É estranho o presidente da Federação Portuguesa de Rugby ser de Leiria e a modalidade não ter expressão na cidade.
Claro que é. Custa-me imenso. Embora deva dizer que Leiria não é propriamente virada para o desporto. Há cinco ou seis anos houve uma tentativa, que teve alguma continuidade nos clubes emergentes, mas que tiveram uma ideia, talvez precipitada, de quem não conhece a região, que foi juntar Leiria à Marinha Grande. Era um projecto que esteve ligado ao Politécnico, liderado pelo João Paulo Santos, mas foi perdendo força. Agora é preciso começar de base. Leiria tem relvados por todo o lado, que são muito bons para os miúdos jogarem. Mas temos as Caldas da Rainha, que tem feito progressos importantes e conta com o apoio da Câmara. A Supertaça realiza-se a 5 de Outubro e vai ser lá.
Crescer em Leiria, nos anos 50 e 60 do século passado, foi importante para o interesse que nutre pelo desporto?
Foi decisivo. O meu irmão mais velho, o José, era – e ainda é – apaixonado por desporto. Sabe tudo. Foi o melhor aluno que houve em Leiria. É impossível haver melhor. Os sobrinhos, para fazerem um trabalho, não vão à enciclopédia, ligam ao tio Zé. Era o nosso treinador de atletismo. Já havia pista no estádio, mas não nos deixavam ir para lá e íamos fazer corridas para o marachão. O cronómetro era um despertador antigo e saltava à vara com canas da índia. Pode escrever: o Armando, que era um bandido, não nos deixava jogar à bola nem usar a pista do atletismo do estádio. Mas nós íamos à noite, com uma bola que o meu pai tinha pintado de branco. Quando o Armando descobria, punhamo-nos a fugir.
E o futebol?
Uma loucura. Quando era miúdo tive uma doença grave e deixei de andar durante uns tempos. Jogava futebol a mais! Estive mesmo a patinar. Os médicos disseram ao meu pai que ou ficava um super-homem ou aos 13 ou 14 anos marchava. Tornei-me um tipo agressivo, naturalmente, para me defender. O Braga Barros, o Porém Luís, o Saldanha Ribeiro e o António Garrido eram internacionais e todos eles me puseram na rua, por uma razão ou outra. Era miúdo, franzino, os gajos davam-me e eu também dava.
Consta que é um dos responsáveis pela mudança de nome do Marrazes.
Sim. O meu pai era do Sporting Leiriense, mais tarde foi fundador da União de Leiria, mas eu era do Futebol Clube de Marrazes, que se equipava à Futebol Clube do Porto. Fui campeão distrital de principiantes na primeira vez que o Marrazes foi campeão distrital de alguma coisa. O primeiro golo fui eu quem o marcou e ainda me lembro de cor do nome de todos os elementos dessa equipa. Às vezes, ainda nos encontramos. Mas éramos todos de Leiria, todos estudantes, e achámos que jogar à FC Porto não podia ser. Vamos lá mudar isso, decidimos nós. E mudaram mesmo: passaram à vestir de preto, o símbolo é inspirado no da Académica de Coimbra, mas com o corvo da cidade, e o nome passou a ser Sport Clube Leiria e Marrazes. Era um puto reguila e fui dos que exigiu que fosse assim.
No fundo, era sportinguista e não queria vestir à Porto.
Nada disso. Leiria era um núcleo de verde e branco e em pequenino era sportinguista à força, realmente. Tinha um emblema do Sporting com uns 70 anos, que dei há uns tempos ao meu filho, mas não, sou benfiquista. E sabe porquê? Tem tudo que ver com Leiria! Por regra, as finais do Campeonato Nacional de Juniores disputavam-se no Magalhães Pessoa, invariavelmente entre o Benfica e o Porto, sendo que o Benfica ganhava quase sempre. Alguns desses jogadores do Benfica acabavam por ir estudar e jogar para Coimbra e para a Académica, como o Gervásio, o Maló ou o Artur. Mais tarde, regressavam ao Benfica acompanhando outros jogadores da Académica, como o Artur Jorge, o Toni ou o Rui Rodrigues. Por isso, quando fui estudar para Lisboa, mantendo-me um fervoroso adepto da Académica, comecei a ter uma afinidade especial com o Benfica que ainda mantenho. Mas, olhe, também o rugby surgiu na minha vida por causa de Leiria.
Como assim?
O meu irmão mais velho estava no Técnico e o CDUL teve um encontro em Leiria com a Académica. Para mim, o rugby era chinês, mas um colega do meu irmão, o Matos Chaves, que veio a ser conhecidíssimo no meio, ia jogar e foi almoçar lá a casa. Claro que fui ver o jogo. Chovia que Deus a dava. Havia lama por todo o lado, com aquela luta típica do rugby. Por um lado, estava chateado porque me estavam a dar cabo do relvado, mas por outro entusiasmadíssimo com a luta, o estilo e o comportamento daquela malta.
E acabou-se o futebol.
Estive para ir para a Académica. Era um número 10, pé esquerdo, mas pé esquerdo a sério. Por isso é que era titular nos seniores com 17 anos. Mas não queria ir para Medicina e acabei por optar por Agronomia, que só havia em Lisboa. Estive um ano sem jogar rugby, porque era não era bem amador, recebia umas coisas no Marrazes. E pronto, quando cheguei a Lisboa a minha faculdade era caracterizada – ainda hoje é – por várias coisas: unidade da malta, rugby, touros, copos e estudar pouco. Era malta muito amiga, ninguém comprava livros. Quando chego lá, passo a porta e os mais velhos perguntavam o que fazia. Disse que jogava à bola e eles dizem que não jogaria mais, que ali não havia mariquices dessas. E assim foi. Joguei onde se dá pontapés, a arrière, número 10 ou número 15.
Hoje consegue escolher entre uma e outra modalidade?
Gosto de futebol, mas entendo que o rugby é um desporto muitíssimo mais completo. Tem outros valores, joga-se à mão e ao pé, dá para gordos e magros, e depois é o espírito incrível, particularmente em Agronomia. Sendo presidente da Federação é complicado dizer isso, mas é verdade. Ganhássemos ou perdêssemos, a malta cantava no balneário. Cada um tinha a sua estrofe. Ganhar ou perder não era o mais importante. Queríamos era estar juntos e era por isso que não faltávamos a um treino. O rugby é muito agregador. A pessoa, por si, não faz nada. Precisa mesmo dos outros. E aprende a sofrer, porque aquilo mói.
Diz-se que o rugby é um desporto de rufias praticado por senhores e o futebol um desporto de senhores praticados por rufias.
Não será bem assim, também [LER_MAIS] há rufias no rugby, mas a origem é diferente. Em Portugal, o rugby é um desporto universitário e está associado a elites. É mau que assim seja, mas ainda é um bocado. Em Inglaterra ou na Nova Zelândia é muito popular, nascem com a bola. Há uns tempos houve confusão num jogo entre Agronomia e Direito e ambas as equipas foram castigadas com cinco jogos de campo interditado. Como resolveram? O Direito jogou no campo do Agronomia e a Agronomia no do Direito. É isto que são inimigos? Aqui somos todos amigos. A malta dá-se bem, mas dentro de campo é a sério.
Como vai conseguir fazer do rugby uma modalidade mais popular?
Sou contra o monopólio de Lisboa. Como ganham por muitos, não dão cavaco ao resto do País. Em dez mil praticantes, sete mil são da capital. Não pode ser. Só se pode expandir quando sairmos de Lisboa e para fora do estrato social dos meninos ricos. Na semana passada chegámos à final do Campeonato do Mundo de sub-20, já fomos campeões europeus de sub-18, mas as pessoas nem sequer questionam por que razão, enquanto seniores, já não somos tão bons. Depois apagamo-nos e porquê? Porque são doutores e engenheiros e já não jogam, ou só jogam um bocadinho. Os outros países são melhores porque se dedicam profissionalmente. Treinamos às seis da manhã? Treinamos, é verdade, mas não descansamos o que os outros descansam.
E qual é a solução?
Hoje, o Desporto Escolar não funciona minimamente, mas é precisamente por aí que temos de entrar. No meu tempo havia uma rivalidade brutal entre a escola comercial e o liceu. Os jogos eram a sério. A escola ganhava sistematicamente em andebol, com o Pedro Afra e o Amoroso, e nós ganhávamos em voleibol e basquetebol. O atletismo era repartido. O ténis de mesa normalmente também ganhávamos. Era civilizado, mas muito competitivo. Quem deve dirigir o desporto são as federações. Têm utilidade publica e assumem funções do Estado. O orçamento público tem de contemplar essa situação, sem depender de três ou quatro instâncias. O IPDJ deve, mediante contratos-programa e com o aval das federações, proporcionar aos jovens estudantes a possibilidade de disputarem várias modalidades, entre as quais o rugby. Passa sempre por uma boa divulgação, porque quem não conhece não pode jogar. Também é importante os pais perceberem que é um desporto duro, mas não é violento. Há mais lesões no futebol do que no rugby. E é importante repor academias, os clubes e as associações irem às escolas. Isto tem de ser recuperado, porque gasta-se dinheiro de fachada e o produto final é nenhum.
Não nota que o futebol está a limpar tudo? Agora até vão ter um canal de televisão.
É verdade, mas tem, a meu ver, uma coisa boa, Não fecham a porta a outras modalidades. Estive a almoçar com o presidente da Federação de Futebol e falei-lhe disso. Disse-me que se quisesse fazíamos um protocolo sem qualquer problema. Estão abertos, porque têm um presidente inteligente. Não é um futeboleiro à antiga e isso nota-se. Aquele centro de treinos deles é uma coisa fantástica. Conheço muitos pelo mundo fora e como aquele não conheço nenhum. Ou seja, temos de conseguir aproveitar o que eles têm e tentar beneficiar disso. Sabemos que o rugby é elitista e, talvez por isso, as pessoas gostam de se associar a nós.
A selecção portuguesa a cantar o hino, no Mundial de 2007, colocou o rugby na ribalta.
Cantaram mais do que jogaram, de facto. Mas pronto, as pessoas perceberam que há quem lute por uma causa sem qualquer interesse monetário. Aquela forma de cantar o hino não é por acaso. Agora todos a imitam e ainda bem. Nós, chorávamos todos ao ver aqueles putos a jogar com uma determinação fantástica. Temos um espírito latino, mas português também, com qualquer coisa de diferente na agressividade.
Fala-se mais do rugby de 15, mas a modalidade olímpica são os sevens.
Nos sevens até temos melhores condições morfológicas. E são mais aleatórios. Em 15 não ganhamos à Austrália e à Nova Zelândia, mas em sevens pode muito bem acontecer. Basta que um falhe. Já estivemos no circuito mundial, mas depois houve desinvestimento. Estava a pagar aos jogadores e fui criticado por isso. Mas temos de pagar mais, porque recebíamos apoios por estarmos naquela competição que é vista por milhões e milhões de pessoas. Temos de voltar a investir. O campeonato nacional é um fim-de-semana, não pode ser. Estou a tentar recuperar o que perdemos há cinco anos.