Qual foi, em Leiria, a maior intervenção arquitectónica, nas últimas décadas?
Do ponto de vista visual e da transformação da cidade e devolução de espaços aos leirienses, o Polis é incontornável. Mas há um trabalho que tem sido feito lentamente e que começou por volta dos anos 80 do século XX, com a constituição do primeiro Gabinete Técnico Local no município, coordenado pelo arquitecto José Charters Monteiro, que foi evoluindo e, com maior ou menor intensidades, foi produzindo efeitos sistemáticos. Hoje, o centro histórico de Leiria não é o mesmo de há 40 anos. É evidente que este trabalho de recuperação de edifícios, depois apoiado pela constituição do Gabinete de Reabilitação Urbana e pelo trabalho que a minha colega Vitória Mendes desenvolveu, acompanhando a transformação do centro histórico, é muito importante. E, claro, há obras de regime. Algumas nascem num regime e acabam noutro, como o estádio. O estádio de Leiria seria escusado, se não houvesse a doença do futebol. Na época, penso que, dos políticos no activo, apenas Tomás Oliveira Dias se manifestou publicamente contra nos jornais. E é um homem do PSD. A candidatura ao Euro começou no tempo do engenheiro Lemos Proença e todos os partidos, concordaram que se fizesse na fase de candidatura, muito antes de 2004, mas quando foi preciso criar um modelo económico para a execução daquilo, não chegaram a acordo. A ideia de, mais tarde, criticar a presidente em exercício, Isabel Damasceno, por ter avançado com o projecto…. Se ela não o tivesse feito, é que a teriam crucificado! O estádio é uma obra com demasiada dimensão para aquele local. O anterior, projectado por Roberto Charters, nos anos 50, com as bancadas “agarradas ao terreno”, tinha a dimensão adequada, porém, era necessário acolher 30 mil espectadores, devido às exigências da indústria do espectáculo – aquilo é indústria, não é desporto!…. Até percebo que tenham escolhido aquele local, atendendo ao que se passa em Aveiro, que escolheu criar um estádio fora da cidade. Foi exigência de Isabel Damasceno manter a pista de atletismo, quando a quiseram tirar, para estarem com os olhos em cima da bola. Isso permitiu fazer campeonatos de atletismo, que são uma mais-valia. Não conheço o processo em detalhe, mas, em traços largos, a ideia que tenho foi que toda a gente queria o estádio, mas quando foi preciso pagá-lo, já não o queriam. Agora há que rentabilizá-lo e resolver o problema do topo norte,
O que gostaria de lá ver feito?
Acompanhei o projecto que estava a ser desenvolvido por Pedro Cordeiro, para acolher um “ninho” de alta tecnologia e sinto que, de facto, o que é preciso é dar vida e função aquilo.
Que avaliação faz do urbanismo de Leiria?
O urbanismo de Leiria é o possível. Desde 1965, quando saiu a Lei dos Loteamentos, que o Estado entregou a construção das cidades aos privados e demitiu-se da função. Nos anos 60, 70, 80, o loteamento tornou-se a base da construção da cidade. Cada proprietário faz no seu terreno aquilo que lhe interessa, de acordo com a majoração possível para as mais-valias que obterá. Isto é completamente diferente do que acontece na Alemanha. Ali, a mais-valia resultante da transformação do solo rústico em urbano, não é para os bolsos dos privados, é para o Estado, ou seja, para todos nós! Aos proprietários, é pago o valor do terreno. Apenas em Évora acontecia o mesmo. Era o município que promovia, adquiria os terrenos, fazia as urbanizações e vendia os lotes. O desenho da cidade, a planificação das ruas, a ligação entre elas, a localização dos equipamentos e toda a concepção urbanística eram do município. Deixaram de o fazer porque os proprietários e os empresários da construção eram contra. Cheguei a dizer ao vereador do Urbanismo de Évora, que deveria fazer uma parceria com Leiria. Aqui a construção da cidade é 100% privada e lá era 100% municipal. Não tem de ser exclusivamente uma coisa ou outra, mas o Estado não pode fazer o que fez no resto do País. Apesar de ir criando instrumentos de ordenamento do território, como planos de urbanização ou de pormenor, torna-se difícil controlar e ter eficácia no desenvolvimento da cidade. Na exposição “Leiria Tamanho e Desenho”, que está em exposição no Museu de Leiria, de que sou seu comissário, faço um apanhado do conhecimento que fui reunindo acerca da história urbana de Leiria e, através de mapas, explico o que aconteceu desde a sua fundação. Há lá um painel, com quase todos os nomes das urbanizações. São todos de quintas. Quinta do Alçada, Quinta do Bispo, Quinta de Santo António, Quinta do Seixal, Quinta de São Venâncio, Quinta de Vale de Lobos, Quinta dos Maristas, Quinta de Santa Clara… o que aconteceu? À volta de Leiria, até aos anos 60, havia quintas e casais, que se foram transformando em urbanizações! Toda a toponímia da cidade resulta da transformação de terreno que o proprietário urbanizou ou que vendeu a alguém que ali investiu, grande parte das vezes, com capital vindo da emigração. Gente que foi trabalhar para a França e Alemanha e que regressou com pecúlio razoável para fazer investimentos.
Mas a autarquia tem de gerir o território tendo em atenção as expectativas dos privados. O Plano Director Municipal (PDM) não facilita essa tarefa?
O PDM é uma figura do ordenamento que trabalha na escala de 1/25 000, a escala militar. São definidos os grandes locais onde as coisas devem acontecer e os PDM, que surgiram em 1982, tornaram-se obrigatórios, porque se os municípios não os criassem, não teriam acesso aos fundos comunitários. O PDM surge por causa dos fundos comunitários e não por vontade de organizar o que quer que fosse! Aquilo que os municípios pretendem é ter alguma flexibilidade, para servir determinados interesses ou porque há soluções melhores, quando há uma transformação da realidade e os documentos estáticos de planeamento não permitem agir. Era preferível a Administração Pública desenhar a cidade em função do interesse comum e não apenas por ser do interesse de alguém em majorar e obter mais-valias por via de um processo construtivo. Até pode ser bom para essa pessoa, que vai ganhar dinheiro, mas pode não o ser para a qualidade de vida dos cidadãos. Neste modelo, as grandes infraestruturas e equipamentos é a Administração Pública que tem de os criar. O crescimento de Leiria foi feito de acordo com aquilo que era possível com os instrumentos de ordenamento existentes. Não se pode recusar uma coisa “porque sim”. Tem de haver um fundamento. O que tentamos fazer é minimizar os impactos. Fazemos desenho de cidade, dentro do possível, com aquilo que é proposto pelos privados. E depois ainda há outras questões como a geometria dos edifícios, os espaços verdes…
O público tem a impressão que criar espaços verdes numa cidade é difícil, porque choca com o interesse do promotor imobiliário que gostaria de construir em 100% da área disponível.
Apesar de a legislação definir o número de metros quadrados destinados a equipamentos e a zonas verdes, ela contém, a forma de dar a volta a estas obrigações. O promotor paga e não cria aquilo a que está obrigado. Criaram-se mecanismos, que são, na prática, taxas, que substituem aquilo que o promotor teria de dar. O promotor paga e a autarquia pega nesse dinheiro e faz os equipamentos.
Os cidadãos habituaram-se a zonas como o Polis e querem vê-lo replicado na cidade. No entanto, em Leiria, há zonas da cidade que apenas são acessíveis de carro. É impossível chegar-lhes a pé.
Há vários casos disso, como a zona de Parceiros, de Santa Clara…. Em 1978, quando foi feita a variante do IC2 naquela zona, a Junta Autónoma das Estradas esteve-se marimbando, apesar de ter sido avisada várias vezes pelo município e pelos habitantes dos Parceiros. Quem projecta estradas nacionais não quer lá peões, nem sequer pensa neles. Até põem sinais a dizer que é proibido o acesso a peões, bicicletas e carroças. O nó dos Parceiros, que foi um [LER_MAIS]matadouro durante muitos anos, poderia ter tido várias soluções. Poder-se-ia ter subido um pouco a ponte sobre o Lena e assegurado a passagem por baixo, em boas condições ou fazer um nó desnivelado que acabou por ser feito, mais em cima, anos mais tarde, pelo Continente. Outro caso onde iria acontecer a mesma coisa, era na via de penetração em Leiria, que liga o IC36 à rotunda do hospital. Essa via era para descarregar numa rotunda que seria criada na EN 113, no sítio onde está a antiga escola de enfermagem. Há lá uma casa em ruínas que foi expropriada para fazer a rotunda. Quando a doutora Isabel Damasceno entrou na Câmara, avisei-a daquele problema e ela foi para Lisboa e não saiu de lá enquanto não corrigiram aquilo. Já viram o que era se aquela via não descarregasse na rotunda onde chega a variante sul? Seria preciso o tráfego passar em frente ao hospital! Estes serviços, que têm uma macrovisão das coisas, quando entram nos detalhes fazem estas coisas.
Voltando ao Polis que ajudou a criar, de modo geral, as populações querem mais verde nas cidades?
A minha participação nesse programa é limitada a determinadas funções. Ele foi uma intervenção que resultou de um desígnio nacional do Governo de António Guterres, para a aplicação de fundos na área do Ambiente e teve uma série de coincidências para que Leiria integrasse o grupo das primeiras dez cidades que se candidataram e foram escolhidas. Tínhamos uma equipa experiente, que já tinha trabalhado na Expo 98. A autarquia de Leiria, com um pequeno investimento, interveio num percurso ribeirinho com 12 quilómetros de extensão, usando um relatório de estágio muito interessante feito pela minha colega Ana Bonifácio, que foi a base da preparação do Plano Estratégico desenvolvido por uma equipa constituída pela câmara e com o apoio da Parque Expo, para se fazer a candidatura e protocolo com o Estado para o projecto. Foi criado um gabinete em Leiria, de que fui director, mas que era totalmente apoiado pelos serviços da Parque Expo. Eles tinham experiência em expropriações e em contratação pública, planeamento, orçamentos e comunicação. Fui aprender com eles. Era uma equipa altamente solidária. Praticamente, não houve derrapagens com trabalhos a mais. Fomos permanentemente auditados. Pena foi que só dez anos após o fim das obras, se tenha feito alguma manutenção. O mais importante do Polis foi a alteração sociológica em Leiria. As pessoas começaram a descer ao rio a pé, circulam e voltam às suas casas. Reencontram pessoas que, há muito, não viam e tornou-se um espaço de fruição colectiva, com benefícios para a saúde.
Tem pena que não se tenha intervido dessa maneira noutros locais?
Do documento estratégico coordenado pelo professor Carlos André, solicitado pelo presidente da câmara com sugestões para 2030, consta o aproveitamento do prolongamento deste projecto para outras zonas. Já está a acontecer no Lena onde há a possibilidade de ligação entre o Polis e o novo parque junto a Santa Clara e a ribeira do Amparo e a do Sirol também precisam de ser pensadas.
E a ligação à nascente do Lis?
Uma colega fez um trabalho teórico de tese muito interessante, com a ligação do Polis às Fontes, onde previa a criação de 13 pontes pedonais e uma necessária compatibilização da actividade agrícola com o percurso. No entanto, a ligação, a jusante, até à Praia da Vieira é possível e mais fácil. Já existe! Só é preciso estudá-la e encontrar os caminhos certos. A passagem pela Linha do Oeste, na Sismaria, não é muito fácil…. Aliás, nessa zona até há uma ponte perigosa, que era dos SMAS, e deveria haver ali intervenção. É uma estrutura que não tem condições de segurança. De qualquer modo, o município estará a ponderar a extensão à Vieira, porém, o problema não é o pensar, é a forma de concretizar, que leva tempo. Por exemplo, aquilo que foi o Polis começou a ser pensado ainda no tempo do engenheiro Lemos Proença, pelo gabinete do vereador Mário Matias. Mais tarde, no final dos anos 90, com vista à ligação com um percurso entre as margens do Lis até ao castelo, foi criado um grupo interno liderado pelo arquitecto Charters, no qual Ana Bonifácio participou e que acabaria por escrever o relatório que, depois, foi aproveitado pelo Programa Neste momento, não há aldeia ou vila que não tenha criado o seu próprio Polis.
Ao longo do seu percurso profissional, quais foram os arquitectos que o inspiraram?
Em 1978, fiz um périplo por praticamente toda a obra de Siza Vieira. Com os meus colegas Carlos Tamm e Pedro Ferreira da Cruz, fiz um trabalho académico sobre a sua obra para História da Arquitectura Portuguesa. Tivemos a oportunidade estar com ele no seu escritório da Rua da Alegria, no Porto, quando estava a desenhar os projectos para a Quinta da Malagueira, em Évora. Depois, visitámos o terreno na sua companhia e ele explicou-nos a sua visão, como tinha feito a leitura da topografia e a relação com o perfil da cidade de Évora. Era mais conhecido no meio académico do que do público e, por isso, conseguimos visitar obras como a Casa Beires ou “casa bomba”, que, depois já ninguém conseguia visitar, tal era o corrupio de gente a querer vê-la. Ainda visitámos a Casa de Chá da Boa Nova e todas as obras emblemáticas…. Ele, que vinha na linha do finlandês Alvar Aalto, foi um dos arquitectos que me marcaram, pela maneira como olhava para o território, como fazia a leitura daquilo que pode ser significativo para o projecto. Claro que, nem todas as obras são perfeitas e muitas delas têm problemas construtivos, mas isso faz parte da arquitectura.
A velha guerra entre arquitectos e engenheiros?
A guerra entre arquitectos e engenheiros é como a guerra entre marido e mulher. Se não viverem juntos e não se conseguirem dar, não têm obra. Têm de trabalhar em conjunto. Julgo que, nos EUA, a função é comum, do ponto de vista formativo. Em Portugal, em termos legislativos, até há uns anos, o arquitecto também podia projectar e fazer e subscrever cálculos até uma determinada dimensão. Mas, dada a crescente complexidade das estruturas e a evolução das tecnologias e dos materiais, esta parceria foi sempre necessária. Também admiro o Raul Estnes Ferreira, filho do poeta José Gomes Ferreira e gosto de muitas coisas do Gonçalo Byrne, actual presidente da Ordem dos Arquitectos, que tem uma forma muito harmoniosa de olhar e estudar os sítios a intervir.
É obrigação do arquitecto olhar para a futura obra integrada no conjunto?
As obras de arquitectura não devem cair nos sítios como OVNI, mas há um ditado antigo que diz que “gostos não se discutem”. De facto, o gosto também se educa. A maneira como se olha, ouve e observa é diferente, quanto maior o conhecimento e fundamentação. É como alguém que diz que, após o classicismo, os edifícios modernistas não lhe entram na cabeça. Há uma educação visual e do conhecimento, que faz com que o gosto se eduque e altere… há quem não gostava de percebes e, agora, não para de os comer! O que é importante é que haja conhecimento e cultura com a maior divulgação possível, para que o público lhes tenha acesso. Isso faz com que haja mais tolerância para determinadas correntes e maneiras de ver o mundo.
António Moreira de Figueiredo nasceu em Leiria há 68 anos. A mãe era natural de Góis e o pai de Viseu. Um dos bisavós era leiriense e os avós maternos viveram em Leiria.
“Escolhi Arquitectura, porque, na família, eram todos médicos! O meu bisavó era médico, o meu avô, que casou com a filha dele também, o meu pai e a minha mãe eram médicos, a minha irmã é médica, o meu primo é médico, tenho um sobrinho que também o é…”.
Entrou na Escola Superior de Belas Artes e foi lá, já no segundo ano, que assistiu ao 25 de Abril. Apesar da confusão lançada pela revolução, com o encerramento das faculdades, Moreira de Figueiredo nunca atalhou anos.
Inscreveu-se em todas as cadeiras e passou a cada uma delas de acordo com o currículo.
Demorou mais tempo e acabou por estar oito anos em Lisboa. Naquele que deveria ser o seu último ano no curso, foi eleito presidente da associação de estudantes, o que inviabilizou a conclusão da licenciatura nessa matrícula.
Regressou no ano seguinte e concluiu os estudos em 1980. Em Outubro desse ano, concorreu para “Arquitecto de 2.ª Classe” na Câmara de Leiria e foi escolhido.
“Também tinha feito contactos em Évora, porque havia lá vários movimentos de reabilitação urbana que me interessavam do ponto de vista teórico e da arquitectura, mas não se logrou essa hipótese.”
Durante 41 anos e cinco meses, os Paços do Concelho de Leiria foram a sua segunda casa.