Há mais meios, mais dinheiro e um combate mais musculado, mas continuamos a assistir a incêndios de grandes dimensões. O que está a falhar?
Não sei se está a falhar alguma coisa. Temos três componentes que são importantes no âmbito dos incêndios florestais: as alterações climáticas, que estão severamente adversas, uma seca extrema e uma paisagem florestal que não está devidamente organizada, não tem faixas de contenção, nem caminhos libertos para se poder actuar. Com isto tudo, temos uma mistura explosiva. A estes factores podem-se acrescentar as causas humanas, que são ignições feitas de uma forma criminosa ou negligente. A floresta tem uma elevada carga de produção de energia e quando existem ventos mais fortes o incêndio tem espaço para se desenvolver com grande intensidade, quer do ponto de vista da emissão do calor quer do ponto de vista da extensão.
É necessário apostar mais na prevenção do que no combate?
Gostaria de concordar, mas não. Temos de preparar medidas preventivas, mas temos de continuar a apostar muito no combate. As medidas do combate são imediatas. O Governo, e bem, conseguiu neste período [de contingência] autorizar mais 100 equipas de bombeiros. As medidas de prevenção são estruturais, demoraram cinco, dez, 15 anos. Pelos vistos cinco não, porque passaram cinco anos sobre 2017 e continuamos a ter a floresta na mesma forma. Aliás, os incêndios da região centro mostram que pouco ou nada se fez na floresta. Temos de continuar a aumentar o investimento no combate e na prevenção. Há-de haver um momento em que a linha da prevenção se cruzará com a linha do combate e nessa altura começamos a decrescer o investimento no combate e a crescer exponencialmente o da prevenção.
Depois dos grandes incêndios, há uma melhor coordenação da protecção civil?
A afirmação é sua. Se for ver à directiva operacional do DECIF [Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais] 2017 e à directiva para 2022 ou de 2012, nada mudou. Pode ter mudado uma vírgula e o número de actores que podem hoje estar presentes num teatro de operações de combate ao incêndio florestal. O que mudou nas técnicas de ataque aos fogos nos últimos anos? Diria que pouca coisa ou nenhuma. Os bombeiros existem há mais de 600 anos, tiveram uma evolução muito grande nas viaturas, nas técnicas, na formação, na qualificação, na exigência, no comandamento, na organização, na gestão, mas o agente extintor é o mesmo: a água.
Faz sentido usar retardante no combate?
Quer o retardante quer o espumífero fazem todo o sentido. Só não são mais utilizados por questões economicistas. Quando há uns anos usávamos os dromaderes, que deixaram de ser utilizados, usávamos mais os retardantes. Os retardantes foram contestados por questões ambientais, hoje já há alguns produtos que são ambientalmente menos agressivos. Temos de respeitar o ambiente, mas quando utilizamos água salgada no combate aos incêndios, como é?
As populações mudaram o seu comportamento?
Sim e para melhor. Foi uma das lições aprendidas e foi uma das áreas onde a protecção civil e o Governo melhor estiveram. As Aldeias Seguras, o Portugal Chama, a Raposa Chama são programas que permitiram avaliar, de uma forma diferente, a forma como os cidadãos olham para a sua segurança no âmbito da prevenção e combate aos incêndios florestais. Aliás, houve duas áreas em que se avançou muito de 2017 para cá. Essa foi a primeira e a segunda foi a do conhecimento científico e da sua aplicação nas cartas de previsão de risco. Nesta crise não fomos surpreendidos. Na quinta-feira [passada] sabíamos tudo o que se ia passar, dia após dia, a intensidade, onde iam ocorrer os incêndios e praticamente nada falhou. Talvez pudesse ter havido o desenvolvimento com as freguesias de alguns projectos de prevenção dos espaços florestais e rurais, designadamente com a distribuição de kits de primeira intervenção e outras actividades, nomeadamente postos de abastecimento quer para helicópteros, quer para autotanques e uma melhoria da rede de hidrantes. Há aí algum trabalho a fazer. A protecção civil teve aí um papel estruturante e fundamental que louvamos e achamos que se deveria dedicar mais a isso do que propriamente tentar comandar os bombeiros.
A formação dos bombeiros tem acompanhado a evolução?
Hoje há bombeiros mais bem preparados? Temos hoje bombeiros com mais conhecimento. Desde logo porque a maioria tem melhores habilitações académicas, tem mais disponibilidade para a criação de novas tecnologias e uma interacção com o digital completamente diferente. Até estão melhores preparados do ponto de vista dos equipamentos de protecção individual.
A base dos bombeiros em Portugal assenta no voluntariado. Dever-se-ia ter mais elementos profissionais?
Não sei se é preciso haver mais bombeiros profissionais. É preciso haver mais bombeiros. Não distingo entre bombeiros profissionais e voluntários. Portugal tem de ter uma capacidade de mobilização de um conjunto de mulheres e homens bombeiros que possam, em cada momento, e de acordo com aquilo que são os riscos e as vulnerabilidades dos territórios, serem capazes de proteger as suas populações. Se são voluntários ou profissionais não nos preocupa. O que nos preocupa é muitas das vezes não haver população para recrutar. Se formos para a zona interior do País, com municípios que têm duas, três, quatro mil pessoas, onde 40, 50 ou 60 % da sua população são idosos, vou fazer que recrutamento? Tem de haver maior coesão territorial. Temos é de saber quantos bombeiros é que precisamos em Portugal.
E de quantos precisamos?
O rácio dos 30 a 35 mil bombeiros para dez milhões de habitantes é um bom rácio. Temos cerca de 30 mil bombeiros, dos quais 25 a 30 mil no activo e cerca de 15 mil na reserva, o que dará cerca de 40 mil bombeiros. Entre voluntários e profissionais é um número razoável para as ocorrências, tendo esta consciência de que os meios são sempre finitos. Também temos de ver que há períodos em que os bombeiros não são utilizados. É preciso fazer esse balanceamento. Se tivéssemos 40 mil bombeiros no activo em permanência seria um número razoável para um rácio de dez milhões de habitantes.
O pagamento do DECIF é justo?
É o possível. Gostaríamos que fosse mais, mas temos de entender que o Governo este ano fez um esforço e, em alguns casos, aumentou 7%. Quando um bombeiro voluntário tem uma compensação de 61 euros, por 24 horas, o que dá cerca de 2,60 euros por hora, não é justo. Mas também temos consciência que se tem vindo a chegar, a pouco e pouco, a valores que sejam mais adequados do ponto de vista do reconhecimento social e da sociedade. Contamos que no próximo ano se possa, outra vez, melhorar e encontrar um ponto de equilíbrio.
As associações humanitárias assumem que estão a ficar com as finanças estranguladas, nomeadamente, face ao aumento dos combustíveis.
É verdade, mas temos de dar tempo ao tempo. As coisas não se resolvem com uma varinha mágica. A Liga dos Bombeiros Portugueses conduziu negociações com a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil e com o Ministério da Administração Interna e todas as viaturas de combate a incêndio, de socorro e salvamento têm o combustível integralmente pago pela autoridade. As associações fazem um adiantamento e são ressarcidas desse valor. Quanto à questão das ambulâncias INEM, melhorámos o protocolo, não nos valores que consideramos justos, mas nos possíveis. Com isso conseguimos um pequeno ajustamento para mitigação não só do preço dos combustíveis, mas também do salário mínimo nacional. Quanto às viaturas de transporte de doentes não urgentes, conseguimos também que o Estado reconhecesse a justeza de termos uma taxa de saída de 9 euros para as viaturas de transporte e ambulâncias TES, e pagamento ao quilómetro de 0,56 e 0,58 euros, respectivamente, para os veículos e ambulâncias, não esquecendo que antes era 0,51. Também se começou a pagar a hora de espera a partir da segunda hora. Estamos até mais preocupados com a falta de pagamento atempado dos hospitais aos corpos de bombeiros. Não estamos bem, mas conseguimos reequilibrar-nos. Agora, sabemos que a única forma de encontrar um equilíbrio financeiro definitivo para as associações são contratos-programa e isso também não se resolve de um dia para o outro. Estamos a insistir muito e fizemos várias reuniões com hospitais e Administração Regional de Saúde no sentido de os sensibilizar, pois são quem mais deve dinheiro aos bombeiros – cerca de 25 milhões de euros. Em Março e Abril tínhamos uma situação muito preocupante. Agora temos uma situação preocupante. Mas até ao equilíbrio poderá haver associações que precisem de algum apoio de emergência, porque não conseguem aguentar a descapitalização que tiveram que fazer para manter os serviços em funcionamento.
Por que é que a Liga discorda da integração da Unidade de Emergência de Protecção e Socorro (UEPS) no combate?
Entendemos que a responsabilidade do combate aos incêndios florestais deve ser entregue a quem sabe: os bombeiros. Não é preciso continuar a criar entidades sobre entidades e órgãos sobre órgãos para resolver o problema do combate. Não concordamos que o ataque inicial com helicópteros seja operado por elementos da UEPS. O que está acontecer é que num ataque inicial aparece um helicóptero com cinco elementos da UEPS e duas ou três viaturas com dez ou 15 elementos dos bombeiros. Isto não beneficia a coordenação, até porque uns são militares e outros são civis e tudo isto cria dificuldades. O que achamos é que aos bombeiros deve ser entregue o combate. À GNR, se querem criar uma UEPS, então que ela seja utilizada nas situações mais graves, no reforço. Repare-se no caricato da situação: temos um centro de meios aéreos, um helicóptero com cinco elementos da GNR e temos três bombeiros a tomar conta do helicóptero e da pista que não estão a fazer combate aos incêndios florestais, porque a Autoridade Nacional de Aviação Civil [ANAC] obriga a que o heliporto tenha em permanência uma equipa de intervenção. Temos um problema nos incêndios florestais que tem de ser resolvido por este Governo depois de acabar a época. Temos de fazer um verdadeiro simplex no combate aos incêndios florestais.
Recentemente mais de uma centena de comandantes apresentou escusa de responsabilidade, mas o ministro da Administração Interna disse que quem decide a culpa são os tribunais. Como viu estas declarações?
O senhor ministro disse uma verdade. Estamos contra é que sejam assacadas responsabilidades aos comandantes para além daquilo que são as suas funções inerentes ao comando. Os comandantes não têm poder para potenciar todos os meios. Não posso aceitar que esteja escrito num determinado documento “potenciando permanentemente todos os meios de combate”. Como é que potencio todos os meios de combate se não temos condições para comandar os teatros de operações integrando toda a gente que está disponível? Vou solicitar meios, mas não posso mandar, porque não tenho comando. Tenho de executar bem as minhas missões de combate, de organização dos meus meios para que aquele incêndio possa ser combatido no mais curto espaço de tempo e com os menores danos possíveis. Isso é o que me compete enquanto comandante. À associação compete alimentar os seus homens, não os da UEPS, do ICNF ou da Cruz Vermelha. Já perguntaram à associação se ela tem dinheiro? A associação de bombeiros de Ourém até ontem [dia 15] já tinha gasto em combustível 120 mil euros. Alguém lhes perguntou se tinha 120 mil euros para pagar ao fornecedor de combustível? O que dizemos à protecção civil é que não podemos escrever as coisas assim. É por causa destas coisas serem escritas assim que o comandante Augusto Arnaut [Pedrógão Grande] está sentado no banco dos réus e não aceitamos isso. Defendemos os nossos bombeiros, os comandantes e um sistema, que não é contra ninguém, mas que seja justo, verdadeiro e que diga aquilo que compete aos bombeiros em cada momento para depois não termos outros Augustos Arnaut. Mesmo que no dia 13 de Setembro seja inocente como esperamos, ele já teve cinco anos de sacrifício. Já foi destruída a vida de uma pessoa. A única coisa de mau que fez na vida foi lembrar- se de ser bombeiro. Nada lhe retira as noites de insónia e os cabelos brancos e aquilo que vai ser daqui para a frente, com resquícios que vão ficar ao nível emocional, psicológico e familiar. Ninguém quer passar por aquilo que ele passou, de estar todos os dias a ver no jornal que está acusado de cento e tal crimes, dos quais 64 de homicídio, mesmo que seja por negligência. Só a palavra homicídio assusta. Isto é inaceitável e inadmissível. Quem devia estar no banco dos réus era o sistema. O sistema não esteve bem e não está bem. Então julgue-se o sistema e não o homem.