No próximo dia 29, assinalam-se 15 anos sobre a inauguração do Polis, em Leiria. Passado este tempo, como é que a ‘menina Polis’ olha para o projecto?
Acho ternurenta a expressão ‘menina Polis’. Sinto-me nova (risos). Foi um baptismo jornalístico do Notícias de Leiria e do António José Laranjeira. Faz-me voltar aos tempos em que o Polis começou a nascer, ainda como projecto Sistema Rio, que se iniciou na Câmara de Leiria e que juntava muita gente.
Como é que entrou no ‘barco’?
Conclui a licenciatura e tinha de fazer estágio. Concorri às Câmaras de Lisboa e de Leiria. Em conversa com o director do Departamento de Urbanismo do Município de Leiria, o arquitecto António Moreira de Figueiredo, este perguntou-me o que é que eu gostava de fazer em Leiria. Respondi que gostava de trabalhar as margens do rio. Usava muito a Rodoviária e nessas incursões fui despertando para o facto de não só o edifício, mas até a cidade, estarem de costas voltadas para o rio. Achava importante desenvolver a ideia de que o rio era importante como elemento natural de ligação à cidade. Tive a sorte de haver já uma equipa constituída [na câmara] para fazer esse trabalho, mas sem tempo para tal. Acabei por ser um peão que operacionalizou e desenvolveu o projecto. Quando veio o programa Polis, fizemos a adaptação ao plano estratégico traçado pelo Governo.
Olhando para o impacto que o Polis teve na vida das pessoas, qual a principal lição a tirar?
Fazer cidade é sempre um processo. Olhando para trás, só vejo pontos positivos. O Polis foi [LER_MAIS]o despertador da consciência para a importância do rio. A cidade funcionava quase como se o Lis só tivesse uma margem. Vivia entre os morros do Castelo, da Senhora da Encarnação e de São Miguel. A vida urbana estava confinada a essa área. Não consigo imaginar agora Leiria sem o Polis. Fizeram-se ligações entre as margens, criaram-se espaços verdes ao longo do rio e trataram-se os que já existiam. O Polis encurtou distâncias e respondeu a necessidades das pessoas, que talvez ainda não tivessem essa percepção, mas que passaram a ter. Foi feito a pensar em todos, nos ciclistas, nos caminhantes, nos ‘esplanadistas’, naqueles que correm. Há uma grande miscigenação das funções no Polis.
Se pudesse, o que mudava?
Havia duas coisas que me faziam confusão, mas que resolvi com o tempo. Uma era o facto de o percurso não ter o mesmo material em toda a sua extensão, por ter sido feito por fases, cada uma com a sua própria materialidade. Havia uma continuidade, mas também uma identidade própria em cada troço. Hoje percebo que faz sentido que assim seja. O rio encanado na zona da Fonte Quente e do ‘Parque do Avião’ não é igual àquele que existe nas traseiras dos bombeiros, por exemplo. Em relação ao mobiliário urbano, a maior parte foi produzida em Portugal, mas no Jardim Luís de Camões optou-se por bancos e papeleiras vindas dos EUA. Não me pareceu bem, mas a verdade é que hoje continuam a funcionar perfeitamente e quase sem manutenção. Havia soluções materiais que podiam ter sido diferentes, mas o mais importante foi conseguido: a criação de equipamentos que não existiam, a ligação entre margens e a adesão das pessoas ao Polis, que foi total. Mas, é normal que agora surjam outros desafios e que as pessoas tenham novas exigências.
Foi muito crítica da pavimentação feita no Polis no âmbito da recente requalificação do troço entre São Romão e a Ponte Hintze Ribeiro. A esta distância, como olha para a intervenção?
Continuo a pensar o mesmo e a não gostar da artificialização de um espaço que é totalmente natural. Mas, se quem o usa está satisfeito… Li muitas opiniões e percebi que há muitas pessoas que não querem sujar as sapatilhas e sentem-se melhor no piso como está. E os projectos têm de ser feitos para as pessoas, sabendo antecipar as suas necessidades. As pessoas não tinham tido a percepção da importância do rio se não se tivéssemos olhado para o voltar de costas ao Lis que existia e que ainda se nota um pouco. O rio era pleno esgoto. Só ganhou importância quando começámos a atravessá-lo e a dar-lhe outra cor e outra imagem. As necessidades também se criam. E depois as pessoas querem mais e reclamam novos projectos.
Qual o seu canto preferido do Polis?
Pergunta difícil, porque há identidades diferentes no mesmo percurso. Habituei-me a gostar da relação da Praça Rodrigues Lobo com o rio e da adaptação que esse espaço foi tendo. A intervenção feita no âmbito do Polis nessa zona, incluindo a área em frente ao Banco de Portugal e o Jardim Luís de Camões, foi como se tivéssemos estendido o postal de Leiria do Castelo até ao rio. Depois, há o açude e a zona de Santo Agostinho, que me transporta até ao tempo dos frades agostinianos. Não existe lá nenhuma agricultura, mas consigo imaginar-me nesse tempo.
A câmara já anunciou a intenção de estender o Polis da nascente à foz. Que novos desafios se colocam a essa expansão?
Não podemos pensar em estender um percurso, seja o Polis ou outra qualquer intervenção urbana, sem pôr em equação questões como as alterações climáticas, quer numa perspectiva de mitigação e de descarbonização, quer de adaptação, criando espaços que possam ser fruídos, mas preparados para eventos extremos, como inundações, ondas de calor e incêndios. As árvores e os espaços verdes são um elemento fundamental no combate às alterações climáticas. Ao pensarmos em novos espaços, temos também de colocar em equação a saúde, nomeadamente, o bem-estar mental. Está provado que a exposição a espaços verdes baixa a frequência cardíaca, reduz a incidência de AVC e minimiza problemas como asma, diabetes e doenças coronárias. Um outro desafio está relacionado com a multifuncionalidade e adaptabilidade que estes espaços têm de ter.
O que quer dizer com isso?
Passámos o início deste século a desenhar espaço urbano. Agora, talvez precisemos de desenhar menos, ou seja, não condicionar tanto e trabalhar mais com elementos amovíveis, que permitam criar espaços mais multi-funcionais e mais adaptáveis, que sejam uma coisa agora e outra mais logo. Podemos ter um espaço com marcações para jogar basquetebol, mas que também pode funcionar como mercado, com bancas amovíeis, e acolher concertos. Aí, os nossos agentes culturais dão cartas. Têm essa capacidade de se adaptar aos espaços, mas estes também têm de ser pensados neles. Além das alterações climáticas e da multificionalidade dos espaços, há uma outra premissa a ter em conta na futura expansão do Polis.
Qual?
A intermunicipalidade e a articulação, neste caso, com a Câmara da Marinha Grande. Temos já uma rede de municípios montada para a área da cultura, baseada neste princípio, e que não se pode perder. Falo da Rede Cultura 2027, que fundou na região esta ideia de internacionalidade, do trabalho comum. Isso é um princípio válido para a cultura, para o Polis ou até para criar um transporte colectivo eléctrico entre Leiria e Marinha Grande.
Faz falta um metro de superfície a ligar as duas cidades?
Um transporte como um metro de superfície, com viagens frequentes, é absolutamente estruturante para os dois concelhos. L eiria e Marinha Grande estão unidas pelo pioneirismo empresarial, mas também por esta interconexão de as pessoas viverem num sítio e trabalharem no outro, com movimentos pendulares diários.
Integra o projecto H2020 eMOTIONAL Cities. Qual o foco desta investigação?
Estou trabalhar na área do neuro -urbanismo. A saúde mental é uma preocupação crescente. Já o era antes da Covid, mas com a pandemia deu- se o verdadeiro clique. Já se produziram mais artigos científicos desde 2019 sobre a relação entre saúde mental e cidade do que alguma vez se tinha feito. O projecto H2020 eMOTIONAL Cities é um dos seis financiados pela União Europeia para estudar a saúde urbana. É liderado pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universalidade de Lisboa, em co-coordenação com a Faculdade de Medicina, integrando também empresas.
Que objectivos pretendem alcançar?
Um dos objectivos é perceber como é que o ambiente construído e o ambiente urbano influenciam a saúde mental e o nosso cérebro. Ou seja, como é que se pode dar mais qualidade de vida às pessoas através das cidades. Pretendemos também estudar questões de género e de envelhecimento activo relacionadas com a saúde mental. Temos ainda a ambição de trabalhar com alguns grupos vulneráveis, nomeadamente com demências como Alzheimer, e tentar perceber como é que podemos atrasar a progressão da doença. Queremos descobrir coisas no cérebro para chegarmos às políticas públicas e tirarmos conclusões sobre o que é que efectivamente deve ser feito em matéria de desenho urbano, de ordenamento do território e de saúde pública, para termos melhores cidades para os cidadãos.
Que sonho tem para Leiria, cidade onde nasceu e começou a sua actividade profissional?
O meu sonho é global, mas Leiria pode ser laboratório desse sonho, e que passa por baixar o gráfico do consumo de antidepressivos e ansiolíticos. Portugal é, desde 2019, o País da Europa onde mais se consome este tipo de fármacos. O meu sonho é que os centros de saúde venham a prescrever cultura e espaço público. Que haja uma união entre estas duas áreas, que falam línguas ainda muito diferentes. É esse o trabalho que estamos a começar a fazer com o neuro-urbanismo: perceber o que acontece no cérebro para melhor compreendermos o que podemos fazer nos ambientes construído e urbano. Em Leiria temos já exemplos em que a saúde, a cultura e o público se juntam.
É curioso ver uma arquitecta a falar de saúde mental.
São áreas que, cada vez mais, têm muito a ver uma com a outra. A pandemia trouxe a saúde mental para a rua. É preciso trabalhar para que este deixe de ser um assunto tabu. Fiquei pasmada com os números da OCDE sobre o consumo de antidepressivos e ansiolíticos. É um problema que está relacionado com o envelhecimento pouco activo, com o isolamento e com a concentração das pessoas nas grandes cidades. Prevê-se que, em 2050, ou seja, daqui a 28 anos, dois terços da população mundial esteja a viver em cidades. Muitas delas precisarão de apoio. E o desenho do espaço público vai ter um papel importante a desempenhar.