Quando Lourenço, 6 anos, Leonardo, 4 anos, Benedita, 3 anos, e Bela, 20 meses, chegam a casa do “avozito”, na Batalha, a primeira coisa que fazem é calçar as galochas, para andarem à vontade a alimentar as ovelhas, a recolher os ovos da capoeira, a apanhar fruta das árvores, a brincar nos fardos de palha, ou a pendurar-se nos ramos da árvore, onde João Vieira, 58 anos, construiu uma casa de madeira, para fazer actividades com os netos. Ao contrário de a maioria das crianças, os quatro irmãos não têm tablet, nem brincam com telemóveis, e não são tratados como bebés.
Encarregado geral de obras públicas, João Vieira tem flexibilidade no trabalho, o que lhe permite estar disponível para dar apoio à filha, Bárbara, 33 anos, terapeuta ocupacional. Sempre que é necessário, ou ele ou a mulher, Ângela, asseguram os transportes dos netos para o infantário, escola, catequese ou natação. “Chego a levar os dois mais velhos para as obras”, conta. Mas é aos fins-de-semana e nas férias que dedica todo o seu tempo às quatro crianças. “Tento arranjar uma actividade que seja consensual.”
O tempo é passado ao ar livre, no terreno por trás de casa, onde tem ovelhas prestes a ter crias, um carneiro, galinhos, galinhas poedeiras, um galo, cabras, pavões, gansos, um peru, patos bravos, um cão, cágados, passarinhos e um rato intruso, que João Vieira anda a tentar capturar numa armadilha, sem sucesso. A pedido do avô, Lourenço e Leonardo vão buscar laranjas junto à árvore, e colocam-nas no comedouro. Assim que se apercebem, as ovelhas e o carneiro correm em sua direção, para disputar os frutos.
Apesar da diferença de tamanho em relação aos animais, os dois irmãos não se deixam intimidar. “Quando tinham a idade da Bela, andavam à boleia de um carneiro mansinho”, recorda o avô. Logo ao lado, fica o galinheiro. Lourenço mostra, orgulhoso, os “ovos galados”, numa caixa de ninho. “Explico-lhes que o galo vai dar um beijinho à galinha, e ela fica boa para dar pintainhos”, conta. “Quando nascem, é uma festa.”
Ajudantes de marceneiro
Além dos diferentes espaços para os animais, de barracões, de um pequeno tractor, e da casa na árvore, a propriedade tem ainda uma piscina, um lago, baloiços, um poço, uma cozinha onde fazem petiscos, e uma marcenaria, para onde João Vieira leva os netos, que o “ajudam” em diferentes tarefas. “Quando os dois mais velhos eram pequeninos, punha-lhes auscultadores e máscaras, por causa do barulho e do pó, enquanto trabalhava, e dava-lhes um martelo pequenino”, recorda.
As ferramentas “a fingir” são agora usadas por Benedita, porque os dois irmãos mais velhos já utilizam parafusadoras eléctricas verdadeiras, sob o olhar atento de João Vieira. Não há muito tempo, foi confiada aos três a tarefa de envernizar um banco. “Sabem como se fazem as coisas, e como funcionam”, garante o avô, orgulhoso. Para tal, vai partilhando com os netos ensinamentos. “A ideia é dar-lhes conteúdos ligados à natureza, e à sobrevivência. Estas coisas básicas fazem-nos crescer”, acredita.
Embora deixe as crianças andarem à vontade, João Vieira é atento e cuidadoso. Assim que se apercebeu que Leonardo estava “quase a voar” do baloiço, pediu-lhe para abrandar, e o neto obedeceu de imediato. Pouco depois, aproximou-se e pediu ao avô para lhe descascar goiabas, apanhadas da árvore. “Já lavaste as mãos?”, pergunta-lhe João. Após seguir as indicações do “avozito”, a criança de 4 anos retira goiabas da fruteira, apanha uma taça, e entrega-lhe uma faca grande pelo cabo, tal como João lhe ensinou. Sem interromper uma única vez, o menino aguarda pacientemente que o avô descasque as peças de fruta.
Empenhado em criar bom ambiente e em gerar consenso na empresa onde trabalha, para que as pessoas se sintam bem, João Vieira tenta transmitir esses valores aos netos, assim como partilhar com eles conhecimentos do dia a dia, que podem vir a ser-lhes úteis. Em vez de dizer seis ou 12 ovos, usa a expressão meia ou uma dúzia, tal como prefere dizer um quarteirão, em vez de 25, ou meio cento, em vez de 50, para que adquiram esses conceitos. Em relação à alimentação, preparada pela avó Ângela, as crianças também foram habituadas a comer verduras, e sopa grossa, igual à dos adultos.
“Quando viemos de férias, pedimos sopa de feijão para todos num restaurante, e a funcionária perguntou se era passada. Respondemos que não”, conta João Vieira. “Passado pouco tempo, veio a dona confirmar se a funcionária não se teria enganado. Tivemos de lhes explicar que os meus netos estão habituados a comer a sopa com pedaços”, refere, a sorrir. Defensor deste modelo de educação com “milhares de anos”, ensina os netos da mesma forma que ensinou os dois filhos. “Eles [netos] não são meus, são do mundo. Têm de cair, e de aprender.”
Tablets não
A próxima grande aventura que a família vai proporcionar às quatro crianças é uma viagem aos Açores. “Oferecemos-lhes legos de um avião, porque vão voar pela primeira vez, um livro sobre os Açores, e outro sobre vulcões”, revela. “Até Fevereiro, vai continuar a haver conversas sobre a viagem, para os motivar”, garante. “São muito curiosos, e dão-me uma alegria muito grande. Tentamos que sejam uma versão nossa aperfeiçoada”, observa. Sem tablets, e sem telemóveis. “Não quer dizer que não conheçam a tecnologia, mas estão a tempo de aprender.”
Eugénia Mendes, 69 anos, também critica os pais que recorrem às tecnologias, em vez de brincarem com os filhos. “Passo-me dos carretos quando vou a um restaurante e vejo crianças com tablets”, afirma. “As pessoas são muito materialistas”, lamenta. Viúva, prefere brincar com legos, com jogos didácticos, com bonecos, e jogar à bola com o neto Afonso, de 20 meses, de quem cuida, enquanto a mãe Margarida, 33 anos, professora do 1.º ciclo, vai “ganhar tostão”. “Educo-o como a minha mãe me educou, e como eduquei a minha filha.”
Assistente técnica na Escola Básica e Secundária Henrique Sommer, na Maceira, Leiria, Eugénia Mendes reformou-se aos 66 anos, mas continua a fazer trabalho administrativo, como voluntária. “Gosto muito de papéis”, justifica. A única coisa que pede em troca é para ir às excursões. Desde que Afonso nasceu, limitou-se a ajustar os horários a que vai à escola, a poucos metros de casa, para garantir que o menino dorme as sestas. Por vezes, trabalha à noite, e chega a sair às 23 horas. De dia, quando tem de se concentrar nas tarefas, deixa o neto com a colega da biblioteca, onde se entretém com legos.
“O meu neto é muito dado, é dócil, não tem medo de nada, e come de tudo, sozinho”, garante Eugénia Mendes. Presença constante na escola, onde todos o conhecem, o pequeno Afonso não anda em “roda livre”. “Não o deixo fazer tudo o que ele quer. Quem manda sou eu”, esclarece. “Às vezes, a minha filha diz que sou ríspida de mais, mas tenho carta branca para fazer o que quiser”, sublinha. Consciente da importância de Afonso conviver com os pais, dá-lhes espaço aos fins-de-semana, mas já sabe que, se estiverem juntos, tem de ser ela a pô-lo a dormir.
Animação constante
Em casa de Conceição Sousa, 63 anos, e de Prudêncio Lopes, 65 anos, na Marinha Grande, a animação é constante quando os seis netos, com idades entre os 4 e os 14 anos, estão juntos. Sobretudo, nas férias, quando a escola e o ATL estão fechados. “Não me vejo sem netos. Dão-nos vida, mas também mais cabelos brancos”, confessa a avó, a sorrir. Ultrapassada a fase mais trabalhosa, em que usavam fraldas, chuchas, e só comiam sopa triturada, agora, os momentos mais complicados são quando há greve de professores ou de funcionários. “Por vezes, temos a nossa vida programada, e não estamos a fazer conta”, explica o avô.
Sempre que é necessário, Prudêncio Lopes assegura o transporte das crianças para as actividades e para as explicações, mas a sua especialidade são grelhados. Conceição também vai buscar os netos à escola, quando é preciso, confecciona as refeições, e acompanha-os. “Chamam-me a generala, porque, volta e meia, tenho de gritar, porque são muitos”, justifica. “Quando estão juntos, entretêm-se a brincar uns com os outros, a jogar à bola, a ver televisão, ou a fazer desenhos, mas quando estão sozinhos tornam-se mais dependentes do telemóvel.”
Quando chegam a casa dos avós, já sabem que a “regra n.º 1” é lavar as mãos. Embora Conceição Sousa tenha a preocupação de fazer pratos de que os netos gostam, quando o almoço não lhes agrada tanto comem na mesma. Por vezes, Prudêncio Lopes tem de os chamar a atenção mais do que uma vez para se portarem bem, mas garante que são respeitadores. “Facilitamos mais do que os pais, mas há regras”, esclarece a avó. Conscientes de que sem os netos, teriam uma vida mais calma, garantem que já não se imaginam sem eles. “É uma felicidade muito grande. Quando estamos de férias ou aos fins-de-semana sozinhos, estamos sempre a falar neles”, garante a avó. “É estimulante, porque aprendemos muito com eles”, acrescenta o avô.