Muitos dos habitantes de Leiria não nasceram nesta cidade, que desde sempre acolheu forasteiros e fixou famílias por várias gerações. A tradição de ser uma terra 'emprestada' não vem de agora. Já em séculos anteriores várias foram as famílias que vindas de muito longe adoptaram Leiria como a sua terra.
Por isso, é possível encontrar vários apelidos estrangeiros em Leiria e até outros cuja origem é desconhecida. Biel, Byrne, Charters, Korrodi, Pratt, Stoffel, Schurmann ou Zúquete são alguns dos nomes de famílias conhecidas em Leiria. Mas será que se sabe qual a sua origem? O Jornal de Leiria foi tentar descobrir, como alguns destes apelidos pessoas chegaram a Leiria.
Um alemão que transformou o Porto
Karl Emil Biel (adoptou o nome português Emílio Biel) nasceu em 1838 em Annaberg, Alemanha. Em 1857 instalou-se em Lisboa. Três anos depois mudou-se para o Porto. Comprou uma fábrica de oleados e adquiriu a antiga casa Fritz. Foi uma emblemática figura da fotografia portuguesa do século XIX, criador de uma obra artística e autor de inovações tecnológicas.
De origem alemã, foi a ele a quem se ficou a dever a primeira instalação eléctrica no Porto, cidade para onde foi ainda jovem. Terá também tido um papel determinante na introdução de motores eléctricos Siemens, nos quais assentou a revolução dos transportes urbanos operada pela Companhia Carris do Porto. Tudo indica que Emílio Biel terá tido uma cuidada educação com grande incidência nas ciências físicas e naturais. Veio para Portugal trabalhar na empresa Schalk e estabeleceu relações de amizade com o rei D. Fernando II.
Pediu autorização para instalar uma linha telefónica directa entre a sua casa e o seu escritório e participou em várias exposições. “Há quem diga que era descendente de judeus, mas nunca consegui confirmar essa informação. Não tenho dúvidas de que adoptou Portugal como sua pátria”, conta Júlio Biel, bisneto de Emílio Biel.
Teve três filhos. Júlio Emílio Biel era o responsável pela secção de electricidade e motores, a quem se associou depois o filho João Biel. A secção de comissões ficou entregue ao filho Emílio de Almeida Biel. Constam ainda mais três crianças: Laura, Matilde Laura e Jacinto. Em 1880 casou com Edith Katzenstein, uma jovem alemã filha do cônsul do império alemão no Porto, de quem teve uma filha (Else).
Morreu em 1915, tendo os bens da família sido confiscados na sequência da declaração de guerra feita pela Alemanha a Portugal. A ligação dos Biel a Leiria surge com Júlio Frederico Guimarães Biel, formado em Física, que vem para Leiria dar aulas no Liceu Rodrigues Lobo. Seu pai, Júlio Emílio Biel, engenheiro civil, viera para Alcobaça em finais do século XX para instalar a energia eléctrica na vila tendo aqui casado e fixado residência.
Em 1947, Júlio Frederico assumiu os destinos do Município de Alcobaça. Até à data centrava em Leiria a sua actividade, exercendo funções de professor no Liceu Rodrigues Lobo, que acumulava com a presidência da Caixa Regional do Abono de Família do Distrito e a Comissão do Recenseamento Eleitoral de Leiria.
Os donos da Villa Portela
Em Leiria, os Charters d' Azevedo são muito conhecidos. O apelido veio com o tenente-coronel William Charters, oficial britânico que veio para Portugal (como capitão) integrado no exército inglês, tendo participado nas batalhas da Roliça (1808), Corunha (1809), Buçaco (1810), Albuera (1811) e participou no cerco a Badajoz (1812). Pai de Maria Isabel Charters, 1.ª Viscondessa de S. Sebastião, e, consequentemente, avó materno do engenheiro Ricardo Charters Henriques d'Azevedo, que mandou construir a Villa Portela.
William Charters casou-se com uma portuguesa, Ana, filha do médico Luís Soares Barbosa, em Leiria, e sobrinha de dois padres professores de Filosofia em Coimbra, um, e o outro em Retórica e Gramática, explica Ricardo Charters d'Azevedo. Embora já baptizado segundo o rito anglicano, William Charters baptizou-se segundo o rito católico na véspera do seu casamento (1815).
“Teve cinco filhos dois quais só vingaram três: um rapaz e duas raparigas. Estas casaram-se muito bem uma com um Crespo da Batalha e a outra com um Henriques d’Azevedo das Cortes (depois foi o primeiro visconde de S. Sebastião). O rapaz de nome Roberto casou-se com 32 anos com uma viúva (duas vezes viúva e muito rica) com 70 anos. Não tiveram descendência”, refere Ricardo Charters d'Azevedo.
Além de William Charters, também a sua irmã Elizabeth veio para Portugal. A mulher, casada com Richard Shortney, fixou-se em Regueira de Pontes, já viúva em 1825, com os seus seis de sete filhos (uma delas ficou em Londres já casada). As três filhas não se casaram e não tiveram descendência, um dos filhos, Roberto Charters Shortney, casou-se mas não teve descendência.
Os dois outros, Tomás e Ricardo não se casaram. O Ricardo teve vários filhos de raparigas da zona de Regueira de Pontes e de Amor, nunca as tendo reconhecido e fazendo casar as raparigas com trabalhadores rurais da suas propriedades.
De onde vêm os Zúquete?
A origem dos Zúquete é desconhecida. Sabe-se que também existe o apelido Zúquete no Brasil, mas desconhece- se se os seus titulares a ela pertencem ou não. Eduardo Zúquete, trineto de António Zúquete, explica que a primeira referência que surge ao apelido é com José de Oliveira Zúquete, filho de José de Araújo Nobre e de Inácia Joaquina, naturais das Brancas de Cima, na Batalha. A informação sobre José de Oliveira Zúquete em Leiria aparece com o registo da sua morte, em 1873, quando morre com cerca de 90 anos e já viúvo, na casa do filho na Praça Rodrigues Lobo.
“Recentemente, descobri que José de Oliveira Zúquete terá tido uma irmã, Maria Inácia da Conceição, que casou com João Henriques Moreira, o que poderá fazer a ligação entre as duas famílias.”
Eduardo Zúquete adianta que existem duas correntes que abordam a origem dos Zúquetes: “Uns dizem que haverá uma descendência de David Huguet, o mestre que esteve envolvido nas obras do Mosteiro da Batalha. Outras correntes dizem que a origem vem das invasões francesas. Antigamente era habitual atribuir o apelido de um padrinho. O mais provável é que Zúquete apareça daí, até porque se diz que David Huguet não deixou descendência.”
“José de Oliveira Zúquete terá migrado para Leiria também fruto das invasões francesas e da muita turbulência social que estas causaram.” Teve cinco filhos, mas dois deles morreram ainda pequenos: António de Oliveira Zúquete, Manuel de Oliveira Zúquete, Joaquim de Oliveira Zúquete, Cipriana Lúcia de Oliveira Zúquete e Francisco de Oliveira Zúquete.
A marca Korrodi em Leiria
A família Korrodi é uma das mais conhecidas em Leiria, estando a sua assinatura presente em muita da arquitectura da cidade. Ernesto Korrodi nasceu em Zurique, na Suíça, em 1870. Filho de João Henrique Korrodi, professor de liceu, frequentou as escolas do 1º e 2º grau de ensino, passando para a Escola de Arte Industrial aos 15 anos, onde concluiu o curso de escultor decorador, juntamente com o de professor de desenho.
Segundo nota do Arquivo Distrital de Leiria, ainda antes de ter concluído 20 anos e após uma curta estada em Itália, aceitou o lugar de professor de desenho num concurso aberto para a delegação do Governo Português em Berna. Chegou a Portugal em 1885, começando a leccionar em Braga. Já em Leiria casou com Quitéria da Conceição Maia e naturalizou-se português. Docente na Escola de Desenho e Escola Industrial Domingos Sequeira, manteve o seu interesse pela arquitectura religiosa e militar medieval, elaborando diversos estudos de monumentos, como são exemplo a Abadia de Alcobaça e, em particular, o Castelo de Leiria.
A partir de 1897, Korrodi começou a trabalhar como arquitecto dando início a uma produção profícua que se estendeu por projectos de habitação de rendimento, edifícios públicos, sedes de Banco Nacional Ultramarino e do Banco de Portugal até palacetes para famílias abastadas. Korrodi é o autor do polémico projecto de remodelação do castelo, das primeiras obras de reconversão do antigo Mercado de Sant’Ana e da ampliação da Moagem Leiriense.
Os Pratt passaram em Leiria por acaso
Francisco de Pratt é a primeira pessoa com este apelido de quem aparecem registos em Portugal, nomeadamente a matrícula no Colégio Militar de seu neto José Miguel. Seria francês e foi casado com Margarida Mourguez, de quem teve, pelo menos dois filhos. Henrique de Pratt terá nascido em França, onde seria Conde de Pratt, segundo a família. Veio para Portugal no final do séc. XVIII. Parece ter casado com uma Ana Luísa, mencionada na matrícula no Colégio Militar em 1812 de seu filho José Miguel como sua mãe. Vítor Pratt, que fez a sua juventude em Leiria, conta que o pai Mário e a mãe Odette da Silva foram para Leiria após saírem de Angola, onde o pai trabalhava.
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