Para Bernardo Pereira, aluno do colégio João de Deus, em Leiria, ficar em casa em tempo de pandemia é habitar um país que ele próprio imagina. Na Bernardia, o fundador da nação acumula os cargos de presidente da república e primeiro-ministro. Sabe o que acontece no mundo por estes dias e fala com tranquilidade de “um novo vírus” originário de “Wuhan, na China”, que “é diferente dos outros porque mata muita gente” e já fez “mais de 1 milhão” de infectados.
“Ele pesquisa na internet, explora as notícias e analisa comparando com o tal país dele. E quer criar um canal onde vai publicar um vídeo sobre o assunto”, adianta o pai, José Carlos Pereira.
Na Bernardia vivem 110 pessoas e há 12 casos activos de Covid-19, além de seis mortos e 17 recuperados. Também há equipamento para travar o contágio: Bernardo construiu, literalmente, uma máscara e uma viseira de protecção, a partir de plástico de encadernar, papel de cozinha e agrafos, entre outros materiais.
“Faz muitas perguntas, aquelas perguntas que todos nós nos questionamos e não temos resposta: quando é que isto vai passar, quanto tempo temos de estar em casa, por que é que a vacina não sai”, conta José Carlos Pereira. No território da fantasia, Bernardo explica: “Já encontrei uma vacina que recolhe as partículas de coronavírus do corpo e depois manda-as fora”.
Apesar da idade, nove anos, o discurso acerca do real é transparente, as recomendações das autoridades de saúde estão na ponta da língua: “Usar máscara, distanciamento, lavar as mãos com uma solução à base de álcool, usar luvas de protecção, evitar tocar na boca, olhos ou nariz”.
Ao fim de um mês de isolamento, os jogos de futebol e as caminhadas ajudam a família a quebrar a rotina. Sempre cumprindo as regras de segurança, sem contacto com terceiros. E os pais continuam a trabalhar a partir de casa, convencidos que o mais importante é “transmitir optimismo”. Ao Bernardo e à irmã, que vai fazer quatro anos.
Sem ansiedade
Ambiente semelhante respira-se na casa das gémeas Filipa, Gabriela e Vitória, onde a prioridade é manter “a luz ao fundo do túnel”, com o contributo de dois patudos de estimação.
“Não sinto que haja ansiedade, medo ou intranquilidade”, afirma Wagner Fernandes. “A maneira como elas lidam com a situação também nos ajuda”. A mãe concorda: “Sabem que não se consegue ter uma percepção se haverá escola após a Páscoa, mas não me parece que isso lhes cause ansiedade. Acho que estão à espera de saber. Tem que ver, acho eu, com a maneira de estar delas”.
As brincadeiras ao ar livre no espaço comum do condomínio fechado, a trotineta e a bicicleta na garagem, os legos e a Nintendo Switch, mas também a rotina das tarefas domésticas, como que aceleram os ponteiros do relógio e atenuam o peso do isolamento.
“Temos noção, e também lhes explicamos, que temos uma realidade que não é a realidade de muitas pessoas. Não quer dizer que seja melhor ou pior, é diferente, das pessoas que vivem no centro da cidade em apartamentos. Neste contexto, não estão tão bem, se calhar, como nós estamos”, refere Alexandra Almeida.
As gémeas, também alunas do quarto ano no colégio João de Deus, em Leiria, continuam a ter contacto com as notícias – “não bloqueámos o acesso à informação, pelo contrário” – e acompanham muito do que se vai passando em Portugal e no mundo. Com naturalidade. Estão conscientes, por exemplo, que o vírus “se propaga muito rapidamente”, o que obriga a cuidados redobrados.
Os pais, ambos em teletrabalho desde há um mês, não se recordam de perguntas difíceis por causa da pandemia. O que Gabriela, Filipa e Vitória mais querem saber, no fundo, é a data do regresso às aulas e ao convívio com os colegas de turma, com quem agora conversam através de vídeochamadas ou mensagens. E respondem quase em coro quando se fala de saudades: “Dos amigos”.
Pinturas e construções
Rafael Santos, oito anos, diz rapidamente ao JORNAL DE LEIRIA que é necessário “isolamento social para o coronavírus não se espalhar mais rápido”. Entre pinturas e construções, com que tem passado o tempo, também explica que este é “um vírus novo”, para o qual “ainda não há tratamento”, diferente de outros vírus “porque é mais ou menos uma gripe, mas muito mais forte, mata muito mais gente”. Daí a recomendação para “sair o menos possível” e na rua “usar máscara”.
Nas últimas semanas, a televisão, a escola e os pais funcionaram como fontes de informação para o aluno da EB do Arrabalde, em Leiria, definir uma perspectiva sobre a pandemia. “Surgiu-me a pergunta: isto já aconteceu? E se ia mesmo chegar a Portugal”.
Em família, o assunto foi sendo abordado “naturalmente, não criando alarmismos, mas tendo em conta as directrizes que vinham da Direcção Geral da Saúde e da Organização Mundial da Saúde”, resume a mãe.
Alguns dias antes de o Ministério da Educação suspender as aulas em Portugal, ele deixou de ir à escola. “Tenho amigos que vivem noutros países e que me alertaram para esta questão”, justifica Sofia Rino. “Aplicámos tudo mais cedo aqui em casa, todas as medidas, antes de serem generalizadas”.
As tecnologias digitais são agora o melhor aliado para Rafael manter jogos e conversas com os amigos, à distância, mas também houve oportunidade para participar em algumas das iniciativas que têm vindo a humanizar os dias da Covid-19 – por exemplo, as palmas à janela em homenagem aos profissionais da saúde ou os já famosos desenhos do arco-íris.
Sofia Rino concorda que a alegria e a coragem das crianças representam uma força suplementar para os adultos. “A partir do momento em que somos pais isso acontece. E não deixa de existir. Em situações adversas e complicadas como a que estamos a viver, mais ainda”.
O que é que as crianças precisam de saber? Toda a verdade? Só uma parte da verdade?
A verdade tem de ser transmitida de uma forma o mais coerente possível. Sem rodeios, sem mensagens ambíguas, com uma linguagem apropriada ao nível etário e à capacidade de compreensão das crianças, mas dizendo que se trata de uma doença que não tem cura e que é muito rapidamente contagiosa, [que] as pessoas podem ficar doentes com consequências graves e no limite isso pode conduzir à morte, sobretudo nas pessoas mais vulneráveis. Ter informação sobre o que fazer, transmitindo às crianças que elas, apesar de poderem ser portadoras, não têm as consequências mais graves como poderá acontecer com os adultos, mas isso não lhes deve dar permissão para poderem ser pouco responsáveis.
O facto de estarmos a lidar com um inimigo invisível torna mais difícil a comunicação com os filhos?
Não conseguirmos observar o vírus ou encontrar provas de que está presente é desafiante, mas também pode ser causador de um medo exacerbado. Aí a mensagem que deve ser transmitida é que eles se devem transformar quase em heróis de combate ao vírus, no sentido de eles próprios serem agentes de mudança e de responsabilidade. Evitar que sejam contagiados, evitarem o contágio com os outros, portanto, nesse sentido é que são heróis, por terem esse poder de destruir o vírus de uma forma proactiva.
Nesta circunstância e noutras, as crianças são um exemplo de resiliência e de coragem?
Claramente. Dão-nos muitas mensagens importantes no dia a dia. Quando nos dão a noção que devemos estar descontraídos ou até brincar um bocadinho com a situação. Eles, perante a adversidade, encontram aspectos favoráveis, isso é uma prova da sua resiliência.
Como é que se lida com o receio da morte?
É uma oportunidade óptima para falar sobre esses e outros assuntos. Sobre o que são vírus, o que é uma pandemia, o que são doenças que não têm cura, o que é uma vacina. É igualmente uma oportunidade muito importante de abordar a morte como um assunto que não é tabu e que deve ser realmente alvo de conversa, de uma forma, mais uma vez, apropriada ao nível de desenvolvimento da criança e às suas capacidades de compreensão.
Há o perigo de se tornarem crianças mais medrosas?
Essa é daquelas questões para as quais vai ser dificil ter resposta de imediato, só o tempo nos vai dar oportunidade de esclarecer isso de forma mais concreta. Devemos projectar um futuro mais vantajoso e progressivamente melhor a partir desta experiência e a resiliência deve estar subjacente nessa projecção. Devemos transmitir esperança e segurança, dizendo às crianças que não vamos ficar em casa para sempre, que vamos encontrar solução para este problema. Aliás, acho importante dizer que, apesar de ainda não existir uma vacina, estão peritos de todo o mundo à procura. Que não vamos manter estas rotinas permanentemente, que vamos continuar a ser capazes de enfrentar esta dificuldade. É importante dizer que estamos a ser actores de uma história que nunca tínhamos vivido e teremos certamente um papel extraordinariamente importante na civilização, na nossa geração e nas gerações futuras. Dar essa mensagem à criança como sendo um agente de esperança e de capacidade de resistir a uma coisa tão grave é talvez um aspecto que contrarie essa ideia de que o medo pode instalar-se e vir a ser um comprometimento na vida deles e dos outros. Aqui, como em tudo na vida, os pais são modeladores: se forem capazes de transmitir confiança, esperança e capacidade de serem optimistas, isso vai passar para as crianças; se houver o contrário, também.
É essencial manter as rotinas?
É importante que haja um equilíbrio, ou seja, não ser rígido, ao ponto de isso causar transtorno e criar ainda mais tensão no ambiente familiar, mas também não ser completamente permissivo e não ter horários para nada. Porque a rotina é estruturante do comportamento e da nossa capacidade de conseguirmos gerir as diferentes tarefas e responsabilidades. Deixando de haver uma rotina, pode cair-se no erro da total permissividade ou desorganização e isso, não digo no imediato, mas, no médio e longo prazo, trazer consequências.
Como é que as famílias podem aproveitar este período de reclusão forçada?
É a oportunidade de ouro para poderem fazer outras coisas que provavelmente antes do estado de emergência em que nos encontramos não tinham. Deve ser um momento em que se deve fazer uma apologia dessas actividades que antes não tínhamos oportunidade de fazer. Em casa, obviamente. Talvez uma espécie de celebração da lentidão. E ser o mais criativo possível.
Podemos aproveitar para finalmente materializar as mudanças que queríamos nas nossas vidas?
Nada vai ser como era dantes, isso é incontornável. As experiências que vivermos neste período vão ser altamente condicionantes do que iremos fazer a seguir. Penso que uma boa percentagem da população vai tirar partido disto no sentido em que percebeu claramente que é possível usar outros mecanismos de interacção, de trabalho, de poder dizer que não a algumas coisas. Há oportunidades que se vão criar que antes não existiam.