Uma multidão de garridos seres de faces humanas, tentáculos, caudas, garras e bicos, compunha o cortejo de Olharápos da Expo 98, que desfilava assim que o sol se punha no recinto junto ao Tejo, emprestando um lado exótico e colorido ao maior e mais internacional evento que Portugal recebera até então. Foi assim, todos os dias, entre 22 de Maio a 30 de Setembro de 1998.
Além do espectáculo multimédia, Accqua Matrix, aquela parada de seres fantásticos era o momento alto do quotidiano. As grandes figuras foram esculpidas em espuma, silicone, látex, tinta e metal, pelas mãos sábias de artesãos das Caldas da Rainha, orientados por Jorge Gameiro, especialista em animatrónica – arte de dar vida a personagens ou seres vivos através de dispositivos robóticos.
Natural de Santiago de Litém, Pombal, o criativo que transformou os desenhos unidimensionais de um pré-projecto de Gorjão Clara, pensado para a Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994, em seres com profundidade e vida, quer agora criar um museu com os 12 protótipos dos Olharápos, na sua terra natal e, como bónus, abrir no concelho um museu de cera com episódios da História de Portugal.
Antes disso, os Olharápos vão poder ser vistos, num animado cortejo, durante mais uma edição da Mostra Gastronómica da Região Alitém, que decorre, este Verão, na vila de Albergaria dos Doze.
Alguns têm dois, outros, três metros de altura e por agora os animais e seres fantásticos estão armazenados numa garagem da Junta de Freguesia de Alitém, em Santiago de Litém, enquanto não se encontra um espaço mais condigno para estas relíquias da história contemporânea portuguesa.
"Tenho uma promessa do presidente da Junta de que se irá arranjar um lugar melhor”, conta Gameiro, numa tarde de chuva, enquanto examina, preocupado, o estado de conservação dos originais que serviram de modelo para criar os moldes que deram à luz todos os Olharápos que povoaram a Expo 98.
O criativo tem mais planos de futuro, caso haja abertura e apoios oficiais ou privados. A Junta de Freguesia também lhe cedeu uma escola primária desactivada na localidade da Junceira onde guarda boa parte do seu espólio. Cenários, figuras animadas e em cera, espadas, capacetes, figurinos, protótipos dos pastorinhos de Fátima, caricaturas de Angela Merkel e artigos vários juncam o espaço.
É ali que Jorge Gameiro quer criar um museu de cera com cenas da história de Portugal. A ideia é utilizar um formato blackbox, com 17 cenas e cerca de 40 figuras históricas em tamanho real, com animação real. “Ao regressar a Santiago de Litém, depois de dezenas de anos fora, quero fechar o círculo”, diz.
Fumo colorido e bolas de sabão
Há 20 anos, criar os 72 Olharápos foi um trabalho de grande habilidade e mestria. Foi preciso [LER_MAIS] criar técnicas de trabalhar materiais que eram novos na área e até criar máquinas especiais para fazer a injecção dos moldes. Jorge Gameiro teve mesmo de cobrar favores e ficar a dever outros para conseguir, com a sua equipa das Caldas da Rainha, concretizar o projecto.
Na concepção original e nas ideias discutidas com os coordenadores do projecto, explica o criativo, os Olharápos iriam empregar várias técnicas de animatrónica e serem mais autónomos, sem precisarem do movimento emprestado pelos hábeis bonecreiros que os animaram, durante os meses da grande feira de Lisboa, cujo tema era Os oceanos: um património para o futuro.
Dispositivos mecânicos e robóticos fá-los-iam movimentar, mexer os olhos, os braços e as caudas, e expirar fumo colorido e bolas de sabão. "Seriam comandados à distância e o público interagiria com eles, sem se aperceber como eles funcionavam", recorda Jorge Gameiro.
Mas a contenção de custos, promovido pela empresa que tinha organizado a exposição universal de Sevilha, anos antes, haveria de retirar todas as funcionalidades que, para Gameiro, iriam enobrecer aqueles seres fantásticos e enriquecer o sector criativo em Portugal.
"Em Espanha, após os eventos em Barcelona e Sevilha, o conhecimento ficou, através da várias empresas espanholas, que foram criadas para auxiliar as empresas inglesas que foram para lá trabalhar. Com a Expo 98, as empresas de construção civil portuguesas aprenderam com as estrangeiras e tornaram-se internacionais, porém, na área dos conteúdos, nas Caldas da Rainha, isso não aconteceu", conta.
Ainda hoje, diz, trabalha com duas dezenas de profissionais da cidade, mas admite que chegou a alimentar no seu coração o projecto de criar uma verdadeira indústria de animatrónica e museografia de dimensão europeia, em Portugal.
"Eu conhecia pessoas em todas as indústrias ligadas às artes manuais e artesãos que faziam trabalho de grande qualidade. Podíamos ser um dos grandes produtores mundiais de produtos para a indústria de entretenimento e não somos. Perdeu-se uma grande oportunidade. Tínhamos capacidade e talentos, que, entretanto, morreram", lamenta.
“Olharápos são seres da terra e não do mar”
Embora semelhantes a gárgulas saídas de sonhos fantásticos, a ideia original eram os Olharápos serem apenas monstros marinhos, mas o responsável pela área da Animação da Expo 98, João de Brites, nutria uma paixão por Trás-os-Montes e abriu o assento do registo civil, apadrinhando- os e baptizando-os com aquele nome.
"Os Olharápos são monstros da terra e não do mar. São comuns na mitologia transmontana", explica Jorge Gameiro. São seres que nos parecem estranhos, alienígenas, só com um olho, com duas caras e membros reduzidos, mas que, no cenário da Expo, ao som de música e com movimentos coreográficos dos bonecreiros, trabalhados e baseados em estilo contemporâneo, faziam parar a multidão, ávida para presenciar aquele momento único de magia.
De São Bento para Pinewood
Jorge Gameiro nasceu há 68 anos, em Santiago de Litém, Pombal, mas foi, ainda criança, para Lisboa, embora continuasse a ir passar as “férias grandes” com os primos na aldeia natal. Estudou na Escola António Arroio, onde aprendeu a criar comas mãos e deu os primeiros passos na profissão.
Depois, foi para o Reino Unido trabalhar em cenografia nos grandes estúdios de cinema de Pinewood e Shepperton. "As pessoas pensam que aquilo é tudo glamour, mas o trabalho é exaustivo e dá cabo da saúde." Não obstante, foi o trabalho nos estúdios e a experiência na área que lhe valeram a oportunidade de criar os Olharápos.
Antes disso, contudo, chegou a ter uma empresa, com a mulher, numas águas furtadas, mesmo atrás do Palácio de São Bento, onde construía marionetas e trabalhava para o mercado belga, suíço, britânico e alemão. Após a Expo 98, foi escolhido para colaborar na criação das personagens do programa Bonecos Políticos, para a SIC.
A rábula de televisão com caricaturas dos principais políticos e figuras públicas haveria de resultar num sucesso televisivo, rebaptizado Contra-Informação, anos depois, na RTP. "Eu tinha colaborado com o programa original inglês Spitting Image e o Emídio Rangel, que era o director da SIC, queria um programa semelhante", recorda. Mas desentendimentos levaram-no a abandonar o projecto.
"Recusei-me a trabalhar para a Mandala, a produtora, porque não me identificava com o projecto deles", recorda.