Hoje, Patrícia Martins escreve a Jorge Vaz Dias.
Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.
As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.
Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).
“Leiria, 8 de Junho de 2020
Querida Leiria,
Querido Jorge,
Que bom escrever-vos hoje.
Não imaginam certamente que são seis da manhã quando me sento ao computador a escrever-vos, ainda ponderei fazê-lo à mão, old school mode, porque gosto de cheiros de texturas e de memórias e aborrece-me a efemeridade das coisas, mas isso daria outra conversa. Prossigo no computador.
Imaginarão certamente a luz bonita que desponta a nascente, a calma e a tranquilidade que se sentem à beira do Lis. O sol pinta de cor de rosa o céu ainda acinzentado, e não tarda chegará a luz para mais um dia.
E o chilrear dos pássaros? Abro a janela e sinto o cheiro a feno e a fresco, e ainda não se ouve vivalma humana, mas os pássaros entoam-me melodias como que numa saudação matinal. É assim quase todo o dia, com algumas variações como se eles intuíssem quanto eu gosto de música.
Jorge, às tantas cuidam também de uma playlist melodiosa que me acompanha ao longo dos dias, como tu farás certa e cuidadosamente na preparação das tuas performances. Também sentes que a música e as artes fazem parte de ti, como layers que definem que tu és? Que te correm nas veias como o sangue, a seiva das plantas ou o curso de um rio? Também tens sempre uma música ou uma letra que te ocorrem em tantas e diversas ocasiões?…Another Sunny Day…lá, lá, lá…
Daqui a nada, irei certamente fazer a minha caminhada ou corrida das manhãs e sabes uma coisa, Jorge? Foste tu em co-autoria com provavelmente o Frika, o Pedro Miguel e a Tânia Afonso, os grandes responsáveis pela escolha das playlists que fazem parte hoje do Spotify que me acompanham a jornada. À vossa maneira, provavelmente serão responsáveis pelo gosto musical de boa parte da cidade, da minha geração e das seguintes. “Another Day in June”. É isso hoje vou começar pelos Belle & Sebastian.
Leiria sempre foi uma cidade-charneira no que diz respeito à música. Quantas vezes não gravava cassetes para ouvir em loop ou no carro e mais tarde CDs, com músicas que ouvi pela primeira vez pela vossa mão. É giro sentir e dizer-vos que, no que ao indie diz respeito, foram dos primeiros responsáveis pela democratização cultural de meia Leiria, arrisco dizer abaixo dos 45/50 anos, que hoje sabe do que fala, do que gosta e faz as suas próprias escolhas. Mas que admite sempre que as suas raízes musicais vêm do Rádio Clube de Leiria, ou do Arts, Cinema Paraíso, Anubis, ou da Alibi…tchi…o Tigerman a passar-se em cima das colunas da Alibi, ou o Adolfo Luxúria Canibal de fato macaco numa espécie de transe.
Sabem uma coisa, tenho um desejo grande de que um dia em espaços cidade – no estádio, em edifícios desocupados, nas salas do Mercado Santana ou no Mercado Municipal – exista lugar para residências artísticas e que os miúdos e graúdos, onde os meus alunos, os meus filhos e os filhos dos outros possam usar as ferramentas das artes para transformar a sua geração através da música e das demais artes. Poderiam ser também espaços de encontro de gerações e de construção conjunta de sentido, de cultura e de identidade. Quem sabe não sejam eles depois os influencers como vocês foram para mim…eh, eh… E todos em conjunto contribuíssem para construir cidade, território e a nossa cultura que ficará perene no tempo.
Gosto de viver aqui. Sabiam? Leiria é para mim uma espécie de porto seguro, como o da casa dos pais, onde umas vezes nos sentimos bem, outras limitados e agrilhoados, de onde por vezes queremos sair para procurar mundo, mas onde queremos voltar sempre porque é lá que se nos apaziguam as angústias e onde nos cheira a colo. Leiria foi a casa que me viu nascer, ali mesmo à beira do Lis, e com uma janela virada para o Castelo, e vá riam-se do cliché, ainda gosto de entrar na cidade pelo lado sul do IC2, para respirar e sorrir ao ver o Castelo lá no alto, como dizia muitas vezes o meu pai sempre que era ele que nos escolhia os caminhos. ”Não posso perder o Castelo de Vista”.
Sabes Leiria, era aqui, pertinho do teu coração citadino, que gostava de envelhecer, ainda que tenha uma grande paixão pelo Baleal e caso a vida me permita alimento o sonho de na velhice passar por lá umas boas temporadas, despidas de preocupações a sentir o cheiro a mar e o marulhar da paz e do sal que purifica. Para lá levaria também alguns livros e de certeza um leitor de vinil e alguns dos meus discos favoritos.
Mas era aqui contigo, Leiria, que gostava que os meus filhos ficassem, agora que também eles apreciam a beleza dos jacarandás na primavera, e os mergulhos na nascente nas Fontes e as idas ao Museu de Leiria. Claro que lhes desejo e tudo farei para que tenham mundo, e que estudem, aprendam, conheçam novas culturas e experimentem em si conhecimento e sensações bebidas nos quatro cantos do mundo, mas também é a ti e a mim que gostaria que regressassem, que gostassem de ti e quisessem perpetuar uma melhor tu, quando em breve forem eles e os miúdos com quem trabalho a mandar no mundo. Talvez a mundividência, e o que eu, o Jorge , e tu Leiria e tantos como nós, temos trabalhado para a sua formação, os leve a trabalhar na cultura, nas artes ou no que eles quiserem, desde que vise a construção de um planeta mais justo, equilibrado e sustentável, que integre todos harmoniosamente como prevê a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O sol já subiu mais um pouco, não tardará muito estarei a caminhar ao longo do Lis, primeiro em direção à nascente e no regresso em direção à foz.
(…)
Um intervalo de 40 minutos separa os tempos em que vos escrevo. Acompanhou-me no caminho da manhã um curso de água do Liz fonte de vida, de agriões e vegetação dependente de água. Quem como eu teve uma infância na aldeia sabe bem para que que serve, um curso de água límpida e cristalina com pequenas comportas que se abrem cada uma na sua vez para saciar a sede dos cultivos e onde cada um dos agricultores se entende democraticamente para a sua utilização. É um regalo para os olhos ver as sementes regadas pelo Lis, germinar e crescer viçosas e frutíferas.
Sabes Jorge, é assim que sonho o nosso futuro e a nossa cidade. Sermos todos agricultores entusiasmados com as nossas sementes que germinam fortes, saciadas pela água corrente e fresca repartida por todos e que a todos nutre. Essa água será a nossa cidade e com o esforço de todos será frutífera, nutritiva e sustentável a sementeira.
Que para este vírus que nos ensombra por estes dias, se descubra breve um pesticida (biológico), pois estou desejosa de calçar umas galochas e pôr mãos à obra. Encontramo-nos na horta num dia de sol e tiras-me prova maior de respeito mútuo uma foto para a posteridade?
“Another sunny day, I met you up in the garden
You were digging plants, (…) I took a photograph of you in the herbaceous border
It broke the heart of men and flowers and girls and trees…”
Com um beijinho da Patrícia Martins”