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Por outro lado há especialistas que defendem a urgência e adequação da intervenção. Afinal, quando é que se deve intervir em património classificado?
A intenção de criar uma cobertura na Igreja da Pena, no Castelo de Leiria, para acolher eventos de variada natureza, gerou contestação nas redes sociais e está a circular uma petição contra a acção no antigo local de culto.
Criada na plataforma online Petição Pública, ao fim de duas semanas o documento contava com 31 assinaturas. Os criadores da petição referem que o castelo “é um dos monumentos mais maltratados de Leiria” e que embora aplaudam o desejo de preservar o monumento, “bem como de o transformar num espaço de utilidade”, condenam a intenção de colocar materiais modernos num monumento medieval, em específico na Igreja da Pena.
O documento refere ainda que este pormenor da intervenção “é sintomática de uma noção de ‘conservação’ moderna e altamente prejudicial para o património histórico” e que a adaptação moderna da Igreja da Pena não se conjuga com o restante espaço, e tem um impacto negativo no espaço envolvente.
“A adaptação moderna da Igreja da Pena a sala de espectáculos oblitera por completo a sua valência medieval, enquanto, o inverso – o restauro de feições medievais –, não elimina a valência do espaço enquanto sala de espectáculos.”
Os subscritores pedem que seja revisto o parecer da Direcção-Geral do Património e Cultura que autorizou a cobertura e que seja “imediatamente abandonada” a intenção de cobrir a Igreja da Pena com um “telhado moderno e totalmente descaracterizante”.
“Jóia do gótico” que se perdeu por incúria
Em meados do século XIX, o abatimento do tecto da Igreja da Pena, antiga capela real de D. João I, “filha” do gótico do Mosteiro da Batalha e um dos melhores exemplos do estilo em Leiria levou a que a cidade do Lis perdesse uma das suas jóias por acção dos ventos, da chuva, dos líquenes, dos pombos e da incúria humana.
Na mente do historiador Saul António Gomes, autor de diversos trabalhos de investigação sobre a antiga fortaleza, esta é uma certeza baseada em provas documentais e arqueológicas. “Perdeu-se o tecto que, segundo O Couseiro, seria magnífico, os frescos, o mobiliário, a decoração escultórica… A cobertura deveria ter sido colocada, logo no século XIX”, afirma.
O docente da Universidade de Coimbra teme que, sem o telhado que o protegeu durante séculos, o espaço e o património que ainda resta, continuará a degradar-se. “Temos de preservar e transmitir às próximas gerações e isso será com a cobertura de protecção.
Aquela igreja não é as Capelas Imperfeitas. Foi criada com um fim e cumpriu-o durante muito tempo. Era local de culto e não um monumento em ruínas”, afirma, sublinhando que a colocação de uma cobertura para protecção será uma intervenção realizada de acordo com os preceitos em vigor. Segundo a autarquia, a cobertura do edifício que chegou a ser a Sé da Diocese de Leiria, será assente numa estrutura metálica em cobre, com uma área em vidro, de forma a permitir a “entrada de luz”.
O arquitecto Vasco Pinheiro, da empresa Santos Pinheiro que elaborou o projecto, explica que a intervenção pretende, essencialmente, “travar o processo de degradação” do edifício, mandado construir no século XIV por D. Dinis.
"A marca do arquitecto deveria ser elogiada por ser contida"
De uma forma ou de outra, a discussão está em cima da mesa. Quando, como e porquê se deve intervir em património classificado? Na região há vários exemplos de criação de novos espaços a partir de património antigo. Nalguns, houve reconstrução e readaptação, como aconteceu no castelo templário de Pombal, cuja torre, com aplicação de aço corten, é visível à distância, ou, na reformulação, quase sem impacto visual do espaço, no Museu do Moinho do Papel, em Leiria, com projecto do arquitecto Siza Vieira, ou ainda a criação de um novo edifício em vidro e aço, junto à Resinagem, na Marinha Grande, que acolhe o Núcleo de Arte Contemporânea local.
Quando se trata de intervir no património, classificado ou antigo, não há apenas uma corrente de pensamento. Há várias perspectivas e considerações a serem feitas, de acordo com os casos concretos.
De um lado, há quem defenda o ruinismo, do outro, quem argumente pela reconstrução pesada e total com traços contemporâneos. São posições extremadas, maniqueístas e fonte de continuada discussão. As concepções sobre a inviolabilidade do património não são imutáveis.
Veja-se o caso da destruição, em 2011, da capela das Chãs, templo com origens no século XVI, na freguesia de Regueira de Pontes, Leiria. O mais antigo edifício da localidade e guardião das memórias da comunidade, foi considerado sem interesse patrimonial pelo Igespar e mandado demolir pela paróquia local, após aprovação da Câmara de Leiria, de modo a construir-se um adro para servir ao templo contemporâneo, entretanto construído para o substituir.
Certo é que, nos últimos anos, a ideia de que as intervenções devem usar linguagens plásticas, materiais e volumes contemporâneos, marcando o contraste com o património pré-existente, tem vindo a ganhar adeptos. "Não mimetizar e não copiar os traços arquitectónicos que já existiam. A ideia tem ganhado força, mas nem sempre por boas razões. Muitas vezes, porque há um mercado de arquitectura, engenharia e pessoas ligadas aos materiais, que pretendem deixar a sua marca e intervenção nos locais e impelem a concepção neste sentido", acusa o vice-presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses.
Luís Raposo, que foi presidente do Museu Nacional de Arqueologia e é, presentemente, presidente do ICOM Europa, sublinha que, bastas vezes, mesmo havendo uma justificação bem fundamentada, as intervenções são impulsionadas por "lobbies".
Por outro lado, adianta, há quem defenda o “ruinismo”. Ou seja, que a melhor e mais digna forma de olhar, de preservar e trazer para a contemporaneidade o património edificado e os vestígios do passado é conservar as ruínas e os sinais da passagem dos tempos, devidamente tratados, com "estancamento" dos processos de deterioração.
São ideias que estão nos antípodas uma da outra, e que levam o arqueólogo a afirmar que é necessário ser-se cauteloso e olhar para as características únicas de cada caso e que, mesmo optando por uma linguagem contemporânea, se deve ser muito prudente e limitado nas intervenções.
"Há monumentos onde há exagero de acção contemporânea, ao nível dos volumes e dos materiais. O aço escovado até está muito na moda… mas é algo demasiado pesado e agressivo. Parece que o arquitecto quer deixar a marca da sua passagem pelo monumento, quando a marca do arquitecto deveria ser elogiada por ser contida."
“Nos tempos em que vivemos, caímos nos extremos, ou somos muito conservadores e fundamentalistas ou esquecemos o património e deixamo-lo degradar-se”. O director do Mosteiro da Batalha também denota a existência de uma visão dicotomista nestes processos. [LER_MAIS] Joaquim Ruivo afirma que o edificado não deve ser para “meia-dúzia de eleitos” que têm dele uma “visão paternalista e de elite”.
“Não podemos esquecer que o património deve ser marcado pela época em que vivemos. Faz parte do devir histórico”, sublinha. Criar uma estrutura como um telhado para proteger o património do desgaste da natureza é, para este responsável, "como colocar um vidro à frente de um quadro". E os monumentos precisam de intervenções todos os anos.
Na Batalha, há peças de pedra que vão sendo trocadas por reproduções, pois os “eternos” anjos, gárgulas e figuras históricas nas fachadas, de sólida pedra calcária, são facilmente vítimas dos elementos, desfazendo-se. O processo é supervisionado pela Direcção-Geral de Património Cultural.
O cuidado é tal que este organismo dita até os ingredientes e as percentagem destes, na massa das juntas que unem as peças dos telhados e terraços do mosteiros a nível nacional. "Qualquer intervenção num castelo, igreja ou outro monumento classificado, à partida, é realizada por técnicos competentes, garantindo a sua qualidade e adequação", enfatiza.
Estamos a atravessar um período marcante na história da arquitetura: vivemos a época da aceleração e consequente fragmentação. Neste fast-thinking atual vão-se esquecendo as memórias e a cultura do lugar é mais permeável; assistimos a um avanço tecnológico e rápido Penser la Vitesse*, difícil de acompanhar, com impacto nefasto no mundo da arquitetura, aliado ao desinteresse dos autores nos valores importantes da mesma. Numa sociedade com exigências de mercado, impõe-se a obra num curto período de tempo. O avanço da tecnologia fez da mecânica elemento castrador do pensamento, tornou o acto de projetar rápido e fácil, fazendo com que elementos básicos do pensamento arquitetónico se estejam a perder dando lugar a simulações e simulacros Simulacres et Simulation** em edifícios de caráter gritante e extraordinário. Estes são tradutores de interesses e servem o ego dos homens, não a arquitetura nem o património. São determinantes os princípios básicos na intervenção do edificado, assentes na coerência da obra, onde o sentido do Lugar, de pertença e a materialidade, exigem do autor uma grande capacidade e sensibilidade perante o projeto de arquitetura “o temperamento da obra”***. Esta deve ser ancorada em princípios de sustentabilidade e integração harmoniosa no meio. A energia do lugar, as suas memórias e atmosfera, sendo abstratos são relevantes na questão afectiva, uma vez que se está perante uma reabilitação e a recuperar algo que fará parte de um lugar já amado, que irá ser revivido e ter continuidade, “A Obra Ajustada”. Arquitetar é pensar a cidade dos homens, é expressá-lo num gesto, num desenho e, finalmente, no objeto estético e arquitetónico. Na ruína, adivinha-se a beleza matricial, ela faznos viajar no tempo, no Belo. O local não é de quem intervém.
*Paul Virílio; **Jean Baudrillard; ***Viollete Le Duc
Jorge Francisco, arquitecto
Texto escrito segundo o Acordo Ortográfico