Visitar o estaleiro que é, por estes dias, a Quinta da Atalaia, no Seixal, é como entrar de cabeça na célebre canção “Traz Outro Amigo Também”, de Zeca Afonso.
Ou melhor, é andar com essa música na cabeça o dia todo. Porquê?
Porque a festa, que decorre à beira-Tejo, montada com suor e dedicação, sob o calor dos meses de Julho e Agosto, assenta no trabalho voluntário de centenas de militantes do Partido Comunista Português, que, fazendo jus aos versos de Zeca, trazem, para ajudar, outros amigos (não militantes) também.
O espaço destinado à organização do PCP do distrito de Leiria – um restaurante, uma padaria e uma mostra de vidro – está na encosta relvada que constitui o anfiteatro central onde boa parte da programação decorrerá.
Entre os dias 6 e 8 de Setembro, o espírito é o mesmo de uma festa de Verão de paróquia, mas numa escala maior…. Incomparavelmente, maior.
É um dado adquirido que, todos os anos, a Festa do Avante é um momento alto que os militantes do PCP encaram como uma oportunidade de participar num enorme evento cultural com mais de 60 espectáculos, sob ideal da fraternidade.
Dentro do recinto, todos são “camaradas”, sejam eles doutores, engenheiros, agricultores ou um Nobel, como Saramago (que também terá ajudado em algumas edições).
É também ocasião para assistir a comícios onde os ideais da luta de classes, do ambiente, da paz e da luta contra o capitalismo continuam muito presentes.
É também um dado adquirido que há muitos outros, não militantes, que não perdem uma edição, seja pela cultura, seja pela música, seja pelas partilhas com pessoas de outras sensibilidades e opções de vida, seja até pelo famoso “pão com chouriço”, amassado e cozido pela representação de Leiria e que é uma referência no Avante.
Ao lado do palco principal, onde a Sinfonieta de Lisboa irá abrir o festival com um tributo aos centenários dos míticos músicos Carlos Paredes e de Joly Braga Santos, na padaria, está Sérgio Silva, militante de Leiria, que coordena a montagem e desmontagem do espaço e a equipa de 15 pessoas que confecciona a conceituada iguaria.
“O segredo do sucesso”, confidencia, “é o forno. É mágico!”, brinca e adianta que, nesta edição, haverá um pão vegano sem chouriço, mas com uma receita testada no centro histórico de Leiria.
“Vamos usar mil quilos de farinha e, para a versão vegana, muitas azeitonas, cogumelos e cebola”, desvenda.
Cada pão custa 2,5 euros, mas é “um pãozão!”. Na padaria do distrito de Leiria, o trabalho é muito e apenas a diversão é maior, assegura.
“Vemos pessoas de outras correntes políticas na festa.
Aqui, até costumamos vender pão com chouriço a uma pessoa que agora é secretário-geral de outro partido. Este ano, não sabemos se virá. O Isaltino Morais nunca falha!”, assegura.
Desde que o Avante se mudou para a Quinta da Atalaia que Sérgio não falta a uma edição. Antes disso, em 1977, esteve no Jamor, onde ficou marcado pelo ambiente de fraternidade, pelos concertos, pelos comícios. “Viviam-se outros tempos no País.”
A Festa da Paz
Altifalantes difundem música pelo éter e, abafada pelo martelar e risos de quem está a trabalhar, ouve-se “se alguém houver que não queira, trá-lo contigo também, aqueles, aqueles que ficaram, em toda a parte, todo o mundo tem”.
Este ano, o Avante é de celebração dos 50 anos de Abril, e dos 90 do 18 de Janeiro, greve geral nacional que, em 1934, juntou republicanos, anarquistas, comunistas e outros opositores ao Estado Novo de Salazar e que, na Marinha Grande, tomou a forma de um levantamento popular, que seria esmagado pelas forças do regime.
“Para o distrito de Leiria, é uma data especial, até porque agora temos o Museu Liberdade e Resistência, na antiga prisão do forte de Peniche, que só não foi transformado em hotel de luxo pela vontade do povo”, afirma Maria Loureiro.
Natural da Marinha Grande, tinha 14 anos quando foi ao Avante pela primeira vez e nunca mais deixou de marcar presença.
Agora, reserva os fins-de-semana de Agosto para ir para a Atalaia pintar e pregar.
A ajudá-la está Hugo Oliveira. Não é militante, mas já tinha participado na festa noutros anos.
Este ano, sem convite, ofereceu-se como voluntário. Juntou-se ao colectivo da Marinha Grande e passou a ser um camarada da família que edifica a cidade do Avante.
“Sempre gostei da dinâmica e de, aqui dentro, sermos todos iguais”, explica o operário fabril.
Entre turnos, haverá um bocadinho para assistir a um concerto ou visitar a zona internacional.
“Gosto muito de viajar e de conhecer aquilo que há, para lá do que nos mostram na televisão.”
Já Jorge Norte é membro do Secretariado da Direcção Regional de Leiria do PCP e do distrito de Leiria no evento.
É o terceiro ano com esta responsabilidade.
Diz que o Avante, onde participa desde 2012, não é a “festa dos comunistas”, mas a “festa da paz e das pessoas que não se revêem no militarismo e defendem o fim da guerra”.
“É a terra dos sonhos”, resume. Com olhar de quem dirige uma orquestra, nunca perdendo o controlo dos trabalhos, Jorge socorre-se dos versos de outro Jorge, o Palma, para sintetizar: “na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal; na terra dos sonhos, toda a gente trata a gente toda por igual; na terra dos sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar”.
Jorge dá ordem para o almoço e vai esperar, pacientemente, na fila para pagar, com os restantes camaradas. No cardápio, há frango de caril e vinho do Bombarral.
Duas mulheres, dois relatos
Ainda trabalhava na antiga Manuel Pereira Roldão quando foi à FIL, na primeira ou segunda vez que se realizou o Avante.
Depois disso, Etelvina Rosa quase não faltou a uma edição. É uma das mais veteranas participantes do distrito de Leiria.
Naquele tempo, a Marinha Grande ainda era a terra do vidro artístico e do cristal, com um tecido empresarial diferente, onde as fábricas de garrafas e vidro automático eram menos comuns.
“Como trabalhava numa empresa de vidro, comecei a dar apoio à mostra de vidro, no stand com o vidro da Marinha Grande”, recorda.
Peças artísticas de várias empresas locais decoravam cada milímetro do espaço, num cenário diferente do actual onde o vidro da cidade é constituído, essencialmente, por garrafas.
Há cerca de dez anos, Etelvina ficou responsável pela mostra onde, este ano, estarão em destaque as criações dos artesãos Alfredo Poeiras e Adelino Frias.
No caso de Sofia Neves, não há recordações da primeira vez no Avante.
Tinha um mês quando foi com os pais, à Quinta da Atalaia. Nesse ano, o evento tinha-se mudado para a sua casa actual. Agora, 34 anos depois, ajuda a montar o espaço do distrito de Leiria.
E tem o apoio da família, em especial do filho e da filha.
Enquanto dá o seu testemunho, Vasco, o filho de 4 anos, roubou um pincel e “ajuda” a pintar uma das paredes da padaria.
As crianças estão à vontade na Atalaia e “ajudam”, sob a supervisão dos adultos. De todos os adultos, sejam ou não da família natural.
É a primeira vez que Sofia volta desde há vários anos.
Esteve a estudar, depois emigrou e agora está de regresso.
“Talvez não tenha vindo quatro vezes. Voltei para construir a festa, porque me sinto útil nas equipas de implantação. Quando o Avante começa, gosto de passear pelo recinto e de ver coisas que construí e ajudei a criar com carinho”, explica.
Além da oportunidade de entrar em contacto com pessoas de outras zonas do País, do estrangeiro e culturas distintas, Sofia acredita que a festa traz ao de cima aquilo que o ser humano tem de mais importante: a capacidade de se relacionar, de colaborar e de construir em conjunto empreendimentos e relações duradouras.
“São dias para criar amizades, fortalecer laços e iniciar namoros.”
“A Carvalhesa é um arrepio”
A Carvalhesa é uma música popular de Trás-os-Montes, hino do Avante e das iniciativas do PCP.
A primeira vez que se escuta no arranque da festa é, para Mafalda Caldeira, professora de Alcobaça, um dos momentos altos.
Toda a gente pára o que está a fazer e dança ao som das flautas.
“É um arrepio e, na última noite, dá vontade de chorar”, resume Maria Loureiro.
Os princípios de Abril e a camaradagem fazem parte de um evento que é “antes de tudo, político”, mas também ecléctico, com desporto, teatro, cinema.
“Na pandemia, o Avante realizou-se, apesar da polémica e ajudou os artistas a ganhar algum dinheiro. Não houve casos de Covid relacionados com a festa e a organização é referida no Museu Nacional de Farmácia como um exemplo”, referem.