Quando Vanessa Farinha entrou na Escola Superior de Dança, os pais ainda lhe chamaram a atenção com um “tu vê lá”. Contudo, estava tudo muito mais do que decidido. Era daquilo que realmente gostava e queria mesmo fazer.
“Nunca lhe cortámos as pernas. Dissemos-lhe os prós e os contras, ela é que decidiu e nós apoiámos. Ao menos faz aquilo que gosta”, diz a mãe Luísa, orgulhosa dos feitos que a filha tem alcançado no breaking – ou breakdance – que a poderão levar à estreia da modalidade nos Jogos Olímpicos, em 2024.
A paixão era antiga. Desde bem pequenina que andou no ballet e na dança contemporânea, mas lá pelos 14 anos, quando começou a assistir ao clips dançados de Justin Timberlake.
Ficou fascinada e entrou de imediato nas aulas de hip-hop no ginásio à porta de casa, nos Pousos. “Achei muita piada, porque era completamente diferente”, explica a bailarina.
Em 2010 entrou na Escola Superior de Dança, em Lisboa, mas as variantes de que mais gostava tinha de treinar na Estação do Oriente com o grupo de um amigo b-boy. Rapidamente começou a entrar em competições e a ganhar fama nas battles.
Para a família, esta vida num universo literalmente underground sempre foi encarado de forma “tranquila”. “Quem não está no meio pode temer pelo aspecto diferente de alguns deles, mas são todos humildes, gente boa”, sublinha a mãe.
Já com o curso superior concluído e o estágio terminado, restava-lhe ser professora de dança, mas Vanessa não quis que assim fosse. “Queria dançar primeiro. Fazer parte de alguma companhia, por exemplo, e só ensinar mais na parte final da minha carreira de dançarina. Em 2014 decidi ir para Londres.”
Neste mercado com “muito mais oportunidades nas áreas das artes e da cultura”, habituou-se rapidamente ao frio, à chuva e aos dias cinzentos, porque acreditava que só lá poderia acordar, todas as manhãs, de sorriso nos lábios, a fazer o que realmente gostava.
Contudo, de início, não foi bem assim, “Fiz algumas audiências de contemporânea, mas como a concorrência em Inglaterra é muito maior não entrei nas companhias onde queria.”
Vanessa viu-se forçada a encontrar um trabalho num restaurante, porque as contas tinham de ser pagas, mas ainda jogava com um trunfo na manga. Tinha a saída do breaking, que continuava a treinar.
“Em Inglaterra o nível é muito maior e há competições quase todos os fins-de-semana, mas decidi que ia tentar durante um ano. Se não resultasse, já tinha a certeza de que não era para mim e que tinha de me dedicar a outra coisa qualquer.”
A verdade é que as coisas aconteceram. Começou a ganhar e a viajar para battles cada vez mais importantes. Para competir, mas também para ajuizar ou ser mera convidada.
“Atingi um nível que nunca imaginei. Os meus ídolos já eram os meus concorrentes”, admite, convicta de que “dedicação e persistência fazem os sonhos tornar-se realidade”. E ganhou competições onde “nunca na vida” pensou, sequer, ter a “oportunidade de pisar o palco”.
Em 2019, ganhou um dos eventos mais badalados, o Red Bull BC One do Reino Unido e apurou-se para a final mundial. Em 2020, voltou a estar na final da mesma competição, mas perdeu-a.
Já este ano, a prova passou a disputar-se também em Portugal – decorreu no passado fim-de-semana – e Vanessa não deu hipóteses à concorrência. “Tem outro sabor, porque é o meu país. Faz mais sentido. Treinei muito para aqui chegar e esse é mesmo o segredo, é o treino que faz a perfeição.”
[LER_MAIS]Antes disso, a 14 de Agosto, venceu, também no Porto, o Campeonato Nacional de Breaking, o primeiro passo para a qualificação olímpica com que tanto sonha, prevista para 2024, ano de estreia da modalidade no calendário.
Liberdade no palco e reacção à música
De uma forma resumida, o breaking pode ser dividido em três partes: a dança que se faz de pé (toprock), a dança que se faz no chão (footwork) e as partes acrobáticas (powermove). A principal virtude que a b-girl Vanessa utiliza para derrotar as rivais é precisamente combinar “de forma original” as acrobacias e o trabalho de chão.
“Ser uma arte dominada maioritariamente por rapazes faz-me querer quebrar barreiras e mentalidades. É muito desafiante e faz puxar os limites do que pensamos ser possível. As raparigas trazem outra abordagem, o que é muito interessante e inspirador”, sublinha.
Em mentalidade, o breaking “é muito similar às artes marciais e ao boxe”, mas com a adição de “música energética que faz com que a adrenalina esteja no máximo”. “Quando pisamos o palco não há tempo para dúvidas. É tempo de trazer o nosso melhor jogo e dar o nosso melhor show. No fundo, mostrar que merecemos estar naquele lugar”.
Ainda assim, “nem sempre ganha o melhor bailarino, aquele que tem os melhores movimentos”. As battles são jogos mentais, há estratégia e táctica. O que jogar melhor ganha e para isso é preciso estar preparado, até psicologicamente.
“Há muitas pessoas que não conseguem passar do treino para o show, porque ali há adrenalina, as luzes, o palco, a marca que patrocina o evento e tudo isso pode causar pressão. A melhor forma é praticar nos eventos locais, estar familiarizado com o palco, para quando estivermos em competição não deixarmos a pressão tomar conta de nós.”
Os dois dançarinos, que se defrontam à vez, não sabem que música o DJ vai tocar. O improviso é, pois, fundamental. “A adaptação tem de ser rápida. Existem combinações de movimentos que são premeditados, mas combinar com a música é desafiante.”
O júri avalia a performance de acordo com o “quão original, interessante e extraordinária” foi a adaptação da dança à música. “Temos a liberdade de exprimirmos o que nos passa na altura. Reagimos à música, à interacção com o adversário e com o apoio do público. Temos liberdade em palco e podemos fazer o que queremos. E é tudo muito subjectivo, podemos ver estilos e personalidades diferentes em palco.”
“As pessoas olhavam com algum desprezo e até repulsa, que era o estilo de rua que não serve para nada, que era limpar o chão, que era dançar com os sem-abrigo. Nessa plataforma tão grande vão perceber que é muito mais do que dança e que leva pessoas em dificuldade a ver uma luz ao fundo do túnel.”
Os próximos meses vão, pois, ser agitados, com a realização, a 6 de Novembro, em Gdansk, Polónia, na final mundial do Red Bull BC One, e a 4 de Dezembro, em Paris, França, a decisão do Campeonato do Mundo de Breaking. “Quero lutar pelos títulos, é esse o meu objectivo. Ser a melhor entre as melhores.”
Hoje, para Vanessa, o breaking é tudo. É profissão, é hobby, é paixão e até é terapia. “Quando os momentos mais difíceis chegam, sei que posso sempre ir treinar e usar a única coisa que está sempre lá, que é a dança, nem que seja para me abstrair dos problemas.”
Mas para ser um b-girl vencedora, também tem de ter de fazer sacrifícios. “Dia sim, dia sim, ir treinar mesmo não querendo. Somos artistas, dançamos, mas temos de ter mentalidade de atleta.”