Práticas alegadamente discriminatórias ocorridas no distrito de Leiria nos últimos dois anos originaram 16 processos na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), o órgão especializado, em Portugal, no combate à discriminação, violação ou condicionamento de direitos em razão da etnia, cor, nacionalidade, ascendência ou território de origem.
Segundo o Relatório Anual de 2019 sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica, a CICDR recebeu oito queixas, denúncias ou participações em que a área geográfica é o distrito de Leiria, o mesmo número de casos registados no ano de 2018, mas mais do que em 2017 (o número exacto de casos em 2017 no distrito de Leiria não se encontra disponível, por ser inferior a três, o que obriga a segredo estatístico).
Já depois do fecho da edição impressa do JORNAL DE LEIRIA, a CICDR informou que das oito situações de 2019 referentes ao distrito de Leiria, “três foram encaminhadas para outras entidades em razão da competência específica na matéria, duas foram arquivadas por estarem incompletas e/ou não terem fundamento legal, duas estão na fase de diligências prévias à abertura de processo de contraordenação e uma deu já lugar a processo de contraordenação, que se encontra na fase de instrução”.
Em causa estão factos alegadamente ocorridos em contextos de trabalho, vida social privada, forças de segurança, juntas de freguesia ou câmaras municipais e comércio.
Também a nível nacional, lê-se no Relatório Anual de 2019 sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica em Portugal, se tem assistido “a um aumento consolidado do número de queixas”, com 436 participações, queixas e denúncias (classificação consoante cheguem, respectivamente, de outras entidades, das vítimas ou de terceiros) recebidas pela CICDR durante o ano de 2019, que representam um acréscimo de 26% em comparação com o ano anterior.
“O aumento de queixas enviadas à CICDR, que tem sido uma tendência dos últimos seis anos, é demonstrativo de uma maior consciencialização para a problemática da discriminação racial, bem como demonstra o conhecimento e reconhecimento crescente dos mecanismos ao dispor”, refere a CICDR no sumário executivo do documento.
Contudo, a Comissão admite que a estatística oficial “não representará o universo real da problemática da discriminação racial e étnica no contexto nacional”. Por um lado, porque outras entidades trabalham também esta temática em determinados contextos”. E, por outro, “porque nem todas as situações são efectivamente alvo de reporte”.
A investigadora Maria José Casa-Nova, da Universidade do Minho, que é membro da CICDR, acrescenta: “Na minha perpectiva, as queixas que chegam à Comissão não espelham a realidade da discriminação [em Portugal]. Pecam por defeito”.
Sobre o crescimento do volume de processos durante o ano de 2019, algumas hipóteses explicativas: “O aumento do número de imigrantes (em 2018, Portugal tinha 480 mil imigrantes em situação legal e, em 2019, tinha 590 mil); associado a esse aumento, o aumento das situações de discriminação que configuram racismo; uma maior sensibilização das pessoas para o fenómeno, predispondo-se mais para a denúncia; um maior conhecimento da existência da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial”.
Os dados de 2019 que respeitam ao local de ocorrência das situações alegadamente discriminatórias mostram que o distrito de Lisboa, os meios de comunicação social e a internet estão ligados a metade (50,2%) das participações, queixas e denúncias à CICDR no ano passado.
No distrito de Lisboa surgem declarados 122 casos (28% do total), mais do que nos distritos do Porto (33), Setúbal (33), Faro (18), Santarém (11), Coimbra (9), Leiria (8), Aveiro (6), Beja (6), Braga (6), Évora (6), Castelo Branco (5) ou Viseu (5).
Notando que todo o racismo é discriminação, mas nem sempre a discriminação é racismo, Maria José Casa-Nova lembra que em Portugal “a maior parte das pessoas imigrantes e descendentes de imigrantes” instalam-se “na área metropolitana de Lisboa”, designadamente, “as que são oriundas da África subsariana”.
Os meios de comunicação social e a internet são o espaço de ocorrência de 97 casos (22,2%) sinalizados pela CICDR em 2019. Segundo Maria José Casa-Nova, “as redes sociais são neste momento um dos maiores meios de propagação do discurso racista, a coberto do anonimato”.
O assunto tem vindo a ganhar espaço mediático, com o tom a tornar-se mais crispado e a envolver os líderes políticos. Na terça-feira, 18, foi divulgada uma carta aberta ao Presidente da República, assinada por 180 escritores de língua portuguesa, num texto “contra o racismo, a xenofobia e o populismo e em defesa de uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas”. Entre eles, Lídia Jorge, Mário de Carvalho, Francisco José Viegas, Mia Couto, Pepetela, José Eduardo Agualusa, Chico Buarque e Luís Fernando Veríssimo.
Na semana anterior, outra carta aberta, mas de associações e colectivos de afrodescendentes e ciganos, exigiu aos responsáveis políticos que combatam o racismo e o crescimento da extremadireita em Portugal.
Nos últimos meses, há registo de várias manifestações nas ruas, umas para denunciar o racismo, a xenofobia e a discriminação, outras para afirmar que Portugal não é um país racista. Entre elas, a parada Ku Klux Klan com máscaras e tochas diante da sede da associação SOS Racismo, no início de Agosto. Foi aproveitada pelo ilustrador Nuno Saraiva para um cartoon no suplemento humorístico Inimigo Público, em que aparece um polícia a empunhar uma das tochas, o que levou a PSP a anunciar uma queixa-crime contra o Público.
Entretanto, a Polícia Judiciária está a investigar ameaças ao dirigente da SOS Racismo Mamadou Ba, às deputadas Mariana Mortágua, Beatriz Gomes Dias e Joacine Katar Moreira, e a outras pessoas, a quem a organização Nova Ordem de Avis – Resistência Nacional dá um prazo para abandonarem o território português.
Para Maria José Casa-Nova, “a maior mobilização de pessoas com discursos e práticas discriminatórios e racistas contra os imigrantes e seus descendentes, mas também contra a população cigana portuguesa, encontra respaldo numa representação parlamentar antes inexistente”, que as faz sentirem-se “legitimadas para agir de forma mais sistemática e com maior visibilidade”.
A investigadora considera que “não se pode permitir que representantes dos portugueses, como são as deputadas e os deputados, que fazem parte da instituição Parlamento, sejam ameaçados”, porque “quando se ameaça deputados e deputadas de uma instituição como o Parlamento, são os portugueses que são ameaçados”, o que “representa uma escalada no grau e tipo de ameaça”. Defende também que “a prevenção e o combate ao racismo e a todas as formas de discriminação” é um compromisso de toda a sociedade: “A omissão e a indiferença são o palco maior para o seu desenvolvimento e sustentação”.
Barómetro revela percepções
Dados da União Europeia citados pela CICDR (provenientes do Eurobarómetro Especial n.º 493 – Discriminação, publicado em Outubro) mostram que a discriminação com base na origem étnica é considerada “comum” por 67% dos portugueses inquiridos e que a discriminação com base na cor da pele é considerada “comum” por 61%.
Por outro lado, 26% consideram que a origem étnica poderá desfavorecer um candidato a emprego com iguais competências e qualificações, subindo a prevalência para 31% quanto à cor da pele.
Sobre as políticas de combate à discriminação, 52% dos portugueses inquiridos crêem que os esforços feitos em Portugal para combater todas as formas de discriminação são eficazes ou moderadamente eficazes.
“O racismo existe. Ponto final. Não dá para fugir, porque está na rua”
Pela cor da pele, João Reis guarda na memória episódios que preferia esquecer. Ser tratado de maneira imprópria pela mãe de um aluno, que não percebeu a quem se dirigia. Caminhar na rua e ver um idoso a acelerar o passo para entrar em casa, por medo. Detectar olhares e posturas, a sinalizar a diferença. E sofrer insultos, de adeptos adversários, mas, também, de adeptos dos clubes de futebol e hóquei em que trabalhou como preparador físico.
“Ouvi de tudo, do público, nos jogos fora e nos jogos em casa. E de algumas pessoas que conheciam o meu pai e me conheciam a mim desde pequeno”. O que o leva a concluir que, em Portugal, “o racismo existe”. Mesmo escondido, a maior parte do tempo, nas entrelinhas e em ideias falsas como a de um país de brandos costumes. “Há sempre alguma coisa”, explica o professor que cresceu na Marinha Grande e chegou a liderar a associação de estudantes da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria.
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Um adulto bem integrado, social e profissionalmente, a quem a discriminação continua a magoar. “Sente-se cá dentro qualquer coisa que não sei explicar”. A semente germina até nos lugares que parecem mais seguros: das conversas de família que perpetuam a normalização de expressões racistas às desavenças nos recreios da escola em que a ofensa resvala rapidamente para a aparência de quem se pretende agredir.
Na opinião de João Reis, falta falar do assunto com clareza – “sem estigmas, sem fantasmas, sem apontar dedos, sem extremismos”, diz ao JORNAL DE LEIRIA – e “exorcizar a questão ultramarina”, processo que, acredita, ainda “não foi feito”, mais de 40 anos depois da descolonização.
Também são do futebol, alguns exemplos que Luís Gomes utiliza para ilustrar as expressões do racismo em Portugal. Até deixar de jogar, já depois dos 30 anos de idade, era garantido em cada 90 minutos que a cor da pele seria motivo para os adeptos o atacarem. “Mentalmente, sempre consegui superar”, garante.
A banalização da boca vinda da bancada, mesmo sem ferir o destinatário, ajuda a contextualizar o rastilho de episódios como o ocorrido com o futebolista Moussa Marega, em Guimarães, no último mês de Fevereiro. Mas, para quem cresce em Leiria no Bairro Sá Carneiro, numa família chegada de África depois do 25 de Abril de 74, há desafios muito mais difíceis de superar, todos os dias. “Tínhamos um problema muito grave. Para ter trabalho, tínhamos de dar a morada de outra pessoa, de fora daqui”, conta Luís Gomes, garantindo ao JORNAL DE LEIRIA que os empregadores recusavam “retornados a morar num bairro social”, conhecido por ser “um bairro de pretos”.
Hoje a relação entre o Sá Carneiro – ou Saka – e a cidade é outra e é o melhor. Mais aberta, mais tolerante, considera Luís Gomes, que faz parte da associação de moradores. Mesmo que de tempos a tempos os mais novos continuem a dizer que ouvem comentários na escola e são postos de parte no recreio, por serem do Bairro.
Na família de Valter Geraldes há mais do que uma cor, o que a torna numa espécie de espelho do mundo e da Humanidade. Filho de pai português e mãe angolana, que se conheceram em África, traz a mistura de culturas inscrita na pele. E na sua própria tribo, mulher e filho, também.
É sem revolta nem ódio, contudo, que fala do racismo que ainda existe e que ainda sente. Do qual “não dá para fugir, porque está na rua”. A ele, pela história de vida, acontece ser alvo de uns e de outros. Em Peniche, onde cresceu, muitos não aceitavam a relação sem preconceitos com todos os tons. Questionavam “o porquê de a maior parte dos nossos amigos [dele e dos irmãos] serem brancos e de termos namoradas brancas”. E na Marinha Grande, onde está empregado numa empresa de peças para automóveis, ouviu algo semelhante da voz de colegas de trabalho: “Gosto muito de ti, és muito bom rapaz, mas a minha filha casar com um preto, nunca”.
O vocalista da banda A Last Day On Earth, que vive em Leiria há 15 anos, diz que a intolerância persiste e sobrevive na sombra, no silêncio à espera de momento. “A qualquer pessoa se perguntarem se é racista, claro que diz que não. Mas depois foge-lhes a boca para a verdade”.
É uma chaga “que nunca foi resolvida, só camuflada”. Para a tratar, é necessário pedir ajuda às próximas gerações, conclui Valter Geraldes. Contar com as crianças para fechar a ferida: “Se não lhes for incutido o racismo, elas não vão ser racistas”.