Este é, seguramente, um Natal diferente, por força da pandemia. Que adaptações fará a Igreja?
Este é sempre um tempo muito especial. Este ano, é um especial condicionado à realidade, mas na Igreja já estamos adaptados. Desde que terminou o grande confinamento inicial, encontrámos modos seguros de realizar as nossas celebrações. Haveremos de voltar a fazê-lo de forma muito mais tranquila e sem todos estes cuidados, mas, por agora, eles fazem parte da realidade da nossa vida. A liturgia não podia ser diferente. Não estamos a fazer nada de extraordinário se não adaptar as celebrações às necessidades profiláticas e à nossa responsabilidade.
Como avalia a resposta que a Igreja tem dado à crise pandémica?
A reacção tem sido dentro do que é o dever da Igreja. Primeiro, a responsabilidade perante uma situação que é dramática em todo o mundo. A reacção de nos defendermos e de cuidarmos uns dos outros. Depois, dentro desta realidade, inserimos a nossa fé e as nossas celebrações. Do ponto vista da vida interna da Igreja, foi necessário encontrar soluções para que, por exemplo, as crianças pudessem continuar a catequese e para que os jovens tivessem a ocasião de crescer na fé. Procurar alternativas exige criatividade. Socorremo-nos de todos os meios de comunicação e muitos jovens estiverem presentes nesse processo. Foi também necessário encontrar novas formas de acolher, com espaços e ambientes adequados para celebrar em segurança e, ao mesmo tempo, com interiorização
Essa necessidade de acudir aos outros surge num contexto em que as paróquias e as instituições da Igreja se debatem também com dificuldades por via da diminuição de receitas.
É verdade. Não é só o Orçamento do Estado que conhece as limitações e os desafios do momento presente. As nossas comunidades e as famílias estão em grandes dificuldades. Mas vamos ultrapassá-las. É interessante ver como as pessoas entenderam isso, procurando, cada um segundo as suas possibilidades, participar na solução dos problemas com que nos vamos deparando.
Como se explica a um católico que não pode, por exemplo, estar presente numa peregrinação em Fátima, mas que, como cidadão, pode participar em iniciativas políticas, manifestações ou eventos desportivos?
O que importa não é saber quem ganha mais ou quem tem mais influência, mas sim apoiarmo-nos uns aos outros e encontrarmos caminhos de responsabilidade. É disso que se trata. Em causa está sempre a questão do cuidar. Quando se levantam essas polémicas, procura-se saber quem é que sai a ganhar e a perder. Se olharmos para essas contas, dá a ideia de que em algumas situações a Igreja saiu a perder. [LER_MAIS]Não me incomodada nada. O Papa Francisco está farto de dizer que a função da Igreja é a de cuidar da fragilidade. Este é o mistério do Natal. Gostava que desta pandemia saíssemos todos mais fortes, porque cuidámos dos fracos. Se assim não for, podem uns sair a cantar de galo, mas vão cantar num poleiro cada vez mais vazio e solitário. E nós não queremos um mundo solitário. Queremos um mundo solidário. A preocupação central é a de cuidarmos melhor uns dos outros. Precisamos de reunir as energias que temos para cumprir essa função. Hoje, há tanta gente que vive sozinha, que precisa de apoio. E a Igreja, sem o publicitar, tem estado presente. As paróquias têm, diariamente, correspondido, com a assistência às pessoas. E não é só dar alimentos. É mais do que isso. Trata-se de as pessoas saberem que não estão sozinhas no mundo.
Sentiu, em algum momento, que tenha havido limitação à liberdade religiosa?
Pode usar-se a força do vento, mas o vento não se prende. Não acho que com as restrições impostas tenham tirado alguma liberdade religiosa. Pode-se discutir uma ou outra medida. Mas, repito, o problema não é saber quem é que manda mais, mas antes o direito e o dever de todos colaborarem. A posição da Igreja tem sido a de colaborar, para que possamos sair desta emergência o melhor possível.
Que sociedade gostava que emergisse desta situação?
O facto de termos sido obrigados a parar fez-nos reequacionar muitas coisas. Por exemplo, antes havia um grande frenesim por causa da limitação do défice. De repente, isso deixou de ser prioridade. Por causa da pandemia, produziu-se e consumiuse menos. Começámos a perceber que o elementar é cuidarmos da vida uns dos outros. Isto é muito importante. O mudar a escala de valores. Se calhar, posso prescindir de umas férias, mas consigo o suficiente para viver. Contudo, também devo pensar como vão viver aqueles que eu alimentava com as minhas férias. Não é uma equação simples. Há uma dimensão social nesta pandemia, que nos impõe que olhemos para o valor humano, não só daqueles que foram atingidos directamente pelo vírus, mas também daqueles que são afectados pelas consequências da pandemia ao nível dos rendimentos, do trabalho e das relações sociais e familiares. A questão é saber o que é melhor para a pessoa e para a sociedade. Devo pensar não em mim, no meu grupo ou na minha família, mas a nível global. Esta casa comum chamada Humanidade tem de ser, de facto, para todos. Não podem uns ocupar a casa toda e outros ficarem num buraco.
Mas, parece que é isso que irá acontecer, por exemplo, com a vacina contra a Covid-19, havendo já alertas de que os países pobres não terão acesso a ela no curto prazo.
Isso levanta questões éticas, de saúde pública mas, sobretudo, de eficiência no combate à pandemia. Veja-se o que aconteceu a seguir ao desconfinamento, com o surgimento de surtos e a disseminação da doença em locais onde as pessoas viviam num aperto tal que o contágio era inevitável. Daí passou para os transportes, para as fábricas e por aí fora. Uma sociedade que se quer saudável não pode ter bolsas de miséria deste género. Não podemos ter este tipo de fosso na casa comum, em que uns ocupam a casa toda e outros ficam no contentor. Um mundo moderno, que é capaz de ter sucesso, não pode ser um mundo tão desigual. O preço de deixar pessoas para trás é muito grande para a sociedade. É uma questão de eficiência do sistema, mas, acima de tudo, de humanismo.
Durante a peregrinação de Outubro no Santuário de Fátima deixou alertas contra o “mostro pandémico” do populismo.
O problema do populismo não é novo.
Está agora mais visível?
É mais visível, porque patamares que pensávamos que já estavam ultrapassados não o foram. Não tem mal alguém gostar do seu país. Se assim não for, algo vai mal. Claro que gosto muito do meu País, quero que ele prospere, que seja justo, solidário e de sucesso para todos. O problema é que aqueles que mais falam de nacionalismo não o fazem para defender o País, mas para se defenderem a eles. Quando se falava na independência da Madeira [D. José Ornelas nasceu na ilha], eu perguntava: Quando nos libertarmos dos portugueses, quem nos vai libertar dos nossos libertadores? Há movimentos que são justos, mas brincar com isto é muito mau. Somos seres gregários e isso é muito positivo. O estarmos unidos, o cuidarmos uns dos outros. Mas esta gente não está aí para cuidar. Estão apenas cuidando de si.
À margem dessa eregrinação falou sobre as contas do Santuário de Fátima, que não são tornadas públicas desde 2006. Disse, então, que a seu tempo ser fará essa divulgação.
O que está em causa é precisar os princípios que foram acordados [no âmbito da Concordata] e encontrar soluções para questões que nunca foram regulamentas.
Em 14 anos ainda não foi possível esclarecer essas questões?
Da nossa parte, há vontade de esclarecer. As contas do Santuário não são o arcano dos segredos. São auditadas todos os anos pelas melhores instituições que há no País e pelos órgãos representativos e de controlo que estão definidos. A sua publicitação tem de ser cuidadosa. Não é a praça pública que vai ditar o acerto e a transparência de contas do Santuário. Para serem divulgadas, é necessário acertar os conteúdos. É preciso esclarecer, por exemplo, o tratamento fiscal a dar aos donativos. Não se trata de ocultar informação, mas de regulamentar.
Mas os peregrinos, que são a grande fonte de receita do Santuário, têm o direito de saber onde é aplicado o seu dinheiro?Têm, mas também não quero que esses peregrinos sejam prejudicados no destino dado aos seus donativos por uma interpretação errónea das coisas. A verdade tem de ser transparente. Estamos a dar passos para que isso seja possível.
A Conferência Episcopal Portuguesa aprovou, recentemente, as linhas orientadoras sobre a protecção de menores. Que mudanças são preconizadas?
Este documento vem na sequência de orientações e de práticas que estão a ser implementados há algum tempo e que contemplaram já a constituição de comissões em todas as dioceses, que se encontram a elaborar os seus próprios regulamentos e a fazer formação. Queremos pôr essas pessoas, ligadas à psicologia, à medicina, à psiquiatria ou ao direito, a trabalhar para um objectivo comum, que não é apenas o de lidar com possíveis casos de abusos, mas também o de os prevenir e evitar. É preciso criar uma cultura no sentido de as pessoas que trabalham com crianças terem comportamentos correctos e estarem atentas aos sinais das crianças. A sociedade deve, no seu conjunto, criar uma mentalidade de real protecção às crianças.
A Assembleia da República chumbou a proposta para a realização de um refendo sobre a eutanásia e prepara-se para, no próximo ano, avançar com votação final da Lei de despenalização da morta assistida. Foi uma derrota para a Igreja católica, que tanto defendeu o referendo?
Vamos continuar a afirmar aquilo que sempre afirmámos: o carácter fundamental e necessário da vida em todas as suas dimensões e etapas, até à sua consumação nas mãos de Deus. Não considero que tenha sido um dia muito feliz para a democracia portuguesa. Impedir o povo de se exprimir, não foi feliz. Os deputados foram lá colocados para nos representar, não para nos substituírem. Os deputados arrogarem-se o direito de substituírem as pessoas que representam… não me cheira bem. No mínimo, tinha de se ouvir o povo.
Já assumiu que não veria mal a possibilidade de haver padres casados. Não sendo o celibato um dogma de fé, por que é que a Igreja receia dar esse passo?
O celibato é uma disciplina e uma opção que tem o seu valor. Exprime a minha forma de estar e de viver o mistério cristão como um serviço total aos outros. Não significa que, por não casar e não constituir família, deixe de ter afectos, mas antes que esses afectos se multiplicam por muitos e que eu estou ao serviço da minha comunidade e da Igreja com uma dedicação total. No momento em que matasse os meus sentimentos, a minha capacidade de amar e afectividade não prestaria para nada. O que digo é que [o celibato] não é único caminho. É algo que a disciplina da Igreja pode mudar. Até porque não foi sempre assim na igreja. Não veria mal nisso. Não sou o primeiro nem o único a defender isso.
Falou da disponibilidade para o exercício da função proporcionada pelo celibato, mas também há o outro lado. Ou seja, o falar de família ou de educação dos filhos sem conhecimento em causa própria.
Isso é outra questão. Nas igrejas de maior tradição, mais antigas, está ainda tudo demasiado concentrado no padre. Isso não é necessário nem é bom. O padre não tem de saber tudo nem ser tudo. Por exemplo, tem de presidir à gerência dos bens da comunidade, mas não tem de ser um economista. Na comunidade haverá certamente pessoas qualificadas para desempenhar essa função. Para tratar das questões da família, o padre pode fazer parte dessa dinâmica, mas tem na comunidade pais, mães, maridos e mulheres que podem tratar desses assuntos melhor do que ele. O mais importante é ter os vários ministérios e os diversos modos de ser cristão presentes onde se exercem responsabilidades. É isso que o Papa diz também em relação às mulheres. Dar importância às mulheres não é apenas uma questão de saber se podem ou não exercer o sacerdócio.
Mas também é?
Pode ser. Mas a questão principal passa por não concentrar todas as funções da Igreja na função de padre. Isso é importante nesta igreja sinodal, que caminha em conjunto com toda a riqueza que Deus lhe dá e com todos os seus carismas. Precisamos de uma igreja que respira com tudo e que exerce a caridade com todas as suas energias e faculdades.
Numa recente entrevista ao jornal online 7Margens disse que um dos problemas da igreja “é o machismo”. A igualdade entre homens e mulheres na Igreja Católica passa pelo acesso do sexo feminino à ordenação sacerdotal?
É uma questão que tem a ver com uma tradição constante na Igreja, que se reveste de uma densidade de discussão maior do que a questão de os padres casarem ou não. É um caminho que terá de ser feito dentro da Igreja e que vai levar o seu tempo.
Numa Europa secularizada, onde Portugal se integra, o que pode ser feito para a vivência da fé ser mais atractiva, nomeadamente para os jovens?
A presença dos jovens na Igreja no mundo em que vivemos tem problemas semelhantes aquilo que acontece em relação à participação dos jovens na sociedade. O desemprego é sempre mau, mas na Europa afecta particularmente os jovens. A abstenção eleitoral é grande em todas as faixas etárias, mas maior entre os jovens. Como sociedade devemos interrogar-nos por que é que isso acontece e a Igreja também tem de se questionar. Pergunto sempre nas comunidade por onde passo se querem ter a participação dos jovens e qual o papel que estes devem desempenhar. Estamos a começar a criar nas paróquias os conselhos de jovens, integrando alguns desses elementos no conselho paroquial.
Por que é que isso ainda não acontece?
Não se compreende. Na minha geração, os jovens assumiam responsabilidades muito cedo. A revolução de Abril foi feita por jovens, não por generais. Hoje, não lhes estamos a passar responsabilidades. Apesar disso, há coisas muito interessantes a acontecer por iniciativa de jovens ao nível das startup, das novas tecnologias ou da ciência. A sociedade e a igreja têm de ter uma atenção especial, uma discriminação positiva, para ajudar aquele que é pequeno a crescer. Não podemos ter os jovens num estado de infantilidade.
Antes, esteve como missionário em Moçambique, uma experiência “suprema” que lhe marcou a vida “a todos os níveis”.