Num percurso de vida tão eclético, em que papel se sente mais completo?
Eu acho que é num bocadinho de tudo. Às vezes só me apetece escrever prosa e já vou com sete livros editados. E tenho tantos projectos…. mas também tenho digressões e tenho de fazer discos. Tenho de fazer e quero. Quero fazer coisas novas para revelar este tempo. Preciso de todas estas coisas. E preciso do palco. O confinamento pôs-me muitas interrogações sobre se valia a pena continuar. Porque nós, artistas, ficámos sem chão.
Como é que tem sido viver exclusivamente da arte em Portugal?
Penso que é complicado para a maior parte das pessoas. Se calhar, há 20 anos, para mim também seria muito complicado. E há 30, seria mais complicado. Houve uma altura na minha vida, há uns 22 ou 23 anos, em que decidi estabelecer à volta dos UHF e da música uma empresa, que gerisse tudo isto e que não se lamentasse, que fosse objectiva dentro do País que nós somos. E as balizas que eu construí à volta dos UHF fizeram- me passar em termos financeiros – muita gente sofreu e está ainda a sofrer – um bocado ao lado da crise nesse aspecto. A minha grande dúvida era se valia a pena continuar em face da anulação que rapidamente o espectáculo teve. Ou seja, veio uma borracha e apagou-nos o ano. O mapa de trabalho de 2020 passou para 2021 e já uma grande parte dele passou para 2022. Isto é inconcebível na estratégia de vida de uma pessoa. Nunca tínhamos passado por isto. Tivemos de nos adaptar, obviamente. Mas tive muitas interrogações.
Com mais de 40 anos de estrada, o que ainda o surpreende no público?
Em primeiro lugar, que continue connosco. O que quer dizer que valeu a pena e que fizemos coisas importantes, que as pessoas guardaram. E todos os espectáculos são diferentes. Eu faço por isso. Eu não faço espectáculos em policópia. Cada espectáculo há-de ter um reflexo. E esse reflexo vem muitas vezes do que é o público, mais actuante, menos actuante. Nós temos de ir à procura da interacção, do relacionamento mais emotivo. Eu vivo hoje em dia para que cada espectáculo possa deixar algo. Não é só o momento do ‘fomos abanar o capacete’ ou ‘fomos ouvir as canções que ouvíamos quando tínhamos 20 anos’. Não. É preciso que alguma coisa tenha acontecido e valido a pena. Há alguma coisa que é preciso semear e deixar em cada espectáculo.
E como é que o público ainda pode ser surpreendido?
Fizemos um espetáculo em Julho, no Porto, e foi gente de todo o lado, até do Algarve. E há dois anos e meio estivemos no Cineteatro Messias, na Mealhada, e, no fim do espectáculo, o programador veio ter comigo e disse-me: ‘António, vocês parecem uma religião. É que vem gente de todo o lado’. É que já cá estamos há muito tempo e as pessoas no fundo seguem-nos. E o público dos UHF já sabe, o público fiel já sabe…Tem de haver verdade, tem de haver seriedade, muita honestidade no trabalho do artista. Não é exibicionismos. Já não há. Se calhar houve, quando éramos mais miúdos. Neste momento, o que há é um respeito enorme por fazer uma coisa que valha a pena, que é estar em cima do palco durante um tempo e que isso tenha valido a pena para as pessoas.
Têm trabalhos na forja?
Estamos a gravar o novo disco de originais dos UHF. E a seguir acho que vou finalmente editar o meu disco infantil, que tenho escrito há muito tempo. Mas, para sair, tenho cinco livros. Porque em Março do ano passado, quando apanhámos o susto de termos de ficar em casa, confinados, quando a rua fechou, o bairro fechou, a cidade fechou e fechou o País, pensei: ‘o que vou fazer à minha vida?’. Comecei a mexer em todos os meus projectos e agora estou estoirado de trabalho. Acho que nunca trabalhei tanto na minha vida como agora. Estou a fazer isso tudo ao mesmo tempo.
E nos UHF, que temas o inspiram actualmente?
Eu faço fotografias da realidade. Nós continuamos a ser cavalos de corrida no nosso dia-a-dia. Se calhar, até mais do que há 40 anos. Porque os Cavalos de Corrida falam da vida violenta, opressiva das grandes cidades. Não se chega a horas a lado nenhum, de repente há um acidente, a ponte para e há filas… Tenho feito algumas canções ultimamente, que são outra vez de grande intervenção social. Faço canções para despertar as pessoas. Não aponto ideologias, não aponto setas para as pessoas irem para aqui ou para ali. As pessoas vão para onde quiserem. Mas tomem consciência do Mundo onde estamos a viver. Eu canso-me de ver o nosso País adiado. Já são muitas vezes que ouço as mesmas conversas, as mesmas palavras, e Portugal a descer, a descer, [LER_MAIS]para a cauda da Europa. Eu aprendi com os nossos maiores. Com o Pedro Barroso, com o José Afonso, com o Sérgio Godinho, com o José Mário Branco, com o Adriano Correia de Oliveira, com grandes poetas portugueses, como Manuel Alegre. Há uma intervenção que a cultura tem que praticar. Para que as pessoas fiquem mais atentas.
Como é tocar com o filho? Há brigas, divergências artísticas ou geracionais?
Há muitas brigas. Às vezes acredito que sou mais exigente com ele do que para com os colegas, porque ele é meu filho e eu não quero favorecimentos. Mas ele é muito competente. Não entrou nos UHF por minha causa. Até fiquei um bocado espantado quando os meus colegas o foram buscar, há muitos anos. Portanto, ganhou lugar pela sua competência e trabalho. Tem a sua forma de ver a coisas. E eu tenho outra forma.
Continua a ser o vocalista louro e de olhos azuis dos UHF. Mas agora sexagenário. Como está a lidar com a idade?
Estou bem. Nunca pensei foi chegar aqui. Pensei que isto ia acabar. Comecei num tempo em que não havia muita música profissional. Nos UHF somos todos profissionais da música. Foi um passo de cada vez. E um dia de cada vez e sem saber qual era o futuro. Nunca fizemos planos para o futuro, porque não sabíamos, porque não havia história, para trás, de uma vida destas durar. Mais do que nunca, eu hoje vivo um dia de cada vez. Estou contente, por várias razões, e uma delas foi ter aprendido. E não me esqueço das lições que aprendi neste País, nomeadamente nas questões da área cultural. Estou bem comigo.
Há agora mais tempo para saborear a família?
Por causa do meu trabalho, não fazia férias de Verão com os filhos. Fazíamos depois, no Inverno, na neve. Era compensador, mas não era a mesma coisa. Não os vi. Acompanhei-os pouco à escola. Fui muitas vezes aquela imagem que, estando por fora, conseguia dar-lhes conselhos de vida. Mas nunca pedi aos meus filhos para serem nada, nunca lhes indiquei o curso que deviam tomar, nunca disse ao Tó para tocar guitarra. Ele é que quis começar a tocar. E quando vi que era um teimoso, arranjei-lhe um professor, para não ter de passar os tempos de aprendizagem que eu passei. Os meus filhos dizem que não, mas no fundo sinto que houve crescimento deles que não acompanhei. E os divórcios também não ajudam. Falhei e não estava lá. Agora sim. Tenho há muitos anos uma regra, que cumprimos sempre que possível, porque com o confinamento nem sempre o foi. E os músicos respeitam muito as regras sanitárias, porque querem voltar a trabalhar sem problemas. Há disciplina. Faço sempre almoço ou jantar de domingo, onde reúno a família toda. Entretanto, já há dois netos. Aquilo parece um albergue espanhol, cada um a falar mais alto do que o outro, a contar as suas histórias. Uma família é exactamente isso. É estarmos todos numa convulsão de alegria e cada um a contar a sua experiência. Às vezes também com tristezas. É importante, para nos ouvirmos, para comunicar.
A voz da Lena d’Água e os temas do Tozé Brito voltaram às rádios. Como vê este revivalismo dos anos 80?
Muito bem. A Lena só prova que continua a ter uma grande voz. E tem um lote de canções muito forte. O Tozé foi muito bem revisitado por esta malta nova e é bom ver que estes novos vão lá atrás, onde há coisas giras. O Tozé é um compositor com uma grande vida autoral e é bom que isto tenha acontecido.
Entre as muitas profissões que teve, foi também jornalista. Que avaliação faz desta actividade, agora enquanto leitor?
Há vários tipos de jornalismo. Há um jornalismo efectivamente independente, muito pouco. Depois há um jornalismo, que eu considero mais como folhetins noticiosos, panfletos que nos habituamos a receber nos transportes, que não são jornais. São press releases passados para impressão. Há alguns grupos de comunicação social em Portugal, poucos, e não sei quantos permitem que os seus jornalistas sejam verdadeiramente independentes para falar do que querem falar e da forma como querem falar. Fazer o chamado jornalismo de investigação. Veja-se agora o que aconteceu com o Sexta às 9, da RTP. Tenho um modelo de jornalismo. A BBC passou por guerras e disse sempre o que quis dizer. Foi sempre independente. E não há nenhum governo inglês – se calhar já tentaram – que mande num jornalista da BBC que queira fazer investigação. The New York Times e The Washington Post também. São jornais que eu venero.
Em 2014 foi nomeado Embaixador do Direito de Autor. Recuperando essa qualidade, que análise faz da apropriação e da partilha de conteúdos na internet?
Está mais regulamentada e há felizmente uma série de espaços que foram interditos. Não podemos matar os criadores. Nós temos de remunerar os criadores ou amanhã não temos. Amanhã temos sucedâneos. E quando houver sucedâneos, se não houver criadores independentes, criativos, nós estamos ao sabor dos interesses de quem quiser dominar uma sociedade. É perigoso. Ainda por cima, vivemos num tempo global e podemos amanhã estar a ser apanhados, como foi por exemplo a sociedade chinesa, que tem a informação que o Partido Comunista da China entende que deve ter e que não é a informação real.
A mesma questão se coloca ao nível das artes. A internet tem servido mais para democratizar ou para pilhar?
Veio mais para pilhar. Aqui não há democratização. O que se pode chamar democratizar, que é fornecer livremente, pode acabar e vai acabar com os autores. Há quem diga “tu vais para o palco, já ganhas”. Não. Eu ganho como artista, mas há um autor, que posso ser eu ou uma pessoa que está em casa, que até pode não ter pernas, estar entrevado, mas que escreve poemas e músicas, e que, se não for remunerada, terá que ir para a Segurança Social receber uma miséria. Nós temos de remunerar as obras dos autores. Chama-se propriedade intelectual e não é de todos. É de quem cria. Ao fim de 70 anos, a obra passa ao domínio público. É assim no Mundo inteiro, civilizado. Alguns jovens autores, compositores ou artistas não conseguem editar um disco, uma canção, e metem-na rapidamente no Youtube. Mas não se registam, para defender os seus interesses. Se amanhã um neozelandês, um tipo de Singapura ou da Noruega, que achar muito gira essa melodia, lha tirar, e se fizer um sucesso enorme, quem a criou não ganha nada. E a música é dele. É preciso perceber essa dinâmica, que hoje em dia o mundo global não é só democratizar, é também pilhar.
És Meu, Disse Ela. Histórias de assédio como a que viveu e verteu neste livro são hoje mais ou menos comuns?
É a primeira vez que há um caso julgado e condenado em Portugal. Duplamente, porque foram dois julgamentos. Quer dizer que, infelizmente, fui pioneiro. Só que, ao contrário daquilo que muitas vezes é quase uma espécie de dinâmica daquela vida machista portuguesa e marialva, que é partir-se para a violência, para a agressão, para se resolver um problema, eu aguentei nove anos. Mas não desisti do tribunal e consegui chegar a dois julgamentos e condenação, o que, inclusive, chegou depois à feitura de uma lei. A lei foi feita em Setembro de 2015. Uma lei um bocadinho anémica, mas já é uma lei. E há uma outra forma de olhar para o assunto. E posso também dizer ao JORNAL DE LEIRIA que esse livro já gerou uma série, escrita para a RTP, e que a seguir virá depois também um filme. É um caso de vida, uma experiência que não desejo a ninguém. Não sei se tenho inimigos, mas se os tiver nem a eles o desejo, porque é uma coisa muito difícil. Há stress pós-traumático, há coisas que deixei de fazer. O café, o sítio onde ía aos jornais. Cortei com isso tudo e demorei muito tempo a regressar. Porque me vêm essas imagens.
Além da lei, percebeu que o seu testemunho trouxe mudanças de comportamento, um olhar diferente da sociedade para com estas situações?
Parei com o confinamento, mas antes fiz conferências em todos os locais que se possa imaginar. Nas universidades, cheguei a estar na Sorbonne, em Paris, e cá em Portugal, em congressos, bibliotecas, escolas, onde me chamassem. As pessoas despertaram. No sentido em que isto é um problema e vamos apresentá-lo às autoridades. Não deve haver vingança, não deve haver agressão perante uma situação destas. É o meu conselho. E há outro entendimento da parte das autoridades, que antigamente achavam que eram casos amorosos. Já aprendem a lidar com estas situações. Recebo pedidos de conselhos de colegas, de pessoas anónimas. Digo sempre que arranjem testemunhas e que apresentem o caso às autoridades. A partir aí, elas tomam conta do processo, para acabar com este tipo de violência, de agressão e de crime.
Os músicos António Manuel Ribeiro e Nuno Barroso estiveram domingo na Marinha Grande, na tertúlia organizada pela Associação Cultural e Recreativa da Comeira, que teve por objectivo prestar homenagem ao compositor e cantor Pedro Barroso.
Ao nosso jornal, o líder dos UHF falou da sua ligação ao músico, falecido em Março de 2020. “Pedro Barroso foi um dos primeiros cantores de intervenção, se não o primeiro mesmo, com quem eu toquei, em 1979, no Parque Eduardo VII, em Lisboa. Estávamos contra o nuclear, porque na altura havia a ideia de fazer uma central nuclear em Ferrel, em Peniche. Nós aparecemos e depois apareceu muita gente. Nesse dia comprei um single do Pedro Barroso, com as suas próprias preocupações ecológicas, por causa da forma miserável como na altura já estava a ser tratado o Rio Almonda, que passa ao pé de Riachos, onde ele vivia. E ao longo da vida tocámos várias vezes. Fomos colegas na Sociedade Portuguesa de Autores. E quando ele já estava muito doente, fui o convidado surpresa num espetáculo de homenagem, a convite do Adélio Amaro e de mais amigos, em Novembro de 2019, no Teatro Miguel Franco, em Leiria. Foi a última que vez que o vi e penso que foi a última vez que ele subiu a um palco. Quatro meses depois, faleceu. É bom não esquecer a memória e o trabalho das pessoas que deram bastante à cultura deste País. O Pedro tem um lugar um bocadinho à parte. Eu chamava-lhe O Trovador. Não é que outros não fossem, mas ele era capaz de ser mais, àquela maneira clássica, um cantador de histórias com uma imagística muito grande”.