Hoje, Ângelo Lima Bastos escreve a Ana João Santos.
Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.
As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.
Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).
“Leiria, 8 de Julho de 2020
Cara Isabel, Cara Ana João, Cara Leiria
Obrigado pela tua carta Isabel e por referires a minha passagem pela filosofia. Esta aprendizagem muito me enriqueceu. Fiquei mais tolerante, mais prudente, menos imediatista e mais contido. Também sou hoje mais crítico, pergunto sempre quando tenho dúvidas.
Sinto que sou melhor.
Perguntas qual a ligação com medicina. Que medicina pode prescindir da Ética, talvez a disciplina mais importante da filosofia. Ficamos com o pensamento mais lógico e dirigido. Por que é que há uma deontologia médica como há da Enfermagem e de todas as profissões? Tudo isto é filosofia.
Cheguei a Leiria, profissionalmente, em 1976.
Algumas linhas do meu percurso até chegar cá.
Nasci numa freguesia perto do Porto e fiz o secundário em Braga. Depois Coimbra: aqui foi o “despertar da primavera” e fiz o curso e a especialidade. Trabalhei, em seguida, no IPO durante vários anos.
Em Leiria comecei a trabalhar em 1976 e em 1983, como médico do quadro do Hospital Manuel de Aguiar.
Por quê Leiria? Em Coimbra fiz muitos amigos de cá, mas mais importante, aqui nasceram as minhas filhas, aqui morreu a minha mãe e a minha mulher, Clara.
Por aqui ando há 44 anos, sou de facto Leiriense.
Leiria é uma cidade boa e bonita, cada vez mais, e por cá ficarei até ao fim.
Era uma cidade pequena, fechada, e o hospital velho e sem condições, onde fiz o trabalho possível. Posteriormente foram feitas algumas obras.
O problema só se resolveu com o novo Hospital de Santo André, inaugurado em 1995, hoje um hospital de referência, onde trabalhei até 2006. Como doente é aqui que quero ser tratado.
Dos 2 hospitais, apesar de tudo, guardo boas recordações e tenho imensas saudades das pessoas e de todas as coisas.
Recordo colegas, enfermeiros e outro pessoal de quem fui sinceramente amigo. Não vale a pena referir ninguém.
Não posso esquecer o Dr. Rocha Silva, homem bom, eticamente impecável e sensato. Viveu quase todo o séc. XX em Leiria. Pedi-lhe que escrevesse as suas memórias. Recusou: “sabe, iria falar de pessoas ainda vivas que podiam sentir-se feridas”.
E, Leiria foi crescendo e ficando cada vez mais bonita e acolhedora.
Recordo o Polis, que modificou o centro de Leiria e embelezou as margens do rio Liz, agora menos poluído e com percurso na margem de alguns quilómetros.
Vi, ao lado do meu antigo consultório, ser destruída a velha Caixa Geral de Depósitos e ser construída a nova, bem como a modificação do largo vizinho.
Entretanto no Hospital D. Manuel de Aguiar, que voltou à propriedade da Misericórdia de Leiria, fizeram-se obras de reconstrução importantes, que o transformaram totalmente. Aqui trabalhei durante 9 anos.
Vi construir o novo mercado e reconstruir o antigo, hoje um edifício magnífico, dedicado à cultura e outras atividades.
E a cidade foi constantemente crescendo e adquirindo novas competências.
Da minha varanda vejo, ao longe, a urbanização de Sta. Clara onde antes eram campos. Mesmo em frente a Escola Superior de Educação e mais à esquerda, no alto, ao lado do shopping Continente, o Instituto politécnico de Leiria. Estas valências, onde estudam milhares de alunos, enchem a cidade de vida e de juventude. Tudo isto vi ser construído.
As vias de comunicação cresceram. Fez-se uma circular externa em autoestrada, com ligações ótimas às principais autoestradas do país, A1 e A8.
Cara Isabel, a tua carta fez-me voltar a recordações há tanto tempo adormecidas. Obrigado.
Cara Ana João, querida Ana João, grande amiga da minha filha Ana e também minha amiga. Parabéns pelo teu mestrado e felicito-te pela vida difícil que escolheste, no campo de pessoas que tanto necessitam de ajuda.
Confesso que neste período terrível de pandemia, sem grande medo e sem pânico, resguardo-me seguindo as orientações devidas, respeitando-me e respeitando os outros.
Já passei por situações semelhantes a que fui obrigado pela minha profissão: contacto com lepra, com HIV e outras infeções.
Sou um homem velho. Assisti a muitas coisas que recuso contar, como me ensinou o meu querido Dr. Rocha Silva. Como disse o bom Papa João XXIII, referindo-se à Grande Viagem: “não estou preocupado, as malas já estão feitas”.
É tempo de começar a pensar em fazer as minhas.
Abraços.
Ângelo Lima Bastos”
Cartas anteriores:
1. Patrícia Martins
2. Jorge Vaz Dias
3. Hugo Ferreira
4. Maria Miguel Ferreira
5. Carlos Matos
6. Xana Vieira
7. Thainá Braz
8. Sara Marques da Cruz
9. Isabel Jácome