Uma equipa multidisciplinar, do projecto Policromia Monumental – A cor na Capela do Fundador, descobriu e recriou o aspecto do espaço, durante o seu auge do século XV.
Muitos castelos, igrejas e mosteiros eram pintados, por dentro e por fora, com cores berrantes, fortes e contrastantes, usadas como códigos visuais, que colocavam em destaque pormenores e eram usadas como forma de distinção e de importância na sociedade daqueles tempos. Os tons teriam mesmo uma hierarquia própria e eram escolhidos de acordo com significados pré-estabelecidos.
Uma investigação, levada a cabo por uma equipa multidisciplinar, com peritos das universidades de Évora (Laboratório Hércules) e Nova, Instituto Português de Heráldica e do Instituto Politécnico de Leiria, na Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, está a alterar, a concepção romântica de que as pedras dos monumentos e igrejas seculares eram alvas e limpas de qualquer sinal decorativo.
Afinal, ainda no século XV, muitos dos nossos grandes monumentos eram profusamente pintados, coloridos e garridos. As primeiras conclusões da investigação foram publicadas na versão portuguesa da revista National Geographic e vão também ser alvo de um artigo na sua versão norte-americana.
Além disso, as técnicas usadas para a análise dos vestígios de utilização de variadas cores – policromia – podem vir a ser utilizadas, em breve, para estudar as pirâmides maias do Novo Mundo, de modo a descobrir até que ponto, também ali as pedras eram pintadas. Para já, os investigadores concluíram que a Capela do Fundador, ainda hoje considerada uma jóia da arquitectura, perdeu boa parte da sua riqueza visual.
É certo que ainda nos podemos maravilhar pelas engenhosas soluções de engenharia para elevar o calcário ao firmamento, mas perdemos a possibilidade de nos extasiar com as belas cores aplicadas aos nichos e altares, às paredes e arcos e, em especial aos túmulos, onde o dourado, obtido a partir da utilização de uma grande concentração de ouro, era o tom dominante, especialmente nos de D. João I e da Rainha D. Filipa de Lencastre.
“Houve muitas intervenções de adaptação a novas concepções estéticas, e de restauros que implicaram o apagamento completo das policromias da Idade Média, em épocas onde não havia consciência de que a cor era um elemento fundamental da arquitectura medieval. Hoje, já se começa a ter essa noção, mas ainda é uma área de investigação bastante nova”, explica a investigadora da Universidade Nova Joana Ramôa, uma das coordenadoras do projecto, adiantando que a explosão de cores do mundo medieval, que agora se começa a desvendar, não é uma surpresa apenas para o público, mas também para especialistas e investigadores.
“Temos a ideia de que a Idade Média seria cinzenta e escura, mas, de facto, o que nos estamos a aperceber é que as cores faziam parte do dia-a-dia das populações e da cultura, não apenas na época medieval, mas também no tempo dos romanos e gregos antigos”, diz António Candeias.
O investigador do Laboratório Hércules, da Universidade de Évora, instituição que realizou a análise material às cores, brinca e diz que o garrido da decoração daqueles tempos, chocaria com o nosso gosto actual e levar- nos-ia a considerar que se tratavam de “tons muito kitsh”. Afinal, naqueles tempos, poder usar cores na decoração dos grandes edifícios e no interior das casas senhoriais e palácios era também um sinal de status. Quem tinha dinheiro, podia dar-se ao luxo de ser exuberante.
A policromia não era, contudo, generalizada. Joana Ramôa explica que, dependendo da ordem religiosa, poderia existir ou não cor a decorar os edifícios. “É pouco provável que a Igreja do Mosteiro de Alcobaça fosse pintada, pois os monges da Ordem de Cister veneravam a discrição e a simplicidade.”
O mesmo não se passava na maioria dos edifícios monásticos e, muito menos, no Mosteiro da Batalha, que chegou a ser uma das mais importantes universidades eclesiásticas portuguesas. “Ali, a cor tinha um papel fundamental. Tinha um valor estético, permitia criar determinadas leituras simbólicas e chamar a atenção para aspectos da estrutura arquitectónica. Por exemplo, a fachada da Igreja do Mosteiro era toda pintada, com as figuras representadas a ostentar um código de cores que lhes dava maior significado. Dificilmente, os tons seriam aplicados apenas de acordo com o gosto do artista”, diz a historiadora da arte.
O número de edifícios em Portugal onde a policromia se manteve é pequeno. A destruição e limpeza das pinturas das paredes dos monumentos é um fenómeno quase transversal em toda a Europa e que está ligado não apenas à exposição dos edifícios ao rigor dos elementos e à passagem do tempo, mas também com intervenções que as taparam com estuque e talha dourada ou de acordo com concepções estéticas românticas, que não davam valor aos artistas locais, autores das decorações dos mosteiros e castelos.
“Por bem”
O director do Mosteiro da Batalha, Joaquim Ruivo, aponta, orgulhoso, o tecto junto aos túmulos da Ínclita Geração. Lá no alto, vemos a aureola de um anjo e, mais à frente, um pergaminho com [LER_MAIS] palavras desenhadas. É a “última grande descoberta”, feita por si, há cerca de um mês. “Agora que sabemos que existem, as pinturas são óbvias”, diz. A Capela do Fundador foi muito afectada pelo Terramoto de 1755, tendo desabado um grande coruchéu que a encimava. Embora, no interior, a estrutura se tivesse aguentado, a cúpula começou a deixar entrar água e, rapidamente, as pinturas sofreram a acção da chuva.
O telhado não foi logo reparado e, décadas mais tarde, aconteceram as Invasões francesas (1807-1810). A calmaria regressou, mas foi sol de pouca dura e o telhado permaneceu com danos estruturais. Durante a Guerra Civil de 1830-1834, com a expulsão das ordens religiosas, deixou de haver frades que tomassem conta do edifício.
Passaram-se décadas até que os estragos foram finalmente reparados, a maior parte das pinturas e policromia foram raspadas. Segundo os investigadores, muitas delas deveriam estar tão degradadas que seria impossível fazer diferente, mas outras ainda estariam em bom estado.
Aí, a opção pela destruição foi baseada na estética de quem não via valor naquele património visual de valor incalculável. Nos arcos do octógono central do Panteão, ainda se podem ver tons rubros, negros, azuis e dourados e o escudo da Casa de Avis, aqui e ali, exibe ainda, orgulhoso, os seus vermelho e verde. No topo da abóbada, está escrito em estilo cursivo, repetido até exaustão e quase apagado, o lema de D. João I: “Por bem!; Por bem!; Por bem!…”
António Candeias, explica que o estudo, agora terminado, foi feito através da análise in situ, com recurso a fotografia técnica ultravioleta, seguindo-se a análise, com métodos não invasivos, após o que se seguiu a recolha de micro-amostras para estudar a constituição dos pigmentos e de outros materiais.
“Conseguimos entender como seria este espaço e podemos, no futuro, criar um conjunto de soluções para o público poder perceber e desfrutar toda a beleza do local, através da aplicação de tecnologia digital”, refere Candeias. Pretende-se, no futuro, uma recriação virtual do espaço, como ele seria há séculos, no auge do seu esplendor, que será mostrada aos visitantes, provavelmente com recurso a técnicas de videomapping.
Equipa multidisciplinar
Joana Ramôa, explica que a investigação deu os primeiros passos, quando orientava a dissertação de mestrado de Begoña Farré Torras, uma aluna interessada no estudo da policromia dos túmulos dos infantes, na Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha.
“Ela foi recolhendo fotografias onde ainda era visível o uso da cor e começámos a falar de um projecto futuro, onde se pudesse reconstituir a policromia origina”, recorda. O tempo passou e um dia, o destino voltou a juntar as duas e recordaram o velho projecto.
Nas mãos, tinham apenas a observação à vista desarmada dos vestígios de cor, e não sabiam se seria possível tirar conclusões importantes, porém, tinham a convicção de que era o momento certo para avançar com a ideia.
“Contactámos o director do Mosteiro da Batalha, Joaquim Ruivo, e a nossa ideia foi acolhida com entusiasmo”, conta. Faltava só o financiamento. O Instituto da História de Arte, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova, de Lisboa, foi o primeiro a dar o seu apoio a este trabalho pioneiro em Portugal e no Mundo.
A verba acabaria por ser complementada por um financiamento para projectos na área da Língua e Cultura Portuguesas, da Fundação Calouste Gulbenkian. As duas historiadoras da arte da Universidade Nova reuniram uma equipa multidisciplinar, com 15 pessoas, que congregou investigadores do Laboratório Hércules, da Universidade de Évora, que fez o estudo dos pigmentos e dos vestígios de pinturas e murais, do Instituto Português de Heráldica e do Instituto Politécnico de Leiria, que se encarregou de uma recriação a três dimensões, que possibilitasse um olhar virtual à capela, com as suas cores originais.
A 14 de Agosto
Espadas e escudos dos reis regressam à Batalha
A Capela do Fundador vai mostrar um pouco daquilo que terá sido noutros tempos, com uma exposição com alguns dos bens reais que ali estiveram depositados.
A espada de D. João I, temporariamente cedida pelo Museu Militar, vai voltar ao nicho na parede, onde repousou durante séculos, para uma exposição que terá início no dia 14 de Agosto.
A data do aniversário da Batalha de Aljubarrota, onde as forças portuguesas e inglesas que apoiavam a pretensão de D. João, mestre de Avis, ao trono nacional, venceram as forças castelhanas, francesas e portuguesas, foi propositadamente escolhida.
A esta arma real, juntar-se-á a réplica da espada de D. João II, recriada pelo historiador e espadeiro Jorge Santos, a partir dos desenhos de Domingos Sequeira, e os elmos originais de torneio, de D. João II e do príncipe Afonso, que eram revestidos a ouro e prata. A espada do fundador da Casa de Avis ficará até Agosto de 2019. “Essa é a réplica da espada que o príncipe D. João, futuro rei D. João II, empunhou na Batalha de Toro, em Castela, onde lutou pelo trono daquele país, durante a Guerra de Sucessão de Castela, entre tropas portuguesas e castelhanas ao lado do rei português D. Afonso V, e castelhanas isabelinas de Fernando II, rei de Aragão, Leão e Castela”, explica o espadeiro.
Outro armeiro, Miguel Sanches de Baena, recriou também uma réplica do escudo de torneio de D. João II. A peça tem a curiosidade de ter sido criada a partir de madeira de carvalho do século XV, recolhida nas ruínas de um castelo.
Notícia corrigida às 16:30 horas, de 8/8/2018 para alterar o nome do espadeiro que criou a réplica da espada de D. João II