É em redor de um álbum de fotografias antigas que se concentram Isabel Leitão, Urbano Pereira e Conceição Andrade, três dos cinco ex-funcionários da Tapetes Vitória convidados pelo Museu Industrial e Artesanal do Têxtil (MIAT), em Mira de Aire, para uma visita guiada ao local, iniciativa realizada na passada sexta-feira, que assinalou os quatro anos do espaço, coincidentes com o centenário da fundação da fábrica, encerrada em 2010.
A visita serviu, sobretudo, como um desfiar de memórias sobre a empresa e sobre um sector que fez desta povoação do concelho de Porto de Mós “uma das grandes vilas de Portugal”, como diz Urbano Pereira, que trabalhou meio século na Tapetes Vitória. “Foi a minha universidade”. Entrou aos 11, como ajudante de tear, passando depois pelo sector de pessoal e pelo escritório, e só saiu para a reforma, mantendo-se, no entanto, no activo, ligado agora aos seguros.
“Em Novembro, cumpri 75 anos de trabalho. Fiz um contrato com Deus para me deixar trabalhar até aos 90 anos. Já só faltam três”, refere o antigo funcionário, que começou a sua ligação à Tapetes Vitória ainda no edifício primitivo da fábrica, agora transformado em museu. “Nesta sala, funcionou o serviço de pessoal e mais tarde o infantário”, conta, enquanto ao lado, Isabel Leitão e Conceiçõ Andrade se mantêm agarradas ao álbum de fotografias, pousado numa secretária antiga, instalada em cima de uma tapeçaria feita na fábrica.
“Tantas horas de trabalho, tudo manual, fiozinho a fiozinho metido à mão”, recorda Orlando Chareca, de 79 anos, um dos muitos forasteiros que, a partir do final da primeira metade do século XX, assentaram arraiais em Mira de Aire e que ajudaram a vila a prosperar. “Para aqui, veio gente de todo o País, de Viana do Castelo ao Algarve”, atesta Urbano Pereira, dos cinco o único nascido na vila.
Tal como aconteceu com muitos trabalhadores, nomeadamente os mais qualificados, os pais de Orlando Chareca vieram da Covilhã, que, em tempos, foi considerada “a Manchester de Portugal” pela grande concentração de fábricas de têxtil. “Cheguei a Mira de Aire com um ano, saí com nove e voltei aos 19”, conta. Foi nesse regresso que entrou para a Tapetes Vitória como debuxador.
“Fazia os desenhos que eram aplicados nos tecidos e tapetes”, explica, contando que, no final do primeiro mês de trabalho, recebeu o dobro do que tinha acordado. Pensando que era engano, dirigiu-se aos patrões para desfazer o lapso. “Responderam-me: ‘assim é que está bem’. Gente muito boa”, relata Orlando Chareca, que saiu da Tapetes Vitória “três ou quatro anos depois” para trabalhar por contra própria, acabando por fundar uma empresa que deu origem à Moinhos Velhos (actual Newplaids), que chegou a empregar “330 pessoas”.
Eram, diz o antigo empresário, “os tempos de ouro” do têxtil em Mira Aire, com grandes empresas que davam trabalho a centenas de pessoas. A Fiadeira Mirense, por exemplo, teve “mais de 700 operários” e a Tapetes Vitória “perto de 270”. “Tanto povo na vila, as estradas cheias de gente, umas a pé, outras nas camionetas que iam buscar e levar gente das redondezas”, recorda Conceição Andrade.
Esse corropio de operários não só alimentava a indústria, como mantinha viva a economia local. “Hoje, está tão diferente. Muitos emigraram quando o têxtil começou a ficar mal. Outros, voltaram para as suas terras”, constata Urbano Pereira, sem esconder a tristeza pelo declínio do sector, que se acentuou no final dos anos 80, com a chegada em força dos produtos vindos da China a preços “incomportáveis”, e pelos efeitos que esse declínio teve na vila, hoje “uma sombra” do que foi no passado
“É a roda da vida”, diz, conformado, João Grilo, que trabalhou na Tapetes Vitória oito anos, como tecelão. “Cheguei a atar 1.200 fios por hora. A média era 800 a 1.000. Às vezes, um dos sócios vinha sentar-se ao meu lado, para ver o meu despacho”, conta, enquanto passa em revista um dos antigos teares mecânicos da fábrica, hoje peça de museu, desfiando o nome de cada peça que o compõe, talvez ainda com ganas de o voltar a ver trabalhar.
Ao lado, Isabel Leitão exemplifica a montagem de um tapete num tear manual. “Estávamos três. Uma ao meio e outra em cada ponta, com o desenho à nossa frente, seguindo as cores e colocando fio a fio. Parece que foi ontem.” Mas não foi. Isabel deixou a Tapetes Vitória em 1994, já numa fase difícil da fábrica, que acabou por fechar em 2010.