Faltam médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas o Ministério da Saúde revela números elevados de contratações. Como se explica essa carência?
Não podemos ignorar que a ciência e a medicina são áreas em permanente evolução. Se estivéssemos hoje nos anos 80 podia dizer-se que tínhamos médicos desempregados, porque são muitos médicos que estão a trabalhar no SNS. A ciência evoluiu, a complexidade tecnológica, técnica e clínica também se acentuaram e as pessoas vivem mais, felizmente. Temos mais pessoas a viver mais tempo, mas também somos dos países da Europa e do Mundo com maior percentagem de pessoas com doença depois dos 65 anos e isso tem um impacto no sistema de saúde. É necessário um esforço político de reorganização de reformas muito importantes e de financiamento. É patético o reforço que o Ministério da Saúde tem anunciado nestes últimos anos. Nem para pagar as dívidas que foram acumuladas durante este ano serve o reforço de centenas de milhões de euros para o SNS, porque não acompanha a evolução que a medicina teve.
A falta de médicos tem a ver com a saída de profissionais para o privado?
Na sequência de tudo o que referi são necessários mais médicos no SNS do que alguma vez foram precisos. Há uma má organização do ponto de vista da colocação dos médicos e ela tem sido muito evidente nos últimos anos. Não percebo como é que são feitos os mapas de colocação dos profissionais de saúde. Não tenho dúvidas que a área de Leiria tem sido bastante prejudicada. Nas últimas décadas, o distrito de Leiria não foi alvo de uma reflexão profunda, precisamente para suprir essas dificuldades em termos de recursos humanos. Nos anos 80, o projecto de vida dos médicos tinha muito a ver com o SNS. Hoje, infelizmente, sobretudo pela grande dificuldade em terem condições para tratar os seus doentes ou em construir projectos de desenvolvimento nos hospitais, já não. Via-se um sistema de saúde público a edificar-se e os hospitais a crescer. Agora, passámos para uma fase de destruição do SNS. Isso tem um impacto sobre os profissionais de saúde, porque entre escolherem o SNS que continua a ser muito bom, mas que tem uma perspectiva decrescente, de desmoronamento, e escolher projectos de construção, nomeadamente no sector privado, os médicos optam pelo segundo. Neste momento, nem é o privado que paga mais. As pessoas vão, sobretudo, atrás de projectos assistenciais e de condições para poder tratar melhor os seus doentes. É reconhecer alguma dignidade e respeito pelo papel do médico, o que não se está a sentir no SNS. Isso desmotiva muito os médicos. Muitos dos médicos, assim que têm oportunidade, saem do SNS.
O Governo diz que a culpa da falta de vagas para as especialidades é da Ordem dos Médicos. Por que razão há limite de lugares?
Essas afirmações do Ministério da Saúde são erradas. É aquela mentira política para dar a volta à situação. Quem abre as vagas é o Ministério da Saúde, que faz a publicação dessas vagas no Diário da República.
Mas é a Ordem dos Médicos que identifica essas vagas.
Não. Os hospitais pedem vagas e a Ordem dos Médicos verifica a capacidade dos serviços para poderem formar especialistas com qualidade. Depois de ver quais são as condições do serviço, a Ordem dos Médicos reporta ao Ministério da Saúde explicando o que está a correr bem e menos bem, dando soluções para melhorar as condições daquele serviço. Às vezes, estamos a falar de computadores para o médico poder trabalhar, de poder haver salas de blocos operatórios para poder haver cirurgias para os internos poderem aprender. Têm de se criar condições adequadas de aprendizagem. A Ordem dos Médicos aponta quais são os serviços que considera terem esses critérios e premissas. É o Ministério da Saúde, que tendo em conta esta informação, mais a informação do Conselho Nacional de Internato Médico, publica as vagas. A vontade da Ordem dos Médicos é que se aumente com qualidade os serviços para poder haver mais formação. Houve vagas que não foram ocupadas em serviços muito importantes. O Ministério da Saúde em vez de fazer sistematicamente essa acusação deveria reflectir por que é que centenas de candidatos não quiseram escolher nenhuma especialidade. A segunda reflexão que deixaria à opinião pública é o que é que o Ministério da Saúde fez e que condições tem criado aos médicos que não têm entrado na especialidade. Desde 2015 são em média 200 a 300 médicos. São os médicos sem especialidade.
E como podem ser enquadrados?
Esses médicos são profissionais diferenciados. Podem ser colocados em áreas onde são necessários, como na área mais indiferenciada das urgências. São necessários médicos na Direcção-Geral da Saúde, no Instituto Nacional Ricardo Jorge, em várias comissões hospitalares, nas comissões de qualidade, nas comissões de controlo hospitalar. Há uma série de locais onde há falta de médicos e que são necessários para haver uma visão médica sobre aquele trabalho. Desde 2015, a Ordem dos Médicos enviou à volta de 600 relatórios ao Ministério da Saúde reportando quais são as dificuldades dos vários serviços do SNS e apontando várias soluções para poderem ter melhor e mais formação. Sabe quantas respostas recebeu? Zero.
O hospital de Leiria tem capacidade formativa?
O hospital de Leiria é um hospital com profissionais absolutamente excecionais, onde tenho sentido uma vontade muito grande dos profissionais de saúde de fazer, de criar, de crescer e de dar uma resposta de elevadíssima qualidade aos doentes que ali recorrem. É fácil de perceber porquê: o hospital tem médicos – entre outros profissionais de saúde – de elevadíssima qualidade. De muito mérito. Que se esforçam muito, que dão tudo pelos seus doentes, com péssimas condições e fundamentalmente com falta de recursos humanos e por falta de investimento de décadas no hospital. O investimento em recursos humanos no hospital não se faz de um dia para o outro. Em 2018, alertámos por várias vezes o Ministério da Saúde e o próprio conselho de administração. Dissemos: atenção, o hospital de Leiria não é o oásis que se está a tentar vender. O hospital de Leiria está com muitas dificuldades. Dificuldades essas que se não forem rapidamente resolvidas [LER_MAIS]terão um impacto negativo nos próximos anos e poderão inviabilizar alguns aspectos muito importantes do hospital. O principal é o aspecto assistencial, mas também aspectos formativos e até de investigação, entre outros. O hospital de Leiria pode ter dificuldades formativas que não podemos esconder, porque quando há dificuldades assistenciais, há dificuldades formativas, mas ainda mantém capacidade formativa, a qual está a ser analisada muito cuidadosamente pela Ordem dos Médicos. Solicitámos aos colegas da especialidade que fosse verificada a capacidade de formação dos serviços. Isto não é algo que se faça com leviandade, é algo que é feito com muita seriedade. Sabemos o impacto que isso pode ter para um hospital. Após as conclusões que sairão desses relatórios, com muito sentido de responsabilidade, a Ordem dos Médicos fará aquilo que tiver de fazer. As soluções estão todas nas mãos do Ministério da Saúde.
Por que tardam em aparecer soluções, quando este problema se arrasta há vários anos?
Leiria tem várias dificuldades, a principal delas é a falta de recursos humanos associada a um alargamento da sua área de influência. Não podemos ignorar esse aspecto. Leiria cresceu em área de influência, mas não cresceu em profissionais de saúde. Não sei quem se foi lembrar de fazer esta negociata de estender uma área de influência sem ao mesmo tempo exigir o aumento de recursos humanos. Isso foi muito mau para o hospital de Leiria. Foi sobrecarregar um hospital que não tinha condições com aqueles recursos humanos para dar a resposta que tem de dar e está a sofrer nesta altura as consequências dessas más decisões do passado. O Ministério da Saúde ainda vai a tempo de corrigir isso. Há soluções, nomeadamente reforçar os recursos humanos. O Ministério da Saúde sabe o que tem de ser feito para captar e fixar médicos para o hospital de Leiria. Estamos a viver uma situação difícil neste hospital, mas também nos cuidados de saúde primários. Tem de haver incentivos, criação de projectos e as pessoas também têm de ser acarinhadas e bem tratadas, para se poderem fixar.
Tem havido uma maior contratação de médicos tarefeiros, sobretudo para as urgências. Não faria mais sentido contratar para o quadro garantindo equipas permanentes?
Tenho de reconhecer que o responsável do ministério pela pasta dos recursos humanos, que por acaso foi médico em Leiria, o Dr. António Sales, tem sido inexcedível no apoio ao hospital a tentar encontrar todas as soluções, muitas vezes até a fazer trabalho que por vezes nem é de secretário de Estado. Ele até se tem preocupado com os pequenos problemas do hospital que o próprio conselho de administração se deveria também preocupar. Mas isto não se resolve de um dia para o outro. Tem de haver políticas de fundo. Apesar de Leiria ser um distrito do litoral tem muitas dificuldades em fixar recursos humanos. Têm de haver políticas diferenciadas. Os hospitais não podem ser tratados todos da mesma forma. O distrito de Leiria tem dificuldades nos cuidados de saúde primários. Tem gravíssimas dificuldades no hospital. Há falta de médicos de medicina interna, de ortopedistas, de cirurgiões, de ginecologistas/obstetras, de médicos indiferenciados para o serviço de urgência e o Ministério da Saúde tem de ter atenção especial para as particularidades de cada um dos hospitais. E o distrito de Leiria é um distrito que merece uma atenção diferenciada e ela não tem sido dada. Não podemos contar com um secretário de Estado mais dedicado a um determinado hospital. Não fosse o secretário de Estado e o hospital de Leiria estaria numa situação absolutamente catastrófica. Não estando a branquear o que está a acontecer, Leiria tem gravíssimas dificuldades. Insisto, é dos hospitais com mais dificuldades em toda a região centro e merecedora de uma atenção continuada. Tem de haver uma política definida para Leiria, que está numa situação provavelmente que nenhum hospital neste País está. Há uma necessidade de organização dos serviços. Não sei se o hospital de Leiria não é dos únicos do País com aquele número de camas nos dois serviços de ortopedia. Na região centro não há nenhum hospital com dois serviços de ortopedia. Isto depois tem impacto negativo na organização de serviço e na distribuição dos turnos de urgência. Há aspectos de organização também da urgência que estão a ser revistos, mas não podemos resolver estas questões de forma pontual. Não podemos estar sempre à espera que chegue o Inverno, quando há mais episódios de urgência, com situações mais complexas ou quando surge uma pandemia, para nos começarmos a preocupar com os problemas.
O que de mais grave lhe transmitiram os médicos de Leiria, que o deixou destroçado, preocupado?
É uma pergunta muito complicada. O que mais me custa é saber que doentes que recorrem a um serviço de saúde e não conseguem obter a ajuda de que necessitam. À volta disso todas as situações muito particulares que têm acontecido no hospital de Leiria.
Como se pode resolver o problema estruturante das urgências?
O modelo de urgência que temos está completamente errado e tem de ser revisto. É necessário rever o modelo de interligação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares, que é uma absoluta desgraça. A comunicação é muito má, as ligações não favorecem uma fluidez de circulação do doente. Parece que há dois SNS: dos cuidados de saúde primários e depois um SNS dos hospitais. E é preciso reforçar a componente dos cuidados continuados e dos cuidados paliativos. Isto é um problema de fundo e passa mesmo pela reestruturação do SNS. António Arnaut [pai do SNS] referia que o maior valor do SNS são os seus profissionais. Parece que se têm esquecido um pouco desta afirmação. Há uma situação aguda, que precisa de um tratamento urgente e emergente que é a colocação de recursos humanos em hospitais que estão a atravessar uma situação grave. O hospital de Leiria está a atravessar uma situação de grande gravidade, que não se vai resolver deixando as coisas acontecerem ou resolvendo pontualmente. Os ministros da saúde nos últimos 20 anos têm sido muito pouco ambiciosos para o SNS.
Como defende essa melhor articulação entre os cuidados primários e os hospitais?
Conheço os médicos de família do distrito de Leiria e tenho de elogiar o seu trabalho. Têm sido, nesta pandemia e fora dela, inexcedíveis. Não posso aceitar que se diga que pode haver um problema de sobrecarga na urgência porque os cuidados de saúde primários não fazem o seu trabalho. Temos de olhar para isto de forma integrada porque o doente é só um. Tem de haver um maior diálogo. Há uma espécie de terra de ninguém onde alguns doentes não conseguem ser tratados nem nos cuidados de saúde primários, nem nos cuidados hospitalares. Nos cuidados de saúde primários dizem que não têm cabimento para resolver o seu problema de saúde, mas quando vão ao hospital até os acusam de falsas urgências. O Ministério da Saúde sabe muito bem qual é o problema da urgência, mas a verdade é que não se faz nada para evitar que os doentes vão à urgência. Tem de haver literacia para a saúde e quando as pessoas não sabem o que fazer, têm a linha de aconselhamento SNS24, que muitas vezes funciona pessimamente e encaminha mal os doentes. É uma linha que tem de ser aperfeiçoada e ter um maior aconselhamento técnico, nomeadamente médico. Está aqui uma área para aqueles médicos que ficaram sem especialidade e que podem dar o seu enorme, precioso e diferenciado contributo. Não consigo perceber este Ministério da Saúde, que sabe que há um problema, mas que nada faz para o resolver. Bem pelo contrário, nunca a urgência esteve tão grave como está neste momento.
Como estão os médicos a lidar com dois anos de pandemia?
Os médicos estão muito empenhados em encontrar as soluções para esta pandemia em várias áreas. A nível mundial, e não só, estão a tentar encontrar uma solução de tratamento para esta doença e as melhores soluções baseadas nas premissas que conhecemos. No seu dia-a- -dia, estão afincadamente a trabalhar nos seus serviços com imensas dificuldades. Estão muito exaustos. O que me tem sido reportado, nomeadamente no hospital de Leiria, é que há uma falta muito grave de recursos humanos. Quando falo de gravidade é porque esta falta de recursos humanos tem uma repercussão directa naquilo que são os cuidados de saúde na qualidade e na segurança desses cuidados de saúde. Os médicos estão a desenvolver a sua actividade com falta de meios, com falta de recursos humanos, com falta de organização de sistema de saúde. A título de exemplo, os governantes nunca se preparam para este período invernal e parece ser sempre uma surpresa. Sabíamos que íamos ter um aumento de infecções por Covid-19 e de infecções respiratórias, e que muitas pessoas idosas, com polipatologias iam nesta altura do ano ficar descompensadas, mas parece que todos os hospitais ficam sempre apanhados de surpresa. Nunca há uma antecipação. Esta situação está a acontecer no hospital de Leiria, que está a atravessar uma situação muito difícil, provavelmente a mais difícil da região Centro.
De que forma os jovens médicos enfrentaram a morte precocemente?
Somos todos médicos e temos de nos sujeitar àquilo que a adversidade da natureza nos colocar. Perante uma pandemia tenho de me adaptar, ser resiliente e ajudar os doentes. Nós, médicos, temos a obrigação de ajudar as pessoas, em qualquer circunstância. No início da pandemia víamos profissionais de saúde a chorar, porque viam morrer os colegas ao seu lado. Cheguei a ver fotografias de médicos com sacos de plásticos nos pés e atados com uma corda, porque não tinham protecções para os pés. Vi médicos na rua a cumprimentar a família na varanda, porque tinham medo de levar a morte para as suas casas. Não tivemos médicos especialistas, internos, ortopedistas… Tivemos médicos. E os médicos têm de ir para a linha da frente quando é necessário. Houve uma calamidade, algo completamente inesperado. O que os médicos internos fizeram foi absolutamente fabuloso. Colocaram de lado até aquela que é a sua formação de base na sua especialidade, com um altruísmo que é próprio dos médicos, para salvar e melhorar a situação de saúde das pessoas. Os portugueses não se podem esquecer que o SNS tem 30 mil médicos. Desses, dez mil são médicos em formação. Não é preciso perceber muito de saúde para entender que se não fossem os médicos internos, o SNS colapsaria
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Médico patologista no Médio Tejo