Imagine-se um país aquém da modernidade e uma ideia quase revolucionária a emergir nos arredores de Leiria: mais importante do que colocar músicos no palco é colocar a música (e a arte) na vida das pessoas.
“A grande inovação”, como lhe chama Alberto Roque, co-director pedagógico da Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP), materializa-se a 3 de Outubro de 1992 com a abertura da Escola de Artes SAMP e um plano de estudos que logo no começo junta a música com o teatro, a dança e a expressão plástica.
“Não havia nada semelhante”, comenta Cristiana Lameiro, professora que se mantém no projecto desde a fundação. “A Escola de Artes SAMP foi pioneira, não só neste arranque artístico multidisciplinar como quando baixámos as idades”. Inicialmente vocacionada para alunos a partir dos quatro, cinco e seis anos, abre-se muito cedo a bebés desde as primeiras semanas de vida, por influência do contacto com as teses do investigador Edwin Gordon. “E foi quando descobrimos o maravilhoso que é fazer música, teatro e dança em família”, diz a docente ao JORNAL DE LEIRIA. “Mudou o paradigma. Acabámos por desenvolver um metódo artístico que tem em conta a criança e o adulto. Toda a nossa Escola de Artes está pensada para que os pais possam assistir às aulas, e, até, também eles fazerem música”.
Agora a celebrar 30 anos – está agendado para o próximo domingo, 6 de Novembro, com início às 17 horas, o Concerto Solene do 30.º Aniversário da Escola de Artes SAMP, no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria -, a Escola de Artes da SAMP é uma ideia do etnomusicólogo e antigo cantor lírico Paulo Lameiro, que trouxe para a aldeia e para a colectividade de onde é originário o ambiente qualificado e multifacetado que conhecia diariamente em Lisboa, no Conservatório Nacional, com turmas de cinema, teatro, dança e educação pela arte.
Paulo Lameiro tinha falhado a admissão no Conservatório Nacional para trompete, acabando por ser admitido no canto. A visão para Leiria passava por ir além da metodologia das filarmónicas e estabelecer na SAMP – onde já existiam grupos amadores de teatro e coro – um ensino com o foco no futuro e em idades mais precoces.
Uma geração inteira beneficiou. Os bailarinos António Casalinho e João Gomes, por exemplo, hoje a trabalhar no estrangeiro mas formados em Leiria pelo Conservatório Internacional de Ballet e Dança Annarella Sanchez, frequentaram a Escola de Artes SAMP. E outros nomes construíram (ou estão a construir) uma carreira, apesar de essa não ser a prioridade do projecto.
“Nunca foi preocupação principal formar profissionais. Foi sempre preocupação colocar a arte na vida das pessoas. Isso é o mais importante para nós”, reitera Alberto Roque, outro dos fundadores. Por outro lado, realça o maestro e saxofonista, os encarregados de educação sabem que vão ser envolvidos “no processo criativo e formativo”. Não é raro tornarem-se alunos, coristas, colaboradores ou membros dos órgãos sociais.
Paulo Lameiro dá o caso de pais que assistem às aulas mesmo quando os filhos faltam. “Vêm a um ritual de encontro, vêm participar com os seus pares, com famílias que têm os mesmos valores, com pessoas que ambicionam um tipo de sociedade”. O que o leva a concluir que “o grande trabalho da Escola de Artes SAMP é que ele é uma experiência social e comunitária para quem a frequenta”.
Da Escola de Artes – génese do ensino artístico especializado na SAMP reconhecido pelo Ministério da Educação – surgem os primeiros projectos SAMP relacionados com musicoterapia e, depois, os projectos comunitários (na prisão, nos hospitais, nos lares de terceira idade, em aldeias isoladas, entre outros) que são hoje marca da instituição. Resultam todos de “um novo paradigma de ensino artístico” e de “um novo perfil de professor”, com “um sistema que não é um conservatório, é uma escola”, assinala Paulo Lameiro. O modelo está replicado “na Bélgica, no Brasil, em Espanha” e “em Itália”, por técnicos que se formaram nos Pousos.
“O papel da Escola de Artes SAMP é hoje reconhecido no País e fora do País”, argumenta. “Nós não olhámos para as primeiras aulas de crianças como níveis de iniciação ou preparatórios”, mas, sim, como um contexto “de pleno direito” para “desfrutar” e “desenvolver competências” através de uma “experiência imersiva” que proporciona uma “aprendizagem inferencial”.
Até ao ano passado, e durante década e meia, Lígia Febra marcou presença na SAMP todos os sábados. “Diverti-me imenso, cheguei a ter duas aulas de Berço por dia. Sempre diferentes, não ia com sacrifício nunca”. A filha mais velha, hoje com 17 anos, toca flauta transversal. Os dois rapazes, de 12 e 10 anos, estudam clarinete e saxofone. Estão os três na Filarmónica da SAMP e a instituição mudou para sempre a vida da família. “No caso da minha filha, definiu-lhe o percurso, porque ela quer seguir música”.
O ambiente descontraído é uma característica da Escola de Artes, confirma Carolina Belchior, actriz de 33 anos, ligada à companhia Contrapalco. “Casa” e “segunda família” são palavras que lhe servem para recordar a SAMP, que frequentou entre 1997 e 2007, período em que descobriu a paixão pelo teatro e encontrou um método que não só a encaminhou como lhe proporcionou liberdade. “Foi essencial na formação da pessoa que sou. Passávamos lá muito tempo”.
Actualmente chefe de naipe de fagotes na Banda Sinfónica da GNR, antigo músico da Orquestra Metropolitana de Lisboa e membro da Filarmónica da SAMP, Pedro Pereira foi dos primeiros alunos da Escola de Artes SAMP, onde também aprendeu órgão de tubos e clarinete, além de ballet, numa atmosfera de experimentação sem constrangimentos. “Essa era a magia. Despertar-nos para outras valências, adquirirmos outras bases”, sublinha. “Lembro-me de pintar o muro da escola. Nos nossos sábados, mesmo que não tivéssemos aulas, estávamos por lá”.
O sonho prolonga-se no tempo. Na Escola de Artes SAMP, no ensino oficial e fora dele, estão este ano inscritos 300 alunos.