Abre-se a porta do apartamento na Guimarota e o casal com origem no norte da Europa aparece sorridente para a viagem ao passado combinada com o JORNAL DE LEIRIA. Ele, alto e elegante como um príncipe, e ela, de olhar jovial, luminosa como as estrelas.
Durante anos, Alexander Sombart e Karin Heyninck dançaram ballet clássico ao mais alto nível em companhias profissionais de topo, numa carreira internacional como bailarinos principais que se prolongou até ao início da década de 90.
Desde Janeiro, moram em Leiria, vindos da Bélgica.
Apesar da idade, 64 anos, Alexander brilhou no palco do Teatro José Lúcio da Silva no último mês de Julho, numa participação especial como Dom Quixote no bailado com o mesmo nome, pela Companhia de Ballet Clássico de Leiria.
O que está para trás é inesperado. E impressionante. Ainda hoje, os arquivos online do New York Times e do Los Angeles Times continuam a disponibilizar a reportagem sobre o regresso da bailarina russa Natalia Makarova ao Teatro Kirov, em São Petersburgo, então Leninegrado, na primeira noite do mês de Fevereiro de 1989 – com Alexander Sombart como parceiro.
O retorno de Makarova a “casa”, ao actual Teatro Mariinski, 18 anos após abandonar a União Soviética, ocorreu meses antes da queda do muro de Berlim num clima de abertura liderado por Mikhail Gorbachev, que facilitou a concessão de vistos a artistas dissidentes ou emigrados.
“O meu melhor momento”, resume o antigo bailarino, natural de Estrasburgo, em França.
“Ele convidou de volta à Rússia todas as estrelas que tinham desertado, como Nureyev, Makarova, Baryshnikov. Convidou-os para dançarem nos seus teatros originais para uma, duas, três performances. Foi um grande momento na história da dança e eu fui o parceiro de Makarova”, explica. “Um ponto alto, alto, para mim, dançar em São Petersburgo, no Mariinski”.
No apartamento da Guimarota, onde também habita a cadela Milú, adoptada já em Portugal, há fotografias de Alexander com Makarova – conhecida como a primeira dama do ballet – e outras onde surge com a princesa Diana, a duquesa de York Sarah Ferguson e o antigo presidente da África do Sul Nelson Mandela, com quem privou quando já trabalhava numa empresa de telecomunicações responsável por financiar a construção de duas escolas.
O percurso que Alexander e Karin partilham, 44 anos de vida, começou em 1978 quando se conheceram no Royal Ballet of Flanders, em Antuérpia, de onde Karin é natural, na Bélgica.
Ambos chegaram a bailarinos principais, conviveram com os maiores talentos, acostumaram-se a salas históricas e grandes cidades.
“Em diferentes repertórios, nós ambos estivemos no topo”, comenta Alexander.
Viveram os melhores dias nos anos 80 e retiraram- se em 1991. “Trabalhámos com coreógrafos muito importantes: Ji?í Kylián, William Forsythe, Ohad Naharin”, recorda Karin. E também Hans van Manen, Maurice Béjart, Jeanne Brabants, John Cranko, entre outros.
Ele dançou todos os clássicos – Giselle, O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes, Onegin – e além de Makarova, acompanhou Lynn Seymour e Karen Kain. Integrou o Royal Ballet of Flanders, o Nederlands Dans Theatre e o English National Ballet, companhias por onde Karin Heyninck também passou, embora, por vezes, em períodos diferentes, o que os forçou a manterem o relacionamento à distância, enquanto viajavam pelo mundo.
Quantos países? É mais fácil nomear os que não visitaram. Entre eles, por algum motivo, Portugal.
“Dançámos em todo o lado”. Numa temporada, 150 a 200 apresentações, em média, com muita estrada pelo meio. “Com o Royal Ballet of Flanders fizemos três meses na América, num autocarro, uma centena de cidades”.
Ainda têm notícias de jornais da época, sobre o tour de 1978 através dos Estados Unidos, publicadas no Miami Herald, no Indianapolis Star, no Saginaw News, no San Jose Mercury, no Ocala Star-Banner e noutros títulos.
“Tinha saído o Saturday Night Fever com o John Travolta e nós conduzíamos um Cadillac à saída do cinema. Era excitante”, recorda Karin. “Estar no mundo da dança é como estar num casulo”, completa Alexander. “As pessoas tomam conta de nós, organizam as viagens, só temos de ensaiar e actuar. E dar o nosso melhor, isso é certo”.
A rotina que lhes permite apreciar o nascer do Sol sobre Leiria ou passear na costa atlântica portuguesa é interrompida temporariamente para uma conversa em que só constam boas memórias.
“Éramos jovens, entusiásticos, energéticos, podíamos dormir duas ou três horas por noite e depois dormir no autocarro”. Cúmplices nos bastidores e, frequentemente, também no palco. “Dançámos muito juntos”.
Os recortes de imprensa incluem apreciações de espectáculos com Alexander Sombart assinadas por Clement Crisp no Finantial Times (durante anos considerado o mais conhecido crítico de dança do mundo) e Jann Parry no The Observer, e um texto de Luisa Moffet sobre a interpretação de Alexander e Karin para o pas de deux After Eden, do coreógrafo John Butler: “Formam um casal surpreendentemente bonito. Ele é alto, musculado e flexível, enquanto ela tem pernas longas, pontas de aço e braços encantadores. Posso estar sozinha em considerar John Butler um coreógrafo altamente sobrevalorizado, e nunca quis saber do seu After Eden, mas agora que vi Sombart e Heyninck dançá-lo, estou preparada para mudar de opinião”.
No topo do mundo? Sim, na maior parte do tempo.
“No topo do mundo significa acima da floresta, onde o sol brilha. E conhecem-se as pessoas que estão lá: realeza, grandes empresários, escritores”, sinaliza Alexander. Os nomes incluem “toda a gente no mundo do ballet” e alguns outros, provavelmente mais famosos ainda, de áreas como a música.
“Ele teve uma empresa de agenciamento quando deixou de dançar e aí também conheceu muita gente”, conta Karin ao JORNAL DE LEIRIA. “Organizei grandes eventos e num desses eventos tivemos os Pink Floyd”.
Nas fotografias que trouxeram para Portugal e têm expostas no escritório, está a rainha Fabiola da Bélgica, e noutra, Karin com a rainha Beatriz da Holanda. No círculo íntimo, Alexander coloca o bailarino e coreógrafo russo Rudolf Nureyev, um dos mais celebrados no século XX. “Eu era um amigo próximo dele”.
Do passado vem a amizade com Maina Gielgud, que reencontraram, por acaso, em Leiria. A antiga directora artística do Australian Ballet e do Royal Danish Ballet tem colaborado com o Conservatório Internacional de Ballet e Dança Annarella Sanchez e coreografou o bailado Dom Quixote apresentado pela Companhia de Ballet Clássico de Leiria, no Teatro José Lúcio da Silva, no último mês de Julho. Convenceu Alexander Sombart a aceitar a participação especial como Dom Quixote, enquanto Margarita Fernandes e António Casalinho (agora solistas do Bayerisches Staatsballett, em Munique, na Alemanha, originários de Leiria) asseguraram, como artistas convidados, os papéis principais, Kitri e Basílio.
“São excelentes”, elogia Alexander. “António, eu raramente vi um bailarino como ele na minha vida, e vi muitos bailarinos. Ela é excelente também, é de nível de topo”. António Casalinho tem “tudo” e “a todos os níveis”, conclui. “Fisicamente, está muito bem treinado. Ele é excepcional. As proporções dele são excelentes e quando vai a palco não sabemos qual é o tamanho dele, parece perfeito”.
Karin acrescenta: “Perguntei-lhe: tens medo do palco? E ele dissenos: não, não tenho, porque penso sempre que posso ser melhor. É maravilhoso”.
Alexander e Karin já orientaram, entretanto, e esporadicamente, aulas no conservatório de Annarella Sanchez em Leiria – “muito boa escola” – e receberam a especialista cubana para jantar, com António Casalinho e Margarita Fernandes. “Tornámo-nos amigos”.
A noite em que ele decidiu tornar-se bailarino remonta à infância em França, mas continua bem fresca.
“Conheci um bailarino famoso do ballet russo Diaghilev, chamado Serge Lifar. Ele veio à nossa casa em Estrasburgo, visitar os meus pais, porque a minha mãe é metade georgiana e metade inglesa. E quando ouvi todas as histórias dele sobre o ballet russo fiquei muito impresionado. Eu tinha 11 anos de idade e disse “isso é algo para mim”. Fui atraído pelo glamour. Então comecei as aulas de ballet clássico. Como eu era rapaz, foi muito fácil ser aceite. Era o único rapaz na classe. Tive sempre sorte. Trabalhei sempre. Eu era alto, era forte, podia levantar as raparigas, portanto, era fácil para mim”.
Os serões com artes na casa dos Sombart em Estrasburgo eram frequentes. O pai, de ascendência alemã e romena, trabalhava no sector cultural do Conselho da Europa, e a mãe, ainda viva, tocava piano a um nível amador. Elizabeth Sombart, irmã gémea de Alexander, é pianista profissional e em 2018 tocou no Santuário de Fátima com o cantor Andrea Bocelli, dias depois de actuar no Teatro José Lúcio da Silva.
Karin e o marido dançaram profissionalmente pela última vez em 1991.
“É trabalho duro, mas quando somos apaixonados, não o sentimos”, diz Alexander, que antecipou o fim da carreira devido a uma doença que condiciona as articulações dos pés e das mãos. “Não sentimos que é um trabalho, sentimos que é um hobbie, porque temos prazer de o fazer, todo o tempo”.
Depois de se retirarem, Karin tornou-se professora, coreógrafa e dirigiu uma escola de dança. Alexander também deu aulas, mas rapidamente se mudou para o sector das tecnologias de informação, numa empresa responsável por redes de telecomunicações, onde se manteve até à reforma.
Quando decidiram viver no Sul da Europa, Portugal pareceu-lhes a melhor escolha. “Discutimos com amigos e alguns colegas meus disseram-nos que devíamos vir para Portugal: vida calma, feliz, pessoas simpáticas”.
Um colaborador da irmã de Alexander tinha o apartamento disponível na Guimarota – e acabaram por comprá-lo. Estão em Leiria, formalmente e em permanência, desde o início do ano.
“Adoramos”, resume Karin. Conhecem bem a Nazaré, Batalha, Alcobaça, Tomar, Óbidos, Lisboa. Vão a espectáculos, cozinham, Karin ocupa-se com trabalhos manuais. Elogiam os dias tranquilos, o sol, a afabilidade dos portugueses. E os vizinhos, que consideram os melhores do mundo.
“Vivemos no presente, não vivemos nas nossas memórias. Gostamos de aproveitar o tempo. E aqui somos muito felizes”.