Durante séculos, as mulheres permaneceram na sombra, arredadas do protagonismo em sociedades desiguais. “Não sabemos [se] as revisões das sinfonias de Schumann são mais do Robert ou são mais de Clara”, comenta André Cunha Leal – e, além do casal de músicos, no século XIX, acrescenta outro exemplo, também de marido e mulher, na Alemanha, mas do século anterior: “Muitas obras de Bach, até que ponto começaram em Anna Magdalena Bach e terminaram no Johann Sebastian”, aponta o director artístico do Cistermúsica. “Havia sempre sinergia em casa, só que vivíamos uma era de homens e uma história escrita por homens”.
Na 31ª edição, que começa hoje, 30 de Junho, o Cistermúsica – Festival de Música de Alcobaça dedica-se à música no feminino. Dá palco a cantoras e instrumentistas e coloca em primeiro plano criações de compositoras como, entre outras, Clara Schumann [1819-1896] e Bárbara Strozzi [1619-1677] – que, segundo André Cunha Leal, “foram muito maiores do que o seu tempo porque tiveram a coragem de se emanciparem enquanto artistas e de de?nirem, inclusivamente, cânones”.
“Houve imensas compositoras de grande nível ao longo da História”, reforça Rui Morais. Ao iluminar o legado da música no feminino, a programação de 2023 procura mitigar “a injustiça” e proporciona “uma edição muito especial”, “atenta aos dias de hoje”, considera o presidente da Banda de Alcobaça, que organiza o Cistermúsica.
Com um orçamento de 550 mil euros, metade garantido por instituições públicas (incluindo, a DGArtes) e metade proveniente de mecenas e patrocinadores privados, e receitas de bilheteira, Rui Morais anuncia “o maior festival de música clássica no País” e “uma qualidade superior àquela que tem vindo a ser apresentada nos últimos anos”, em que se destacam nomes internacionais e jovens valores, muitos deles com carreira pelo mundo.
Ao todo, até 30 de Julho, 44 espectáculos (40 concertos e quatro bailados) e 27 agendados para o Mosteiro de Alcobaça, incluindo, em espaços geralmente inacessíveis para o público e que são abertos para acolher o Cistermúsica. Outros acontecem no Cine-Teatro João d’Oliva Monteiro, no Real Abadia Congress & Spa Hotel, no Museu do Vinho de Alcobaça, na Igreja Paroquial da Cela, na Igreja Paroquial da Benedita, na Igreja Matriz de Pataias, na Igreja Paroquial de São Martinho do Porto, no Mosteiro de Cós, no Parque Verde de Alcobaça, na Lagoa Grande do Arrimal, na Fórnea em Porto de Mós, no Teatro Maria Matos e na Aula Magna em Lisboa, no Mosteiro de São Bento de Castris em Évora e na Igreja do Mosteiro de Arouca.
O festival desloca-se a cinco freguesias do concelho de Alcobaça, número que é atingido pela primeira vez. Encerra com o que a organização espera que seja “uma festa”: The Gift a apresentarem Coral no Claustro do Rachadouro.
Ana Vieira Leite, que, na opinião de André Cunha Leal é “uma das sopranos com maior destaque internacional” nos dias que correm, actua já nesta sexta-feira, no concerto de abertura, na nave central do Mosteiro de Alcobaça, com o ensemble Cappella Neapolitana dirigido por Antonio Florio (21:30 horas).
Outros destaques seleccionados por André Cunha Leal são Christian Lindberg, “um dos maiores músicos vivos”, que vai dirigir a Orquestra Metropolitana de Lisboa; a pianista Inês Andrade, “que tem andado por Nova Iorque, pelos Estados Unidos, a fazer uma grande carreira”, e em Alcobaça vai juntar-se à Orquestra Filarmónica Portuguesa; o acordeonista João Barradas, que, diz o responsável pela curadoria, “não sabemos se é o melhor do mundo, mas anda lá perto”; o ensemble de música antiga espanhol The Ministers of Pastime; o grupo de sonoridade barroca Melleo Harmonia Antigua, Cecília Rodrigues, vencedora do Concurso de Interpretação do Estoril, num recital de voz com o pianista João Paulo Santos; Maria João e André Gago “a casar a poesia com a música”, acompanhados por quinteto de jazz, no espectáculo Songs For Shakespeare; a Orquestra XXI, “talvez o maior projecto de orquestra que existe em Portugal”, com instrumentistas espalhados pelo globo; e Eleonora Karpukhova, “uma das melhores pianistas russas da sua geração”.
Em 2023, a programação suporta- se em três eixos: rota de Cister, amores proibidos e Sergei Rachmaninoff, compositor e pianista que, no final de Julho, inspira um conjunto “impressionante” de concertos, antecipa André Cunha Leal.
Da música antiga à contemporânea, da música de câmara a grandes produções, o festival volta a ligar-se a outros géneros – uma das novidades é o lançamento do Jazz no Bosque – e oferece 20 concertos de entrada livre. Rui Morais espera suplantar a fasquia dos 10 mil espectadores, conseguida na edição anterior.