que são ventiladas.
Falamos de floresta sem sabermos muito bem ao que nos referimos. Pode ir de matagais, até à floresta industrial, passando por uma invasão de infestantes. No que respeita à produção de árvores para madeira, um dos dramas de fundo é a perda de preço. Portugal especializou-se em madeiras de preço muito baixo: o eucalipto e o pinheiro-bravo.
O preço do eucalipto tem vindo a descer significativamente, nomeadamente com a sua expansão em países tropicais e de clima húmido, como o Brasil, onde a árvore se desenvolve em períodos ainda mais curtos do que em Portugal, e com factores de produção muito baixos, como Moçambique.
Como o País foi intensamente agricultado durante séculos, a floresta ficou nos piores terrenos. Estes factores somados fazem da economia do eucalipto uma economia em falência. Nessas condições, não há retorno do investimento que se faça na limpeza ou em novas plantações, que devem ser feitas após o terceiro corte. Se não há retorno, não há investimento.
A acrescentar a isso, há a desruralização de que fala no seu livro A vida no Campo.
Este é um conceito-chave. Portugal foi o último país agrícola da Europa. Hoje, dois terços do País estão em regressão. Assistimos à deserção, o não estar ninguém, deixando os território por sua conta e risco.
O próprio ordenamento é uma mitologia tecnocrata do pós-guerra, que acha que algures há uma entidade que olha para o território como se fosse um jogo de legos e que vai mudando as peças. As dinâmicas territoriais são ditadas pelas dinâmicas sociais.
Os montes que os meus pais me deixaram têm um valor puramente simbólico. Até me podia transformar num empresário florestal, se me comprassem os pinheiros. Podia mesmo reinvestir esse dinheiro, se soubesse que, quando fosse o próximo corte, iria ter retorno. O problema é que o mecanismo económico que viabiliza esse comportamento não existe? Diz-se também que se devia desmatar à volta das povoações. Curiosa afirmação.
Porquê?
Porque isso é partir do princípio que o País está todo dividido em povoações e não está. Vou de Leiria até Viana do Castelo em urbanização contínua ao longo das estradas, num mosaico territorial extremamente complexo, que alterna o edificado com o não edificado.
O topónimo aldeia é uma palavra de origem árabe que designa povoamento, aglomerado. Isto existe em Trás-os-Montes e no Alentejo, mas não existe em boa parte do território nacional. Como é que aplico esse conceito de protecção aos aglomerados, criando um airbag à volta, se esse povoamento não existe? Espero que haja bom senso para que o conjunto de medidas que se anuncia tenha flexibilidade de criar respostas ao nível local.
Que medidas não podem deixar de ser tomadas?
Se a política for a de substituir floresta que ardeu por nova floresta, é necessário perceber como está o mercado dos derivados de madeira. Estranho que, no meio de toda a discussão, não se fale do preço da madeira e da pasta de papel.
Uma vez, em conversa com um dos maiores produtores de pellets em Portugal confrontei-o com o mapa de incêndios em Famalicão, onde só havia fogos num determinado sector do concelho. Ele explicou-me que numa parte os solos eram de granito e na outra de xisto.
Nos terrenos de matriz de granito há grandes declives e afloramentos rochosos. Aí, existem eucaliptos e algum pinheiro-bravo porque durante a ditadura houve uma campanha maciça, estimulada pelo Plano Marshall, que achava que Portugal ia ser o maior produtor de pasta de papel da Europa, e porque havia preço.
Até aí, esses terrenos eram considerados marginais?
Exacto. Eram terrenos marginais que serviam para mato e pastoreio e que foram ocupados com eucalipto. As circunstâncias mudaram. Mecanizou- se a indústria da madeira e hoje não é rentável retirar eucaliptos ou pinheiros desses terrenos.
Nos terrenos de xisto, o solo é mole, mas nunca foi agricultado porque antigamente não havia tecnologia para isso. Hoje já há. A mesma máquina faz a limpeza, revolve a terra e aduba. Aqui, o preço da produção corresponde ao que é expectável. Era importante que se introduzisse 'economês' no discurso sobre a floresta e os incêndios.
Ainda faz sentido falarmos de ruralidade em Portugal?
Não, de todo. A palavra rural significava, pelo menos, três coisas em simultâneo: que a economia do rural é a agricultura, maioritariamente de escala familiar e para auto-consumo, e que tem associada a cultura camponesa, com os agriculturas a funcionarem como jardineiros da paisagem.
Hoje, o PIB nacional relacionado com a agricultura estará nos 4%. Não podemos entender ruralidade sem agricultura e sem a cultura camponesa, que desapareceu. Há depois aquela questão esotérica de as estatísticas considerarem o rural em função da densidade demográfica. Não tendo, sob o ponto de vista cultural e económico, ruralidade chamo rural ao território por critérios estatísticos cegos de densidade demográfica. O adjectivo rural perdeu sentido.
[LER_MAIS] Como vê concursos como o 7 Maravilhas Aldeias e o restauro de aldeias típicas?
Tenho um certo ódio a esses temas, porque a aldeia considerada mais típica de Portugal fazia parte da propaganda salazarista e uma boa parte da intoxicação ideológica do tempo da ditadura mitificou a ruralidade. Irrita- me muito que, mesmo sem intenção, se repitam hoje as mesmas palavras e as mesmas imagens, mas interessa-me saber para que servem hoje essas palavras. Esse interesse estende- se ao urbano.
Acompanhei a transformação de Óbidos numa Disneylândia, para perceber como é que uma ideia de urbanidade, tendo como modelo uma vila antiga, se transformava em qualquer coisa que podia ser um modelo, quando, no final de contas, era apenas um negócio, desde o chocolate até aos eventos com casinhas de anões.
Óbidos é o primeiro centro histórico a ter programação e bilheteira para o seu programa de eventos. Isto não tem nada que ver com o que, é a urbanidade quotidiana. Chegamos a um ponto em que dividimos o mundo em centros históricos e aldeias típicas, para ocupar a velha dicotomia entre rural e urbano.
O que pensa da transformação que Óbidos sofreu?
A construção da auto-estrada criou condições para essa mudança, porque permitiu colocar um mercado pontencial de centenas de milhares ou até de milhões de turistas a minutos de distância. Depois, aproveitou a corrente de mistificação dos centros históricos, que hoje se transformaram no lugar dos eventos.
Essa é uma boa ou uma má transformação?
Depende das circunstâncias. Se um município põe todo o potencial de investimento público no centro histórico e não investe no resto, digo que é má. Se só as questões do centro histórico ocupam as discussões dos problemas desse território, também direi mal.
Confesso que, estou enjoado de centros históricos. Estão a ficar todos iguais, com as floreiras penduradas nas varandas, com arte urbana e escultura. Começa a ser tanto entupimento, quer de espaço quer de programação, que já não suporto. O urbano é um mosaico de coisas.
O centro histórico é um lado especial do mosaico urbano que, por várias razões, atingiu o estatuto de menino mimado, a quem são dadas todas as atenções, que é super- vigiado, criando a sensação de que se lhe acontece alguma coisa será um desastre.
No turismo "falta uma política de Robin dos Bosques"
A euforia que se vive hoje em torno do turismo em cidades como Lisboa e Porto, e a uma escala menor, em Coimbra e Braga, é uma oportunidade ou pode trazer problemas?
Prefiro ver isso como uma oportunidade. A fileira económica relacionada com o turismo é imensa. Mas, se pensarmos nos grandes números e fizermos a cartografia do turismo, percebemos que a atractividade turística está acantonada em determinados espaços.
Até há pouco tempo, falava-se muito na ruína e no despovoamento dos centros históricos. Pedia-se um processo social que trouxesse vida a essas zonas. Ontem, estava a morrer, hoje está cheio de mais.
A única forma de resolver esta contradição é com dados concretos (tipo de procura turística, salários praticados pelo sector e empregos gerados) e não com ideias genéricas sobre enchentes de turistas ou tendências inflacionárias do imobiliário. Nesta discussão, o tema central é, quase sempre, o crucificar os turistas. Turista não é uma profissão, é uma condição.
E todos gostamos de o ser e, quando o somos, não pensamos que estamos a contribuir para a inflação de preços.
Exacto. A palavra turista foi inventada no século XIX por Stendhal, em Memórias de um turista, para designar os meninos da aristocracia e da alta burguesia europeia que, antes de assumirem o estatuto de adultos, iam passear pela Europa.
A pré-história do turismo está relacionada com estratos sociais favorecidos e com algo que era considerado um valor cultural da máxima importância e um factor importantíssimo para a educação dos jovens. Mas era só para quem tinha dinheiro. Agora o turismo democrazitou- se.
O processo foi muito rápido e exige que sejam tomadas medidas. Por exemplo, em termos de distribuição de rendimentos falta uma política de Robin dos Bosques, ou seja, ir buscar dinheiro onde ele entra, como às diárias dos hotéis, com a aplicação de uma taxa turística, fazendo-a reverter a favor de zonas mais desfavorecidas e dos investimentos nas infra-estruturas urbanas.
O que lhe vem à mente quando se fala de Leiria?
O Pinhal de Leiria e o estádio. Vem- -me também à ideia o facto de ser um concelho que, do ponto de vista económico, é bastante diverso, com vários pontos fortes, não estando dependente de uma só actividade.
Leiria é um caso de urbanização extensiva, com aglomerados e povoamentos distribuídos em linha pelo território, todo ele percorrido por uma malha densíssima de vias de comunicação, desde a 'Rua da Estrada', que é a EN1, até à imensa rede de estradas secundárias. Falou do estádio.
O que pensa da intenção da Câmara de, ao lado do estádio, construir um pavilhão multiusos, com uma área de implantação de 18 mil metros quadrados?
É melhor não. Esse tipo de investimentos já não puxa carroça. Era interessante lançar às escolas de arquitectura concursos de ideias sobre o que pode ser um estádio. Haverá soluções que tirem partido do layout, pensando outras funcionalidades. Este não é um problema exclusivo dos estádios.
Há uma série de equipamentos resultantes da primeira leva de fundos comunitários, como escolas, centros culturais, bibliotecas e pavilhões gimnodesportivos, que, por razões várias, perderam funcionalidades e clientela.
A transição demográfica foi rapidíssima, não tendo sido acompanhada pela mudança em termos da rede de equipamentos. Há uma série de equipamentos, desde os grandes porta-aviões, que são os estádios, até outros mais pequenos, que precisam de um refresh. O desafio é refazer ou re-arquitecturar os equipamentos que temos e não investir em novos.