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A peça é da autoria do artista plástico natural de Évora, mas a residir em Leiria, Ricardo Romero (@projectomatilha | #projectomatilha) e a nota explicativa saiu da pena do escritor de Leiria Paulo Kellerman, que foi convidado pelo autor, a escrever o texto abaixo.
OLHAR E NÃO VER
Olhas e pensas: é um gato preto, apenas um gato preto. E segues a tua vida, porque nada te interessa mais do que seguir a tua própria vida. Olhas e já me esqueceste, são esses os dois lados inseparáveis da tua acção: olhar e esquecer.
De forma simples (e tu precisas que as coisas sejam simplificadas, para que não percas tempo a pensar nelas), chama-se a isso olhar e não ver. Quantas vezes te acontece durante um único dia? Quantas vezes olhas sem ver? Ou será que chegas realmente a ver alguma das coisas que olhas?
Talvez passes o dia de olhos fechados, apesar de aparentemente estarem abertos. Mas isso é um assunto teu. Fazes o que sempre fizeste: segues a tua vida; apesar de na verdade talvez não saberes bem para onde estás a seguir. Mas isso também é um assunto teu.
Sou um simples gato preto, aqui colocado para que tu me olhes; se me vês ou não, pouco importa. Especialmente para mim: mesmo que não me vejas, continuarei aqui. Ou seja (estou a simplificar outra vez, para que não percas tempo a pensar; não te ofendas), o teu olhar é irrelevante; e o que fazes com o teu olhar também é irrelevante. Podes olhar, podes não olhar; podes ver, podes não ver. O que muda? Nada.
O mundo permanece inalterado. Não o afectas, apenas passas por ele. Deslizas pelo mundo. Com pressa, sempre com pressa. Porquê tanta pressa? Porque não paras e olhas e vês? Para ti, poderia não ser irrelevante. Olhas um gato preto na rua e vês como sou grande. Sou grande para que me vejas.
Há algo de inesperado nisso, não achas? E esse inesperado poderia causar-te curiosidade ou desconforto. Duas coisas boas, duas coisas fundamentais: a curiosidade e o desconforto podem fazer com que te mexas, que procures, que imagines, que questiones. São motores. Queres que simplifique?
Então aqui vai: se não sentes curiosidade ou desconforto é como se estivesses morto. Sim, eu sei que não pareces nada morto, sei que segues a tua vida, porque nada te interessa mais do que seguir a tua própria vida. Segues, é verdade; e sempre com pressa, com tanta pressa. Mas quem te disse que movimento é sinónimo de vida? Mexo-me, logo vivo. Disseram-te isso, não foi? E tu acreditaste. Convenceram-te que se te mexeres muito, em todas as direcções, sem nunca parar, estás vivo. Que é isso estar vivo: nunca parar. Pois eu digo que te enganaram.
Sim, sou um gato preto com dois metros e vinte de altura, feito de resina acrílica sobre esferovite. Aparentemente, não me mexo; não sigo a minha vida; não tenho pressa. Estou aqui, simplesmente. Tão imóvel que passas por mim sem me ver, como se fosse paisagem; não, como se fosse menos que paisagem.
Como se fosse uma invisibilidade; uma invisibilidade preta com dois metros e vinte de altura. Ou uma transparência. Mesmo que olhes, vais pensar assim: é um gato preto, apenas um gato preto. Porquê? Porque não vês aquilo que olhas. Porque quando olhas apenas te vês a ti, apenas vês os teus pensamentos.
E não aceitas que te digam aquilo que não te interessa ouvir. Apenas te ouves a ti próprio, e aos teus ecos. Não te interessa ouvir o que digo. Não tens curiosidade pelo que desconheces, porque precisarias de assumir que na verdade desconheces praticamente tudo; e isso causar-te-ia desconforto.
O desconforto que te faria mover para satisfazeres a curiosidade, entendes? É por isso que não paras, é por isso que não vês? É por isso que preferes deslizar? Porque quem desliza não se agarra a nada. Não se prende. E tu valorizas muito a tua liberdade, não é?
Dizes: sou livre. E até inchas de orgulho quando te ouves dizer que és livre, até cresces. Ultrapassas os meus dois metros e vinte de altura. Mas de que te serve a liberdade se não a podes partilhar? Sou apenas um gato preto, não percebo muito de humanidade. Mas parece-me que aquilo a que chamas liberdade pode confundir-se um pouco com algo a que eu chamaria solidão.
És livre ou estás só? Bom, mas isso é um assunto teu. Todos os assuntos são teus. Não pares, não vejas, não penses, não questiones. Problema teu. Desculpa a pergunta mas… O que fazes é viver ou fugir?
Parece-me que olhas para o mundo como se fosse transparente. A paisagem é transparente. A cidade é transparente. Até as pessoas são transparentes. Como vento. Para ti tudo é vento? Agitações invisíveis em que nem sequer reparas. Sopros. Desculpa lá falar assim, sou um bocado senhor dos meus pensamentos e não me acanho em verbalizá-los. Coisa de gato.
Mas essa tua arrogância faz-me confusão. Passas a correr, concretizando aquela velha frase que diz: parar é morrer. Que caralho de frase tão idiota. Faz-me mesmo confusão. Se todos correm e nunca param, como fazem para falar uns com os outros? Em que momento partilham sorrisos? Em que momento se conhecem? O movimento é inimigo do conhecimento, acho eu. E do afecto. Como abraças alguém em movimento? Explica-me lá.
É pena eu ser transparente para ti; não me vês, não me ouves. Não pode haver diálogo com a transparência. Não irás dizer-me: mas que sabes tu de abraços, se és um gato? Olhas e pensas: é um gato preto, apenas um gato preto. Não vês para além do que olhas. Não entendes que o mundo é uma janela; uma imensidão de janelas.
Não entendes que até eu sou uma janela. Não entendes que onde tu vês transparência podem existir espelhos; espelhos que te reflectem, onde te podes olhar e conhecer, onde te podes aprender. Onde podes encontrar perspectivas diferentes de ti. Prendes o teu olhar e não deixas que ele veja, não permites que espreite pelas janelas. Receias os espelhos. Prendes o teu espírito dentro de ti. E depois ainda dizes: sou livre.
Fazes-me rir, desculpa que te diga. Passas a correr e eu permaneço aqui, parado; um gato na cidade, nem sequer chego a ser um sorriso na multidão. Apenas um gato preto com dois metros e vinte de altura, feito de resina acrílica sobre esferovite. Mas tu, que passas a correr, és feito de carne que não sonha; e por isso, estás muito mais morto do que eu.
És apenas movimento, e nada mais. Queres que simplifique? És vento, és um sopro. És um vuu-uuuu-uuu vuuuuu vuuuuuu-uu. E eu aqui estou, e eu por aqui fico: a ver o vento passar.
Gato Preto – Olhar e não ver
380 x 230 x 90 cm
Escultura em resina acrílica
Arte Pública Leiria 2019
Texto: Paulo Kellerman
Imagem :Guido van Helten
Edição: Pedro Guerra