Somos nós que comandamos a mente ou é a mente que nos comanda a nós? Podemos dizer que é a mente que nos comanda, embora, enquanto seres humanos e com alguma capacidade de auto-determinação, também sejamos capazes de comandar as nossas emoções e actos. Obviamente que a mente comanda muitas coisas que nós não conseguimos controlar. Óbvio que se a pessoa não estiver bem e entrarmos no campo do patológico a capacidade de gerir a nossa mente pode começar a perder-se.
A tutela encerrou espaços destinados a doentes mentais. Não é preciso dar resposta a pessoas que necessitam de internamento permanente?
É óbvio que sim, embora a ideia de grandes asilos ou de grandes espaços hospitalares não faça, de forma nenhuma, sentido. A doença mental deve ser cada vez mais tratada em termos comunitários e cada vez se faz menos nos internamentos, sejam eles de curta ou de longa duração. Estes devem ser o último recurso. Depois de retirar o doente do seu seio familiar e social, é mais difícil reintegrá-lo e dar-lhe a autonomia que ele perde, quer pela doença quer também por ser desintegrado desse local. A ideia de fechar esses espaços é boa, a questão é ver se há condições ideais próprias para o fazer. Houve locais onde a experiência não terá sido tão boa quanto isso, na medida em que a capacidade dos doentes se adaptarem ao local para onde foram colocados teve desfechos bastante maus, sobretudo aqueles que lá viviam há várias décadas.
Qual é a solução para essas pessoas?
Ainda não existe. Uma boa rede de cuidados continuados na área da saúde mental poderá ser uma solução. Mas há uma lacuna enorme nessa área. Debatemo-nos com esse problema todos os dias na urgência e nos internamentos. Não para voltar a criar esses grandes espaços com 300 ou 400 pessoas, mas antes para criar unidades que sejam capazes de reabilitar esses doentes de forma a que eles possam ser reinseridos na sociedade. A grande maioria, se for devidamente "trabalhado" em termos das suas capacidades sociais e ocupacionais, pode ser inserido na comunidade. O problema é que não o sendo e habituando-se a viver nestes espaços é muito mais difícil, ao fim de 20 ou 30 anos, encontrar qualquer tipo de solução que seja viável.
É esse o trabalho que os Andrinos faz?
Os Andrinos é um bocadinho um Lorvão, um Miguel Bombarda ou um Júlio de Matos em ponto muito pequeno. Nos últimos anos temos tentado fazer esse trabalho junto daqueles doentes que têm potencial para serem reinseridos. Há doentes que estão internados há 40 anos e em que a sua reinserção na comunidade é muito difícil. Conseguimos que dois doentes fossem reintegrados. Um deles estava internado há cerca de 20 anos e há seis meses foi reinserido com sucesso junto da família . Outro doente que esteve internado mais de dez anos também conseguiu, ao fim de algum trabalho, voltar a ser inserido no seu meio sócio-familiar. Já teve alta há mais de um ano e mantém- se estabilizado. É óbvio que temos muitos doentes na faixa etária dos 60 e 70 anos, cuja resposta é completamente diferente, até porque não têm qualquer tipo de suporte sócio- familiar. Noutros, a patologia é grave e complexa.
Há recursos suficientes para trabalhar com estes doentes?
Não. Isso é um dos problemas que não será só nosso, mas aqui estamos particularmente carenciados nesse aspecto. O serviço de Psiquiatria não tem nenhum terapeuta ocupacional, o que é uma lacuna enorme quer para a unidade de agudos quer para a unidade de evolução prolongada. Temos também uma carência enorme de psicólogos e de técnicos de serviço social que depois condicionam este tipo de trabalho.
Quantos doentes são seguidos na psiquiatria?
Até Setembro deste ano tínhamos feito cerca de 11 mil consultas, cerca de 1200 a mais do que no ano passado na mesma altura. A previsão é que façamos cerca de 15 mil até ao final do ano. Nos Andrinos temos à volta de 45 doentes internados. No internamento do hospital a nossa taxa de ocupação tem vindo a reduzir-se substancialmente nos últimos anos. Até há cinco ou seis anos tínhamos uma taxa de internamento que rondava os 100% e às vezes até ultrapassava. Chegávamos a ter frequentemente doentes internados em macas no corredor, porque entendíamos que os doentes que necessitavam de internamento deviam ficar no serviço, o que não era um bom indicador, porque o internamento é o último recurso. Com o reforço da equipa médica, que tem vindo a acontecer nos últimos anos, e com a nossa tentativa de tentar dinamizar o mais possível o serviço, tem-se conseguido dar uma melhor resposta em termos de ambulatório, o que se tem reflectido nesta clara diminuição da taxa de ocupação. Se no ano passado chegámos ao final do ano com uma taxa de ocupação à volta dos 70%, este ano a taxa deverá ser inferior aos 60%. Como as coisas, apesar de tudo, têm vindo a melhorar, não tem havido necessidade de internar tanto os doentes, o que é um indicador de qualidade do serviço. Enquanto há uns anos acabávamos o ano com cerca de 700 doentes internados na unidade de agudos, este ano iremos acabar com não mais de 500 ou 550 doentes internados.
Disse que aumentaram as consultas. Cresceu também o número de pessoas com doenças mentais?
Sim. Mas nem é preciso surgirem estas situações de crise que de certa forma condicionam e determinam mais stress e mais episódios de descompensação. A grande maioria das doenças psiquiátricas nem serão reactivas, mas têm um substracto muito mais biológico. A doença já está lá e um dia vai acabar por se desenvolver. É óbvio que estas situações stressantesajudam a que se acabe por desenvolver numa determinada altura. Os estudos apontam que cerca de 65% das pessoas com problemas mentais ligeiros a moderados – quadros depressivos, de abuso de substâncias, particularmente álcool, e perturbações de ansiedade – não têm tratamento. Continua a haver muitas pessoas com doenças que não são, pelos mais diversos motivos, acompanhadas, seja nos cuidados de saúde primários quer nos cuidados especializados. Em relação à patologia grave, nomeadamente psicoses, pensa-se que a percentagem de pessoas que não tem acompanhamento será menor, mas mesmo assim ainda é relativamente assustador porque será muito próximo dos 50%. Deparamo-nos com situações graves de doentes, ainda relativamente jovens, que estão há dois ou três anos sem acompanhamento.
Qual a razão para a falta de tratamento? É o estigma?
Esse é um factor muito importante. Muitas vezes o próprio desconhecimento, que leva ao estigma, é um dos principais aspectos que condiciona essa acessibilidade, quer aos cuidados de saúde primários, onde muitas das situações devem ser tratadas, quer depois aos cuidados especializados para onde as situações mais complexas devem ser encaminhadas. Num serviço a funcionar minimamente bem, os serviços especializados devem debruçar- se sobre as situações mais complexas e mais graves. As situações ligeiras e moderadas podem e devem ser acompanhadas nos cuidados de saúde primários. O problema é que na nossa região tem havido grandes carências ao nível destes cuidados.
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