Celebra-se, no presente ano, o centenário do nascimento do poeta António Ramos Rosa (ARM), destacado «empregado» da Poesia cuja linguagem virtuosa nos marcou pela «interrogação do real» e pelo verso mais emblemático da sua obra: «estou vivo e escrevo sol».
O “Poema dum Funcionário Cansado” do livro “Grito Claro”, redigido em 1958, é atemporal, sendo um dos mais intimistas escritos do autor. Iniciado com um desabafo do “eu lírico”, um homem impregnado pelo sentimento poético do universo, centrado nas coisas sensíveis da vida, com o olhar na leveza dos afectos e seduzido pela palavra ancorada no ensejo de interioridade.
Solitário e despojado de sonhos, revela uma visão pessimista do mundo que o oprime, assumindo-se emparedado pelas ruas estreitas, nas quais as casas são uma espécie de monstro antropofágico que engole o humanismo, onde entre as paredes, todos são consumidos, restando-lhes a servidão.
Disperso, refere-se ao quarto em que vive a solitude, como um refrão denunciador da agonia para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma vazia. Na segunda estrofe, delineia os motivos da insatisfação: a árida actividade que exerce como subserviente de um sistema.
Nela, ironicamente, traça o perfil “dum funcionário público apagado”, inadaptado à rotina estéril de um ofício servil – “a minha alma não acompanha a minha mão.” A alusão de que os gestos rotineiros e repetitivos fazem parte de um mundo material, um tipo de acção em que a mente não participa (“Débito e Crédito Débito e Crédito / a minha alma não dança com os números / tento escondê-la envergonhado”).
Fica audível, como um ‘grito’, que a existência sem Poesia é um pássaro engaiolado. Na última estrofe, tenta fruir um momento de evasão, no qual soletra as “palavras generosas” que povoam o seu imaginário: “Flor rapariga amigo menino / irmão beijo namorada / mãe estrela música”. Porque já antes escrevera Álvaro de Campos, numa aura confessional: “Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim”.
O poema de ARM invoca também o testemunho, reaberto agora no livro de Luciana Leiderfarb (Gradiva, 2024), “Eduardo antes de ser Lourenço – Textos de Juventude” – Transcrição, Organização e Edição: «De todo o meu coração abomino os fartos, os saciados, os tranquilos, os felizes da vegetal felicidade e, mais do que tudo no mundo, tenho um horror sagrado pelo bom senso, cujo princípio secreto é a negação do risco e da audácia do homem».
Saberemos estar vivos e escrever (o) sol?