Anda vadio pela rua, e lá anda pela estrada. Ele e uma bicicleta. Mais nada. Ele de colete fluorescente, equipamento obrigatório em cada corrida, passando assim pela gente como se passasse pela própria vida. É uma bicicleta vulgar, mas parece um foguetão que o leva sempre a voar sem nunca sair do chão. Já o apanhei a pedalar, já o apanhei ao lado dela.
Depende do lugar, parece uma caravela e ele um daqueles marinheiros antigos de cara cansada e postura forte, passando assim por nada como se passasse pela própria morte. Não se deixa abater. Faça chuva ou faça sol, lá está ele a ser o ciclista que tem na sua imaginação. Uma espécie de artista, de camionista de coração.
O olhar é inquieto, parece estragado, por estar muito aberto a olhar para todo o lado. E o cabelo aos caracóis, quase inexistente, puxado para trás, por um pente. Assim parece, assim é, umas vezes montado, outras vezes a pé. Mas sempre focado no seu objectivo de andar de um lado para o outro, de fazer um percurso que ele tem na sua cabeça. Sempre, todos os dias, a subir, a descer, lá vai ele a ser, a pedalar. A vida não lhe parece ser mais do que aquilo que ela é, uma pista de corrida.
Nunca o vi com alguém. Vejo-o sempre sozinho, destacado do pelotão, o camisola amarela. Talvez a mãe o chame para casa, da janela. Talvez ninguém o chame. Parece-me mais assim. Parece haver pouca gente à volta dele. Pelo menos, para mim, que o vejo todos os dias compenetrado, embora vadio, concentrado, no meio da estrada ou junto ao rio.
Será que ele se imagina numa Volta a Portugal? Será que ele sobe a rua como quem sobe a Nossa Senhora da Graça? A verdade é que ele leva aquilo a sério, e aquilo não lhe passa. Fica-lhe na cabeça como se fosse realidade.
Por mais estranho que pareça, sim, é mesmo realidade. Tudo o que ele imagina, existe. Mesmo para quem olha de fora, e lhe pareça um cenário triste. Ele pega no guiador e lá vai ele sem destino. Talvez a meta seja o amor, mesmo que pequenino.