Um ano de ULS, o que é que está a falhar?
Há coisas que já deviam ter acontecido e ainda não aconteceram. Na minha visão, partilhada também com a directora clínica dos cuidados de saúde hospitalares, Catarina Faria, já queríamos estar com uma maior integração. Tivemos a primeira reunião da comissão de integração dos cuidados, que integra elementos hospitalares e elementos dos cuidados de saúde primários, apenas hoje [10/12/2024], porque só agora o regulamento interno está finalizado.
Essa comissão já estava prevista?
É normal haver nas ULS comissões de integração de cuidados. Nesta reunião falámos de coisas muito importantes, como o facto de ainda termos uma completa separação entre os sistemas de informação hospitalar e dos cuidados de saúde primários. Falámos da necessidade de criar números de extensão directa para os vários serviços e unidades dos centros de saúde para a comunicação ser fácil. Outra dificuldade que é uma fonte de insatisfação dos colegas é a questão dos médicos hospitalares não conseguirem prescrever exames nos convencionados. Tem de dizer ao utente para pedir os exames ao seu médico de família e estão dois médicos a fazer a mesma prescrição e o pobre do utente tem de andar de um lado para o outro.
É a tutela que impede essa prescrição?
Está relacionado com o sistema informático e os acordos feitos com os convencionados. Já desde Janeiro que eu e a Catarina Faria temos tentado resolver esta situação, porque os colegas de MGF [medicina geral e familiar] sentem que estão a ser secretários. Estamos a explorar a hipótese de uma plataforma que vai permitir fazer isso. Outras dificuldades têm a ver também com as diferentes classificações das doenças. Nos cuidados de saúde primários usamos a classificação internacional e o hospital usa a CID 10, o que dificulta a comunicação. Para melhorar a nossa comunicação interinstitucional queremos que haja consultoria das especialidades que os médicos de família sentem mais necessidade e que têm mais dúvidas. Isso até evita muita referenciação à consulta externa.
Por que é que passado um ano ainda não se implementou nada disso?
Dificuldades, outras prioridades… Queremos fazer a consultoria em várias especialidades. O mais realista é ser assíncrono. O médico manda a sua dúvida e o colega da especialidade hospitalar tem tempo protegido para responder a esses e-mails. Evita-se enviar o doente para uma consulta, com todo o tempo de espera existente. Também temos de melhorar os protocolos de referenciação para as consultas e trabalhar em multidisciplinaridade. Já se podia ter feito muita coisa, mas houve sempre outras prioridades e centrámo-nos muito na urgência. Espero que essa integração arranque com força em 2025. Há queixas de falta de material e de medicamentos nos cuidados de saúde primários. Isso tem a ver com o serviço farmacêutico e de aprovisionamento, que não são meus pelouros. Aliás, sou órfã de pelouros. Estamos em Dezembro e ainda não tenho nenhuma competência delegada.
E Catarina Faria?
Tem, porque herdou os pelouros que já vinham do director clínico do Centro Hospitalar de Leiria e o enfermeiro Marco igual. Eu sou a única figura no conselho de administração que é novidade. Portanto, vou sendo chata para as coisas funcionarem. Faltam psicólogos, terapeutas da fala, nutricionistas nos cuidados de saúde primários… Estamos muito limitados pela questão orçamental. Mas ULS têm orçamento próprio. Sim, mas a contratação de novo pessoal só pode aumentar 5%. Por exemplo, se preciso de mais 20% vou estar sempre condicionada. Isto tem a ver com o plano de desenvolvimento orçamental e organizacional.
Da ULS ou da tutela?
Da tutela. Para 2025 também só podemos aumentar o pessoal em 5%. Para as nossas necessidades é muito pouco. Por isso, às vezes questiono, como é que vou conseguir dar a resposta que gostaria à população, se depois não tenho recursos.
Com 100 mil utentes sem médico de família, qual é a estratégia para atrair mais profissionais?
Temos profissionais excepcionais nesta ULS, mas temos de melhorar a nossa cultura organizacional e a nossa política de recursos humanos. Os serviços de apoio têm de funcionar melhor, assim como o aprovisionamento que tem estado a falhar. Hoje em dia, os colegas têm grupos nas redes sociais, onde divulgam tabelas dinâmicas a compararem os serviços das várias ULS e a nossa está mal cotada. Estamos a falar de internos para escolherem a especialidade ou de recém-especialistas para escolherem o local onde vão trabalhar. E dizem ‘não vás para ali, porque o serviço é assim…’ Tem de haver uma reviravolta na ULS, olharmos mais para os nossos profissionais. Falando da parte psicológica. Temos uma falha brutal de apoio psicológico estruturado para os profissionais. Este ano foi duríssimo. Tivemos muitas perdas, colegas que faleceram, o serviço de pediatria foi dos mais afectados. Recentemente, a dra Amália Pereira, uma perda enorme para esta casa e o dr. Borrego Pires, que também foi um médico muito importante a nível dos cuidados de saúde primários. Temos de cultivar uma maior proximidade entre os profissionais e tratarmo-nos melhor. Perceber que todos trabalhamos muito e valorizarmo-nos uns aos outros. Falta termos uma organização mais humanista. Temos uma comissão de humanização que trabalha que se farta, muitas vezes fora do seu horário e pro bono, o que não devia ser porque a humanização é fundamental para estarmos felizes. Quanto mais felizes estiverem os profissionais melhor cuidam dos doentes. Temos assistido a um êxodo de profissionais desta casa. Se calhar, não há uma semana em que não haja uma rescisão e nos vários grupos profissionais. Temos de reflectir por que é que se estão a ir embora.
Se a parte organizacional melhorar, será possível fixar profissionais de saúde?
Não só, mas também terem oportunidades profissionais para estarem em projectos mais aliciantes, irem para unidades que possam evoluir para CRI [Centros de Responsabilidade Integrados] e para USF [Unidade de Saúde Familiar], de preferência a ganharem os incentivos e os suplementos. Também temos de ser mais flexíveis. Hoje em dia nem todos se encaixam no mesmo modelo do horário semanal de 35 ou 40 horas. Em vez de ter um médico a 40 horas, poderia ter dois a 20 e partilharem um ficheiro ou cada um ter meio ficheiro. Temos de nos adaptar, porque hoje as pessoas procuram estar a tempo parcial. Tem de haver essa flexibilidade, que também tem a ver com a parte humanista, de compreendermos que as pessoas têm mais vida além do trabalho. E temos de acarinhar os interesses particulares. Quem gosta da investigação, de cessação tabágica ou da medicina desportiva, por exemplo, dar-lhes oportunidade para fazerem projectos. Estamos numa zona geográfica espectacular, com excelentes acessos, praia, campo, serra, oferta cultural muito rica, portanto temos de mudar e de ter maior autonomia para poder, falando de médicos, contratar um colega de MGF que queira vir trabalhar para cá.
O que dificulta?
A nível da ULS há os trâmites a nível do serviço de gestão de recursos humanos, que carece de uma maior organização e de mais recursos humanos, e o processo burocrático é complexo, mas o presidente do conselho de administração[Licínio de Carvalho] tem estado sempre dependente de autorização do director executivo do SNS (Serviço Nacional de Saúde). A resposta nem sempre chega em tempo útil da vontade e disponibilidade do colega que se tinha oferecido para vir e já aconteceu perder alguns. Para vingarmos temos de estar a par com a privada, onde é possível contratar de forma mais ágil.
Concorda com a criação das USF modelo C (social e privado)?
Não, aqui na região de Leiria, porque tenho estado a lutar para fazer funcionar aquilo que tenho e esse modelo pode ser uma ameaça a esse trabalho.
Não será uma solução para os utentes sem médico de família?
Tenho muitas dúvidas. Se tivesse os médicos que necessito não seriam precisas essas USF-C. Quero valorizar os nossos profissionais, pagar-lhes justamente, mantê-los motivados e connosco. Assim, estamos a desviar recursos para outro modelo. É a minha opinião muito pessoal.
A aposta da prevenção poupa vidas e dinheiro, mas a falta de acesso aos cuidados de saúde impede alguns rastreios atempados. Como é que se inverte esta situação?
Com mais médicos de família. Os 100 mil que estão sem médico de família estão em situação de desigualdade para com os outros que têm uma equipa de saúde familiar. Felizmente, nos cuidados de saúde primários não temos falta de enfermeiros e esses 100 mil têm enfermeiro de família. A população tem de valorizar mais o seu enfermeiro de família, porque eles têm sido uma mais-valia nos locais onde não há médico de família, nomeadamente nesta área dos rastreios. O rastreio do cancro colon-rectal pode e deve ser feito pelos enfermeiros de família. Por outro lado, temos tido alguma dificuldade na resposta hospitalar aos rastreios positivos. Na parte da gastroenterelogia e da ginecologia a situação já está regularizada. Na oftalmologia temos dois rastreios importantes – retinopatia diabética e saúde visual infantil – e não tem havido a resposta aos casos identificados como positivos. Estamos aquém do desejável. Como é que ultrapassamos isto? Temos de conversar com os colegas a nível dos cuidados de saúde primários. Tenho falado com internos da especialidade de MGF, que são fabulosos e se têm disponibilizado para fazerem em horário extraordinário consultas de planeamento familiar para realizarem as citologias. Mas ainda assim é pouco. A disponibilidade não chega para a necessidade que existe.
Como é que avalia a qualidade do atendimento dos cuidados de saúde primários?
Uma coisa muito importante e que nos esquecemos é do papel dos secretários clínicos, que são o cartão de visita das unidades e têm sido muito negligenciados. Temos de os capacitar e de lhes dar mais formação e valorização. Mas a avaliação dos utentes a eles é positiva. Temos de aumentar a literacia em saúde e os utentes serem mais bem educados e menos rudes, porque comportamento gera comportamento.
Qual é o plano nos cuidados de saúde primários para responder ao aumento da procura que se verifica no Inverno?
Temos uma equipa local de resposta sazonal e um plano que fizemos especificamente para o Inverno, mas a ideia é ter depois também para o calor. Este plano vai monitorizando a procura e se ela crescer acima de determinado nível, vamos aumentando o nível de contingência. A resposta é ter algumas vagas para doença aguda suficientes para a procura que for surgindo. Está previsto no nosso plano o alargamento de horário e abertura aos fins-de-semana.
A comissão de utentes acusa a ULS de querer encerrar o SAP da Marinha Grande. Qual o ponto da situação?
O SAP da Marinha Grande não é um serviço de atendimento permanente. Noutros tempos estava aberto 24/24 horas, sete dias por semana. Hoje em dia, temos lá um prestador de serviços que vai três noites por semana. E ao fim-de-semana, das 20 horas da sexta-feira até às 20 horas de domingo, temos em contínuo profissionais da própria ULS. Isto não é um serviço de atendimento permanente. O que temos verificado é que a procura do [programa] Ligue Antes, Salve Vidas, a procura da meia-noite às 8 da manhã era em média de 1,6 utentes. Ou seja, estão cinco profissionais para ver 1,6 utentes. Temos de ir vendo a actividade clínica para irmos ajustando. Se houver procura suficiente, estamos abertos a manter o SAP como a comissão de utentes deseja.
Quais os principais desafios para os cuidados de saúde primários?
O meu maior desafio é manter quem cá está, garantir que estão satisfeitos e querem continuar por cá, incentivar e apoiar as equipa que ainda não o são a evoluir para o modelo organizacional de USF e cativar médicos de MGF. É também um desafio melhorar o nosso internato de MGF, que tem de ser mais robusto e mais atractivo para os internos quererem vir fazer cá a especialidade, porque estão cá durante, pelo menos, quatro anos, e será mais fácil estabilizarem e quererem ficar por cá. O meu desafio é dar um bom internato, uma boa formação, boas condições de trabalho e ser suficientemente aliciante para quem cá está não fugir e atrair outros a virem.