O JORNAL DE LEIRIA conta-lhe a história de três gerações de três famílias, em que a importância atribuída aos estudos teve uma influência determinante na qualidade de vida.
Portugal, anos 40. As famílias mais pobres viviam da agricultura de subsistência e da criação de animais, e a principal preocupação era matar a fome aos filhos. A escolaridade obrigatória era a 3ª classe e o estudo não era valorizado, porque as crianças representavam mais braços para trabalhar no campo, ou para tomar conta dos irmãos.
Celeste Pedrosa, hoje com 78 anos, quebrou este ciclo, ao ser a única professora primária da sua geração, da aldeia da Bouça, Colmeias, em Leiria. “A minha mãe ia trabalhar para o campo e eu ia atrás do meu irmão mais velho para a escola, para brincar com as meninas”, conta Celeste.
Quando as aulas começavam, punha-se a espreitar à porta. Acabou por ser convidada a juntar-se à turma do 1º ano. Aos 6 anos, já sabia ler e escrever. O pai soube dos feitos da filha pela professora e acordaram dizer que tinha aprendido através do ensino doméstico, para poder realizar a prova final do 1º ano, à semelhança dos outros alunos. Aos 9 anos, Celeste já tinha concluído a 4ª classe, mas teve de deixar de estudar.
“Éramos três filhos e o meu irmão mais velho estava a tirar o 5º ano em L eiria, na única turma de todo o concelho, onde estudavam 35 alunos. Os meus pais pagavam 500 escudos por estar lá hospedado, o que era um balúrdio”, explica.
“Pôr os dois a estudar em Leiria era impossível, pois vivíamos da agricultura de subsistência.”
Consciente das dificuldades, disse aos pais que não queria estudar. Entretanto, o irmão mais velho concluiu os 6º e 7º anos, em Coimbra, e entrou na Academia Militar. O irmão mais novo também continuou a estudar.
Transportes impulsionam estudos
A oportunidade de Celeste voltar à escola surgiu quando tinha 17 anos. “Disseram aos meus pais que podia estudar como adulta, desde que estivesse empregada, e que só tinha de pagar a quota do sindicato para ter o estatuto de estudante-trabalhadora”, recorda. Após uma paragem de nove anos, concluiu os 5º, 6º, 7º, 8º e 9º anos em três anos, e c andidatou-se a exame para tirar o curso do Magistério Primário. Para tal, foi determinante terem passado a existir transportes públicos entre Colmeias e Leiria.
“A partir daí, muita gente começou a estudar.” “A minha mãe é que moveu tudo. Sabia que estudando ia ter uma vida melhor”, afirma Celeste.
Contudo, o salário era tudo menos atractivo. Ganhava 1700 escudos, mas pagava mil escudos pelo passe do autocarro, para ir dar aulas. Para evitar essa despesa, era comum as professoras primárias morarem nas aldeias onde davam aulas. “Nos primeiros anos, houve uma certa desconsideração, porque ganhávamos menos do que um pedreiro”, observa.
“Mas com os estudos ficávamos com outra abertura para o mundo.” A diferença entre a qualidade de vida de Celeste e dos amigos, familiares e vizinhos da Bouça, onde passa grande parte do tempo a cultivar a terra e a tratar dos animais, é notória. “Hoje, muitas vezes, olho para as pessoas da minha idade e vejo para o que estava guardada se não tivesse estudado. Custa ver que não têm o suficiente para se sustentarem”, lamenta.
“Alguma vez na vida pensei que ia ter tudo o que tenho? Casa, dois carros, electrodomésticos, dar carro aos meus três filhos e ajudá-los a comprarem casa? Nunca.”
Ginástica mental
João Antunes, 73 anos, também é o único do grupo de amigos de infância com curso superior. Na altura, vivia no Zambujal, perto de Loures. “Apenas uma minoria tirou a 4ª classe”, constata. João teve o privilégio de poder prosseguir os estudos e tirar o curso de Engenharia, ramo de Termodinâmic a, no Instituto Superior Técnico. Filho único, João conta que a mãe era analfabeta e doméstica e que o pai tirou o 5º ano enquanto trabalhava.
“Era muito competente e determinado e eu queria seguir as pisadas dele”, afirma. O cumprimento do serviço militar obrigatório na Força Aérea, aos 19 anos, também o despertou para a vontade de interpretar certos fenómenos, sobre os quais não tinha conhecimentos, como o atrito. “Estudar foi uma necessidade que se criou em mim”, explica.
Tirar um curso foi, assim, um “processo pacífico”. Na época, não era comum haver mulheres a estudar no ensino superior, pelo que nunca esqueceu o nome da única aluna a frequentar o Técnico: Manuela. “O curso teve um impacto total na minha vida. Casei aos 21 anos e a minha mulher deixou de trabalhar, porque eu sustentava a casa”, assegura João, pai de dois filhos.
“Passado pouco tempo, comprei uma vivenda, com empréstimo ao banco, mas a casa de Leiria já a paguei a pronto”, acrescenta. “Aquilo que ganhei ao longo da vida não tem comparação com o que os meus amigos ganharam.”
[LER_MAIS]Reconhece ainda que ter o título académico de “engenheiro” se reflecte na deferência com que é tratado. Sem posses, sem sonhos Proveniente de uma família pobre de Picassinos, na Marinha Grande, António Duarte, 79 anos, conta que chegou a ir descalço para a escola, onde estudou até à 4ª classe.
“O meu prémio por ter passado no exame foi regressar da Marinha Grande de bicicleta”, recorda. “O meu pai veio a pé.” Apesar de confessar que gostava de ter continuado a estudar, esse era um cenário que não se colocava na época.
“Como não havia posses, não havia sonhos”, afirma, resignado. Aos 12 anos, António começou a trabalhar, no sector do vidro. Um ano antes, tinha perdido a mãe e, cinco anos depois, morreu o pai. A casa dos progenitores foi dividida pelos três irmãos e ficou a morar com uma das irmãs. Aos 20 anos, casou-se. “A minha irmã e o meu cunhado diziam que eu comia muito”, explica. Apesar dos dissabores que foi tendo, conseguiu escapar à guerra colonial.
Ao longo da sua vida profissional, António trabalhou em empresas de vidros, plásticos e moldes. Os parcos rendimentos que foi auferindo permitiram-lhe ampliar a parte da casa que herdara dos pais, para poder constituir família, ter um terreno de cultivo e comprar uma bicicleta. Aos 23 anos, tirou a carta de condução, por conveniência da empresa onde trabalhava. “Com grande sacrifício, amealhei para comprar um carrito, em segunda mão. Nunca tive um carro novo na vida.”
Um esforço que permitiu começarem a passar férias em casa dos sogros, em Oliveira de Azeméis. “Para se ter alguma coisa na vida, tinha de se fazer muitas horas e praticamente não se via a família”, assegura António. “Começava a trabalhar às 6 horas e ia até às 8 ou às 9 da noite”, garante. “Uma vez, estive 72 horas sem dormir e, agora, estou a pagá-las”, lamenta. Ainda se aventurou a constituir uma sociedade com outros operários. “Correu bem, até me queixar das pernas, porque não aguentava com dores”, conta. “Disseramme: ou compras ou vendes a tua quota.”
Vendeu e, depois de ter sido operado a uma das pernas, passou a fazer apenas biscates. Tinha 57 anos. Ainda hoje continua à espera de ser operado à outra.
Euforia e rebeldia
Ao contrário do pai, Paula Duarte, 57 anos, tinha um sonho: fazer o Magistério Primário, para ser professora. “Era boa aluna. Nunca fui a exame, pois dispensava-se com 14”, explica. Contudo, diz ter sido “vítima” do 25 de Abril de 1974.
“A seguir à ditadura veio a democracia, para a qual não estávamos preparados. A euforia foi tal que não havia professores e os alunos faltavam às aulas. Antes era tudo muito certinho e, depois, foram tempos de rebeldia”, recorda. Após concluir o 9º ano, Paula foi trabalhar para uma empresa de moldes, durante as férias, mas acabou por ficar lá 13 anos. “A escola foi ficando para trás.”
Ter autonomia financeira e ser reconhecida pelo trabalho que desempenhava foram determinantes para tal, pelo que só saiu quando a gerência mudou. “Tive várias propostas para continuar nos moldes, mas ponderei bem, porque queria acompanhar os meus filhos.”
Em finais de 1992, surgiu a oportunidade de trabalhar na Escola Secundária Pinhal do Rei, onde está desde então. “Apaixonei-me pelos garotos.”
O regresso à escola abriu-lhe os horizontes. Trabalhou na parte administrativa e, depois, na biblioteca, num período em que surgiram as novas tecnologias, pelo que teve a oportunidade de frequentar formação da Porbase. Depois, fez um Curso de Especialização Tecnológica, de dois anos, em Documentação e Informação, no Instituto Politécnico de Leiria. “Ainda equacionei tirar uma licenciatura, mas depois comecei a pensar nos meus filhos, porque queria que eles tivessem formação superior.” E abandonou a ideia.
“Só na escola é que me apercebi da diferença salarial e de qualidade de vida dos meus colegas que tinham estudado”, confessa Paula. “Se tivesse continuado a trabalhar nos moldes, não tinha conseguido passar a mensagem aos meus filhos da importância de ter formação superior”, diz. “A maior parte das pessoas da minha idade nem se apercebe. Como muitos pais respondem: nem todos podem ser ‘doutores’.”
Paula garante que na Marinha Grande a escola não é encarada como em Leiria, porque não há falta de trabalho. “Sinto isso na minha escola. Os miúdos não querem lá andar, mas sim trabalhar.” Aprender a aprender “Em minha casa, nunca se pôs a hipótese de não tirarmos um curso superior”, assegura Rosa Pedrosa, 52 anos, a mais velha dos três filhos de Celeste.
“A minha geração foi de mudança. Estudar era uma condição básica, mas não suficiente, como na geração da minha mãe”, afirma. “Em 1985, com a entrada na CEE, constatámos que havia um mundo diferente e que existiam outras soluções. Os cursos deixaram de ser orientados para uma função e passaram a ser orientados para aprender a aprender.”
Licenciada em Economia pela Universidade Nova de Lisboa, Rosa diz que tanto o curso que tirou como o dos irmãos – Pedro é licenciado em Engenharia Informática e mestre em Ordenamento do Território e Tiago é licenciado em Engenharia do Ambiente – lhes serviu para abrir horizontes. “Vemos o mundo numa perspectiva diferente.”
Apesar de a maior parte dos seus amigos ser licenciado, Rosa diz que apenas cinco colegas do 12º ano prosseguiram estudos, devido ao esforço financeiro e a barreiras culturais. “Mais do que se escolher o curso, escolhiase a cidade: Coimbra por ser mais perto”, acrescenta. “A minha geração foi muito marcada por fazer tudo certinho, com o objectivo muito claro de ser independente e ter uma família.”
“Sinto-me uma privilegiada, porque acabei o curso, em 1989, e arranjei logo emprego”, garante Rosa. “O João [filho mais velho] nasceu em Setembro e era suposto começar a trabalhar em Outubro, mas disse que só ia em Fevereiro e esperaram por mim, porque havia poucos licenciados na altura. Todos os que tinham curso superior tinham trabalho garantido”, justifica. “No contexto actual, isso era impensável.”
Rosa destaca ainda as diferenças salariais. “Comecei a trabalhar no Banco Português do Atlântico e fui ganhar três vezes mais do que pessoas com o 11º ano”, revela. A progressão na carreira também era mais rápida. “Entrei na banca em 1990 e em 1996 era gerente de uma agência. O meu pai entrou em 1963 e chegou a gerente em 1985. Demorou 22 anos a fazer aquilo que eu fiz em seis. A licenciatura foi determinante.”
Directora de Serviços de Apoio ao Negócio na ínCentea, em Leiria, Rosa ainda frequentou a parte lectiva de um mestrado, mas quando estava a preparar a tese percebeu que tinha um interesse meramente académico, pois não tinha ligação à realidade, e ficou-se pela pós-graduação.
“Há pessoas que tiram uma licenciatura e cristalizam e há outras que continuam com abertura para uma aprendizagem permanente, pelo que vão ter mais facilidade para ultrapassarem os desafios dos tempos actuais.”
Gravidez interrompe curso
Cecília Antunes, 48 anos, estava a tirar o curso de Gestão de Recursos Humanos na Escola Superior de Educação quando engravidou da filha mais velha, Raquel, hoje com 23 anos, pelo que ficou com um ano por fazer. Começou a trabalhar como administrativa na área dos seguros, e não concluiu o bacharelato.
“Queria começar a trabalhar para sair de casa”, explica. “Se tivesse terminado o curso, teria tido outras oportunidades, porque ficamos com ferramentas completamente diferentes”, assume Cecília.
Afastada essa possibilidade, optou por se dedicar aos dois filhos, o mais novo com 5 anos, e continua à procura de emprego. A ultimar a tese de mestrado sobre redes sociais e o crescimento do fanatismo no Brasil, a filha Raquel licenciou-se em Relações Internacionais e está prestes a ser mestre.
“Queria ir para a faculdade para ser independente financeiramente, mas como sempre tive jeito para tudo, decidi escolher um curso que mistura muitas áreas”, justifica Raquel. “Sabia que não tinha muita empregabilidade em Portugal, mas tinha cadeiras tão diferentes que nunca me senti entediada. Posso definir o meu percurso depois”, acredita. Destaca ainda o facto de o curso ter mestrado integrado, frequentado em Coimbra e em Bordéus.
“Foi uma oportunidade formidável, porque fiquei com uma licenciatura e um duplo mestrado: em Comunicação Pública e Política, pela universidade de Bordéus, e em Relações Internacionais, pela universidade de Coimbra.”
Além de ter ficado fluente a Francês, Raquel ficou a conhecer melhor a cultura do país, o que já lhe “abriu portas”. Desde então, esteve um ano na Missão Permanente de Portugal junto da Unesco, em Paris, a dar apoio diplomático ao embaixador António Sampaio da Nóvoa.
“A oportunidade de estudar e de fazer este percurso preparou-me para a mudança e para a adaptação.” Apesar de não pôr de parte a possibilidade de tirar um doutoramento, nesta fase, Raquel quer concorrer à carreira diplomática. “Há a possibilidade de fazer comunicação em organizações internacionais. É difícil lá chegar”, admite, mas acredita ser possível. Quanto aos colegas, diz que a maioria está a terminar os mestrados.
“Há pouquíssimos em empresas ou na banca, mas estão a fazer outras coisas”, diz. “Hoje, um mestrado é uma nova licenciatura. Fiz a aposta em França para me diferenciar.”
Millennial revoltada
Ana Poças, 27 anos, acabou a tese de mestrado, em 2017, com 19 valores. Licenciada em Biologia Marinha, sabia que para ter emprego tinha de tirar um mestrado. Escolheu Ecologia Marinha, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e fez o trabalho de campo em Curaçau, nas Caraíbas, onde passava várias horas por dia no mar, e a análise laboratorial em Estocolmo. A bolsa que recebeu permitiu-lhe apenas pagar metade do alojamento na Suécia.
Depois dessa experiência, Ana trabalhou nas ilhas virgens americanas de St. Thomas e St. John, enquanto estava a escrever a tese, e atualmente é guia de observação de cetáceos em Sagres. Um trabalho de que “gosta muito”, mas que só pôde aceitar porque tem casa de família no Algarve e não tem de pagar renda.
“Quando tento sair da minha bolha, penso que o meu trabalho é ir para o mar ver golfinhos e baleias. Como é que posso não estar satisfeita com isso?”, questiona. “Decidi não pôr essa pressão sobre mim. Não sei se vou continuar satisfeita mais cinco, dez anos, ou a vida toda. Logo vejo”, observa Ana. “Houve uma grande mudança nestas gerações. Tive algumas dificuldades, e às vezes ainda tenho, quando tudo está em aberto e tenho tantas opções”, justifica. “Sei que pareço uma Millennial [geração nascida entre 1980 e 1995, conhecida como geração da internet] revoltada, mas estou sempre insatisfeita”, assume.
Rosa compreende a indignação da filha. “Quem entra no mercado de trabalho com uma licenciatura, quase à excepção da área informática, ganha 750 euros por mês”, afirma. “Por isso é que não sai de casa dos pais”, acrescenta. “Tenho duas colegas de escola que não tiraram curso superior e que se calhar não estão pior na vida. Uma trabalha na Zara e a outra vende Herbalife”, confirma Ana.
Patrícia Mendes, 25 anos, começou esta semana um estágio de um ano no Centro Hospitalar de Leiria, como interna. Licenciada em Medicina pela Universidade Nova de Lisboa, conseguiu tirar o curso dos seus sonhos, graças ao estatuto de atleta de alto rendimento, por ser jogadora da Selecção Nacional de Andebol.
Filha de Paula Duarte, sempre foi boa aluna e sempre teve bolsa de estudos. “Coimbra era mais perto, mas como tinha o meu irmão a estudar em Lisboa, concorri para lá, para reduzir os gastos”, justifica Patrícia.
Nos últimos três anos, tem trabalhado como monitora em colónias de férias, no Verão, para “juntar algum dinheirinho”. Indecisa entre Medicina Geral e Familiar ou Pediatria, Patrícia não tem, contudo, dúvidas em relação ao que quer fazer no futuro. “Quero ter a minha casa e a minha família, viajar, conhecer novas culturas e fazer voluntariado num país desfavorecido.”