É indissociável a relação entre uma boa saúde oral e o bem-estar geral do organismo, sendo conhecidas inúmeras ligações entre problemas na boca e patologias que podem afectar áreas tão diversas como os sistemas cardiovasculares e gastro-intestetinais, o sono ou o desenvolvimento cognitivo.
Existe também já alguma investigação que relaciona alguns tipos de cancro, como o do pâncreas, com problemas nas gengivas.
Mas, apesar da indiscutível importância da medicina oral na saúde em geral, esta é uma área onde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está absolutamente carente. Veja-se o que se passa nos centros de saúde da região – distrito de Leiria e concelho de Ourém – onde existe apenas um médico dentista, afecto à unidade de Fátima, no âmbito de um projecto-piloto que avançou no final de 2016 e que o Ministério da Saúde promete agora alargar a todo o País.
Numa visita recente a Pombal, o secretário de Estado da Saúde revelou a intenção da tutela de, em 2019, ter todos os 55 Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) do País dotados de, pelo menos, um médico dentista.
Fernando Araújo anunciou ainda que, nos próximos dois anos, o SNS será reforçado com cerca de 30 especialistas em medicina dentária, um dos quais será afecto, a partir de Julho, à unidade de Pombal.
Ao JORNAL DE LEIRIA, a Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro refere que espera alargar “em breve” a resposta nesta área, tendo sido “convidadas” várias Câmaras Municipais para integrarem o projecto Saúde Oral, no âmbito do qual “compete às autarquias a realização de obras de adaptação dos espaços e os investimentos necessários para o funcionamento do gabinete”.
Na área da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, onde já estão em actividade 23 gabinetes de saúde oral, deverá ser atribuído, até ao final do ano, “pelo menos um médico dentista ao ACES do Oeste Norte”.
O bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), Orlando Monteiro da Silva, aplaude o anunciado reforço do SNS com estes especialistas, manifestando-se convicto que a medida será “mais um passo para colmatar” a dificuldade de acesso a este tipo de cuidados por parte de “toda a população”.
Um entrave que, segundo aquele responsável, se reflecte em alguns números revelados pelo último Barómetro da Saúde Oral, referente a 2017, segundo o qual cerca de 42% dos portugueses não visitavam um médico dentista há mais de um ano e 27% “nunca” tinham recorrido a este especialista ou apenas o fizeram em situações de urgências.
[LER_MAIS] De acordo com aquele estudo, cerca de 60% das crianças com menos de seis anos nunca foram observadas por um dentista e 68% dos portugueses têm falta de dentes naturais. Portugal apresenta, aliás, “uma das taxas mais altas da União Europeia de idosos desdentados”, devido à percentagem muito elevada de pessoas que nunca foi a uma consulta de medicina dentária” ou que vai apenas em caso de urgência, “quando a doença já está muito avançada”, nota o bastonário da OMD.
Dentes influenciam sono
Para Orlando Monteiro da Silva, os dados o Barómetro da Saúde Oral “não são novidade”, mas “são chocantes” para um país com o nosso “desenvolvimento económico”.
“Em Portugal, a saúde oral não tem sido vista como parte integrante da saúde em geral. Um erro enorme com consequências trágicas”, afirma o bastonário, que frisa alguns dos impactos de uma deficiente saúde da boca no restante organismo.
“Uma má higiene oral pode provocar uma infecção na boca e espalhar-se a outras partes do corpo”, exemplifica, frisando que a saúde oral é “particularmente importante para doentes cardiovasculares ou diabéticos”.
“Existe evidência de que há uma ligação entre a má higiene oral e o descontrolo dos níveis de açúcar no sangue dos doentes diabéticos, podendo a melhoria da saúde oral contribuir para o tratamento desta patologia”, acrescenta Marco Loureiro.
Este médico dentista realça ainda que outras “associações, tais como a ligação entre a doença periodontal e patologias cardíacas, partos prematuros e riscos de acidentes vasculares cerebrais estão a ser estudadas”.
Segundo Hélder Monteiro, médico dentista especialista em oclusão de postura (desequilíbrio dos maxilares), já se está também “a relacionar o cancro do pâncreas e enfartes cardíacos com problemas nas gengivas”.
“A saúde oral tem implicações na saúde geral do indivíduo. Pelo que devemos tratar a boca sempre na perspectiva de atender aos sintomas que se passam à distância”, acrescenta, frisando, a título de exemplo, os impactos de uma má saúde dentária no sistema musculoesquelético, associados a dores em várias partes do corpo.
Hélder Monteiro realça ainda as implicações da saúde oral no sono. “Ter falhas de dentes ou dentes mal posicionados e que não estão a funcionar correctamente, pode ter implicações no sono”, alega o médico, frisando que essas situações afectam o “normal ranger ou apertar de dentes”, um “acto fisiológico” que ajuda na “regulação do sono”.
Por seu lado, Marco Loureiro acrescenta ainda as “incapacidade funcionais” decorrentes da falta de dentes, como a dificuldade de mastigar os alimentos, que pode provocar “desequilíbrios nutricionais” e afectar o sistema gastro-intestinal.
Mas uma má saúde oral não tem apenas implicações a nível fisiológico. Pode também ter consequências no bem-estar mental, associadas a problemas de auto-estima, que prejudicam “seriamente a vida do doente”, nota Marco Loureiro.
“Uma má saúde oral pode afectar a recuperação de doentes com depressão”, acrescenta Orlando Monteiro da Silva, sublinhando que a perda de auto-estima “pode ser potenciada por problemas de imagem, com uma boca a precisar de tratamento”.
45% das crianças com seis anos têm cáries
Um estudo realizado no ano passado, coordenado pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, revelou que cerca de 45% das crianças portuguesas com seis anos têm cáries dentárias.
A percentagem sobe para os 47% nos adolescentes com 12 anos, enquanto nos jovens com 18 anos esse número ronda os 68%.
Os valores são, contudo, inferiores aos registados em 2006, quando foi publicado o II Estudo Nacional das Doenças Orais, segundo o qual a percentagem de crianças com seis anos que apresentava cáries era de 49%, passando para 56% entre os adolescentes com 12 anos e para 72% nos jovens com 15 anos.
Também o índice de dentes cariados, perdidos e obturados (índice de CPOD) registou melhorias nos últimos anos. De acordo com dados da Direcção-Geral de Saúde, citados pelo Diário de Notícias, esse índice era, para a faixa etária dos 12 anos, de 2,95 dentes, em 2000, baixando para 1,18 em 2013.
Higienista oral em Fátima, Ourém e Leiria, Filipe Gil reconhece que tem havido uma evolução positiva, “muito devido às medidas do Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral”, que tem apostado “bastante” em rastreios e na aplicação de selantes, uma espécie de resina protectora colocada nos dentes molares quando estes irrompem.
Contudo, o número de crianças com cáries ainda “é preocupante”, diz o técnico, que aponta como principais causas para essa prevalência “erros” na lavagem diária, com a “não remoção eficaz da placa bacteriana”, e a falta de “controlo”, com idas regulares ao dentista.
“Há pais que não vêem ainda como necessidade trazerem os filhos ao dentista”, diz Priscila Morais, médica dentista em Leiria, frisando que esse tipo de consultas não serve apenas para tratar cáries, mas também para “ensinar” os mais novos a escovar os dentes.
“A prevenção faz-se com os pais”, acrescenta Marco Loureiro, que reconhece que estes estão hoje “mais alerta” para os problemas decorrentes de uma má higiene oral e “mais dotados de conhecimento” para tomarem as opções mais correctas.
Mas, nota o técnico, “ persiste uma parte da população mais carenciada que não tem acesso ao conhecimento veiculado num consultório de medicina dentária, muitas vezes por falta de condições económicas”. Situação que, acredita, pode melhorar com as recentes medidas governativas no sentido de colocar dentistas nos centros de saúde.