Leia a segunda parte da entrevista aqui.
Que mudanças se verificaram nos protocolos de socorro desde que surgiu a pandemia?
A pandemia obrigou-nos a novos protocolos no que diz respeito à emergência médica. A maioria dos corpos de bombeiros tratavam qualquer caso como suspeito. Foi muito difícil quando percebemos que tínhamos de ter equipamentos de protecção individual [EPI] para tudo e não havia. A autoridade tentou, dentro das possibilidades, dar EPI e temos feito distribuições quinzenais. Houve uma aprendizagem constante das medidas de auto-protecção: o uso da máscara, a desinfecção, o distanciamento social. A preocupação hoje é colocar de imediato uma máscara na vítima e só lhe tocar depois. Tivemos casos de infectados por contactos com vítimas. Não é possível impedir o contágio. Aqui [Comando Distrital de Operações de Socorro] temos medição da temperatura, desinfecção das mãos e distanciamento social dentro do possível e tivemos dois casos.
Que balanço faz da época de incêndios deste ano, em convivência com a pandemia?
O contexto inicial era difícil, porque íamos ter dois problemas: combater os incêndios e a pandemia. Conseguimos. Não se pode avaliar se ardeu mais ou menos. Tivemos cerca de 1600 hectares de área ardida, resultante sobretudo dos dois grandes incêndios nas Serras de Aire e Candeeiros. Mas é preciso realçar que tivemos capacidade de mobilização inicial. Cerca de 97% dos incêndios foram debelados na primeira hora. Isto demonstra a nossa capacidade de ataque inicial, sustentada nos corpos de bombeiros, GNR e nas equipas de sapadores florestais. O ataque inicial terrestre e aéreo está cimentado e devidamente consolidado e é uma doutrina que jamais vamos perder.
O que correu menos bem?
Aquilo que corre menos bem há dez ou 20 anos: o desordenamento que a floresta apresenta, a falta do proprietário florestal e a incapacidade que temos tido, todos, de resolver os problemas antes do Verão. Pensamos de mais no combate e de menos na prevenção. Temos de inverter isto e, sobretudo, as mentalidades. Temos de começar a investir muito na prevenção, o que inclui acções de fogo controlado, o ordenamento florestal, a formação e o treino dos nossos operacionais e os EPI. A gestão de combustível tem de ser feita no Inverno. Temos de começar a queimar hoje o que não queremos que arda no Verão. Já fiz muita pressão junto do ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] e dos serviços municipais no sentido de termos de fazer um plano de fogo controlado para o distrito.
Uma das suas frases chave é: os incêndios não se combatem, previnem-se. Há falta de vontade política para não se avançar?
O facto de ainda não termos conseguido resolver estes problemas estruturais dos incêndios rurais tem a ver com a nossa – de todos os que estamos envolvidos – inabilidade e incapacidade. Temos as ferramentas, temos capacidade humana, temos doutrina. O que nos tem faltado é [LER_MAIS]pôr a mão na massa. É fazer. Não podemos continuar a gastar metade do nosso tempo a dizer o que vamos fazer e passar a outra metade a encontrar desculpas para o que não fizemos. É o que temos feito um pouco com a política dos fogos florestais, apesar do que já foi feito.
Foi anunciada a aquisição de drones como ferramenta na prevenção de incêndios. O distrito tem torres de videovigilância. A tecnologia tem sido uma aliada?
Tem sido fundamental. O projecto da CIM [Comunidade Intermunicipal] Leiria foi pioneiro em termos de videovigilância. A aquisição dos drones, e com as câmaras móveis de vigilância, vai permitir chegar a pontos sombra. No teatro de operações, a câmara transmite imagens em tempo real de um determinado terreno para o posto de comando no local. O novo sistema vai fazer a interligação com as outras torres da região, o que é fundamental para vermos tudo. Desde o ano passado, que estas câmaras nos dão os parâmetros meteorológicos. A cada momento sei a velocidade, a intensidade e direcção do vento, a temperatura e a humidade relativa, seja em Pedrógão Grande ou em Peniche. Isso é fundamental em termos de apoio à decisão. Os drones vão ser equipados com câmaras térmicas, o que nos permitirá fazer a monitorização dos pontos quentes, apontando para os locais que necessitam de uma melhor operação de rescaldo. Este projecto pioneiro da CIM tem sido um auxiliar nuclear no apoio à decisão operacional em casos de fogo.
O País e o mundo nunca esquecerão tragédia de Pedrógão Grande. Aprendeu- se alguma coisa?
Não podemos mesmo esquecer Pedrógão. Podemos não ter aprendido tudo quanto Pedrógão nos ensinou, mas temos de reavivar a nossa memória com Pedrógão. Estes ciclos vão aparecer e temos de estar preparados para situações destas. Se hoje conseguimos ter dados e simulações meteorológicas que nos permitem prever algumas situações de risco, o que pode acontecer de mal um dia vai acontecer. Pedrógão foi isso. Pedrógão Grande é o expoente máximo do desordenamento florestal, é o expoente máximo daquilo que consideramos um triângulo perfeito entre a vegetação, as condições atmosféricas do momento e a incapacidade que houve para o seu combate. Pedrógão Grande tem de ficar na memória para fazer lembrar aos decisores que este tem de ser um exemplo para não se voltar a repetir. Temo, seriamente, que não foi feito tudo. Hoje, parte daquele território tem as mesmas ou piores condições do que tinha em 2017. Deveríamos ter sido mais ‘violentos’ na aplicação das medidas. Para situações de excepção, medidas de excepção e muitas delas não se implementaram. Ouvimos das pessoas daquelas zonas atingidas: ‘prometeram-nos tanto e fizeram tão pouco’. Pedrógão não pode ser esquecido para não ouvirmos isto.
Esteve no incêndio?
Só estive no terceiro dia. Era segundo comandante da Força Especial de Bombeiros. Acompanhei o processo e quero deixar aqui o meu tributo aos combatentes que lá estiveram. Foi violento o que eles passaram. Foram tomadas decisões que na altura podem não ter sido compreendidas, mas que agora podem ser entendidas. As decisões podem não ter sido as mais assertivas em termos de combate ao incêndio, mas foram certamente as mais assertivas na salvaguarda dos operacionais. Faz sentido condenar bombeiros? Houve mortos. Tinha de se investigar. Isso vou deixar para os tribunais. Mas, pergunto: porquê só estes arguidos? Onde estão os outros? Porque não todos os que têm responsabilidade naquela matéria?
Desde a cúpula?
Todos. Fico triste por alguns e satisfeito por aqueles que foram ilibados. Fico triste por este processo de Pedrógão ter tido condenações antecipadas, sobretudo, da parte de pessoas que têm alguma responsabilidade. Ao comandante dos bombeiros de Pedrógão [arguido] e ao Sérgio e ao Mário Cerol [comandante e segundo comandante na altura que saíram da acusação], mostrei a minha solidariedade.
A maioria das ocorrências diárias não são os incêndios. Os bombeiros estão preparados para o dia-a-dia?
Apesar da pandemia, este foi o ano em que os corpos de bombeiros mais fizeram formação. Os corpos de bombeiros estão tecnicamente muito bem preparados. Hoje temos uma capacidade formativa muito exigente. O passo que temos de dar é fazer com que os comandantes ou chefes de operações percam o medo de juntar o científico com o operacional. Isso é um papel que a Escola Nacional de Bombeiros tem de permitir que se faça cada vez mais. Por vezes, noto que muitos dos comandantes de operações consideram que o científico é só teoria. Essa teoria faz-nos falta.
Deve-se profissionalizar os bombeiros?
Sem dúvida. Estive na Liga dos Bombeiros Portugueses, entre 2000 e 2004, e já nessa altura dizia que tinha chegado o tempo de fazer a revolução dentro do sector. Não podemos ter estigmas. Muita gente diz que profissionalizar os bombeiros é acabar com o voluntariado. Pelos sistemas que conheço na Europa, profissionalizar, sobretudo a primeira intervenção, é potenciar o voluntariado. Damos aos voluntários aquilo que eles são: voluntários. Hoje estamos a querer voluntários profissionais no seu tempo, quando eles não o têm. Se há alguns anos a disponibilidade era muita, até porque o mercado de trabalho não era tão exigente, hoje, se muitos dos corpos de bombeiros tiverem 20 ou 30 elementos durante o dia é muito. Quando cheguei aqui, um dos objectivos foi ter uma equipa de intervenção permanente em todos os corpos de bombeiros, o que conseguimos em 2019. Durante as 8 horas do dia, quando os voluntários estão mais ausentes, garantimos uma equipa permanente. Mas temos de replicar isso para as 24 horas. A primeira intervenção do socorro não pode estar dependente do voluntariado. Quanto é que isto custa? Não sei. Alguém que faça as contas. Certamente que terá de haver um investimento financeiro, mas acredito que os municípios estarão disponíveis para comparticipar. Vamos ter de investir, mas também vamos melhorar significativamente a qualidade do nosso socorro, com mais profissionais nos corpos de bombeiros.