Conheci o João de uma forma peculiar. Ninguém nos apresentou um ao outro, nem nunca alguém me tinha falado dele. Fui ao Praça Caffé, como de costume, ler o Ípsilon e beber um abatanado, mas não havia mesas disponíveis. Mesmo ao meu lado, vi um gajo a escrever e a desenhar umas cenas num pequeno diário gráfico, e meio desesperado perguntei-lhe se me podia sentar com ele, já que estava sozinho. Dum modo simpático disse que sim e demos uns dedos de conversa. Pedi-lhe, um pouco atrevidamente se podia ver o caderno onde desenhava, e folheei-o um pouco, pausadamente. Eram maioritariamente estudos de cor, e pequenos parágrafos escritos que não li, porque fiquei com a sensação que era algo mais privado. Presumi pelo diário, que ele estava de algum modo ligado ao mundo das artes, e estava certo, era estudante de artes plásticas, nas Caldas da Rainha, onde eu também estudei, e morava nos Marrazes, onde eu também morei.
Passados uns anos, propuseram-me uma residência no atelier da agora extinta Eletricidade Estética, no Centro de Artes – Caldas da Raínha. Num dos outros espaços do complexo, o João partilhava estúdio com outro pintor. Durante um mês e piques cruzavamo-nos com frequência, e começamos a desenvolver uma pequena relação de amizade. A pintura dele mostrava figuras humanas aqui e ali, de um modo um pouco tímido, mas determinado. Curti a cena dele e trocamos umas pinturas entre nós.
O trabalho dele desde então tomou proporções gigantescas. Primeiro na escala, as pinturas eram todas pequenas, agora vão de pequenas a enormes. As figuras outrora isoladas sobre fundos monocromáticos, agora apresentam-se em contextos interiores e exteriores luxuriantes e acompanhados de outras figuras. Desenvolve também naturezas mortas, com flores e gatos, em pequenos formatos, riquíssimas em pintura.
São conhecidas as suas pinturas, por trazerem para a mesa de uma forma fresca e original questões de sexualidade/homossexualidade masculina, mas neste texto não me vou focar nisso. Vou focar-me na parte da pintura propriamente dita, na parte que está ligada ao manuseamento de tinta, o “como?” por assim dizer, ao invés do “o quê?”.
O “fazer” do João é delicado, mas não dum modo polido. É gestual, espontâneo e vigoroso, como as pinturas do Jean-Michel Basquiat, mas cirúgicas e sucintas como as do Joaquín Sorolla. Nota-se que foi feito a um ritmo acelerado e que ora abraça, ora repinta, com uma olhar selectivo, os escorridos e happy little accidents que resultam deste tipo de processo. As telas estão cheias de texturas e padrões, geralmente em roupas que as figuras vestem ou despem, mas também em contrastes de luz e sombra que coexistem lado a lado. Os elementos naturais, são geralmente apresentados em forma de paisagem e maioritariamente compostos por árvores e vegetação variada. Aqui também encontramos uma diversidade de tramas de cor, que impressionam de tão simples mas fidedignas que nos parecem. Em imensos trabalhos podemos ver arquitecturas e objectos rendidos de uma forma precisa e elegante. Poderia enumerar muitas mais qualidade das suas pinturas, mas vou apenas referir mais uma. Das coisas que mais aprecio num pintor é o modo como pinta pele. É complexo pintá-la bem, perguntem a qualquer pintor. É geralmente uma assembleia de cores claras, muito pouco contrastadas, colocadas de forma excludente ao lado de cores escuras também pouco contrastadas. E nisto o João é mestre, usa grandes massas de cor, pouco sobrepostas, pouco precisas, pouco detalhadas, mas muito bem conseguidas. É exuberante e original.
Investiguem o trabalho deste jovem pintor que vale a pena. Para mim, o pintor português mais interessante da sua geração. A great painter – diria.