Chegam introvertidos, muitas vezes revoltados e sem a mínima vontade de estreitar relações com o País que os acolhe. Mas, para muitas crianças e jovens ucranianos, recuperar a alegria e a fé no futuro tem sido possível graças aos inúmeros clubes, associações e academias, que lhes têm permitido retomar treinos de futebol, desafios de xadrez, aulas de música ou de dança. A integração pode afinal ser leve como uma pirueta e rápida como um golo certeiro.
A liberdade que chega atrás do xadrez
Damian Korniienko, de 8 anos, deixou a cidade de Okhtyrka para trás para encontrar a paz num hostel da Batalha, onde está instalado com a mãe, as avós e a irmã. Mas não foi apenas o cenário de guerra que ficou na Ucrânia. Foram também as memórias dos bons dias passados com os amigos a jogar xadrez.
Com a chegada a Portugal, Damian fechou-se no seu silêncio. Foi um médico, também [LER_MAIS]ele grande apaixonado pelo xadrez, que lhe falou na possibilidade de recomeçar as suas partidas no Clube Cultural e Desportivo Corvos do Lis, explica Duarte Basílio, presidente da instituição.
Os resultados foram evidentes e não se fizeram demorar. Cerca de duas semanas depois de ter conhecido os Corvos do Lis, Damian participou num torneio nacional, realizado em Pombal, onde ganhou o título de vice-campeão por equipas sub-12 em partidas rápidas, congratula-se o presidente.
O rapaz não fez apenas um bom torneio. Apresenta características de quem poderá construir um futuro promissor na modalidade, realça Duarte Basílio.
Damian conta que começou a jogar xadrez aos 3 anos, ensinado pelo pai. Na Ucrânia, no último ano, jogava com frequência num clube. Quando chegou a Portugal, sentia-se aborrecido por não ter com quem praticar. Está por isso feliz com a integração nos Corvos do Lis, onde encontrou outras crianças para desafiar, e onde tenciona ficar. Quanto à sua abertura preferida de xadrez, partilha Damian, é a italiana.
Duarte Basílio foi um dos muitos dirigentes associativos que se disponibilizaram junto da Câmara de Leiria para receber gratuitamente crianças e jovens refugiados nas suas actividades. No caso dos Corvos do Lis, além deste contacto institucional, foi lançado um convite directo aos refugiados instalados no estádio municipal. Como a sala do clube fica ali ao lado, Duarte Basílio está convicto de que, depois de Damian, outros meninos se vão atrever a entrar para jogar.
Com a bola treina-se Português. E futebol também
A guerra forçou Artem Hinchuk, de 9 anos, a trocar Zhitomir pelas Caldas da Rainha. Por cá, Isabel Mateus, que o acolheu em sua casa, bem como a mãe e o irmão, tratou de saber antecipadamente quais os gostos e as rotinas de cada hóspede, na tentativa de lhes suavizar a transição. Por isso, logo à chegada, o pequeno Artem já tinha à sua espera uma bola de futebol.
Mas a bola, por si só, não estava a ajudar o suficiente, conta Isabel. Na cabeça do rapaz, a guerra terminaria em breve e rapidamente estaria de volta à Ucrânia. Tão rapidamente que nem era preciso aprender outra língua. Foi para construir pontes com a comunidade e para levar Artem a aprender Português, que Isabel decidiu apurar qual seria a possibilidade de o menino passar a praticar futebol no Caldas Sport Clube.
A ideia foi desde logo acolhida e Isabel deixa hoje “um agradecimento gigante” à direcção do clube, extensível aos técnicos, membros da equipa e respectivos familiares, que devolveram alguma felicidade ao novo atleta.
Além de lhe terem cedido o equipamento, espalharam cartazes de expressões escritas em português e em ucraniano, para o incentivar a aprender uma nova língua. E no passado domingo, a equipa de Benjamins acompanhou os crescidos até ao campo, para que Artem pudesse pisar o relvado acompanhando o capitão de equipa.
O jovem atleta do Caldas confessou ao JORNAL DE LEIRIA que continua a preferir Messi ao Cristiano Ronaldo. Disse ainda que gostaria de ser jogador profissional, mas no seu país. No entanto, e brincadeiras à parte, Isabel defende que nos últimos dias foram dados sérios passos de integração. Nas bancadas, no passado fim-de-semana, a mãe de Artem voltou a sentir alegria e orgulho no filho.
Quanto ao menino, espera ansiosamente por cada dia de treino, sendo que muitas vezes já segue sozinho para o clube, acompanhado por outras crianças da equipa. Entretanto, aprendeu a pronunciar na perfeição Caldas Sport Clube e capitão Thomas Militão.
As aulas na escola estão também para breve, onde a presença de mais alunos ucranianos será benéfica, acredita Isabel Mateus.
Este está longe de ser o único clube de Caldas da Rainha a integrar, a título gracioso, crianças e jovens refugiadas da Ucrânia, salienta Vítor Marques, presidente do município. Será seguramente mais de uma dezena, sendo que nalguns casos realizam jogos com bilheteira a reverter a favor desta comunidade e, noutros, promovem desafios onde a entrega de bens essenciais é condição de entrada. “Lançámos o desafio e os clubes e associações disponibilizaram-se”, regozija-se o autarca.
O sonho do piano cruzou a Europa
Maria Havricheva, de 17 anos, é natural da cidade de Sumy, onde estudava música no Colégio de Artes D.S. Bortnyanskogo. Chegou recentemente a Alcobaça, onde foi acolhida pela amiga dos pais, Svetlana Portyana, também ela ucraniana, residente no concelho há vários anos e professora de piano na Academia de Música de Alcobaça.
Até agora, explica Svetlana, Maria tem tido a possibilidade de continuar a praticar piano, durante algumas horas, na própria casa da professora. “Ela adora música, estuda muitas horas, eu ajudo-a a escolher partituras, obras musicais, e ela escreve as suas canções também”, conta Svetlana. Contudo, e uma vez que “tem continuado a ter aulas online a partir da Ucrânia, precisa de ter um espaço adequado, até mesmo em termos de acústica, e por isso propus à Academia de Música de Alcobaça que cedesse uma sala para a Maria ter aulas de piano”, expõe Svetlana.
A resposta foi positiva e a aluna espera apenas saber de que forma poderá conciliar os horários da aula do instrumento com a disponibilidade de salas da Academia.
Maria está entusiasmada com a ideia, até porque o seu projecto de vida só se cumprirá com a música. “Nem vale a pena tentar matriculá-la na escola secundária, onde não existem cursos do género, se não é nada disso que ela quer, defende Svetlana. Até porque “Maria é uma menina especial, que tem tido problemas de saúde, de visão, de alguma descoordenação motora”. E se ela de alguma forma se libertou destes constrangimentos físicos é porque “é feliz na música”, prossegue a professora.
E se o cenário de guerra piorar, ao ponto de terminaram as aulas online, promovidas pela escola da Ucrânia, haverá mesmo necessidade de matricular Maria num curso de música em Portugal. Toda a família e amigos estão do seu lado para que não desista de um sonho que transportou consigo do outro lado da Europa.
Valeria, a bailarina, um exemplo de suave adaptação
Valeria Rybalko, de 14 anos, natural de Kharkiv, estudava numa escola de ballet na Ucrânia, onde se preparava para ser bailarina profissional. A guerra até lhe poderá ter trocado as voltas, mas não o foco. Afinal, a dança acompanha-a quase desde que se conhece. Tinha cerca de 4 anos quando começou a praticar, explica ao nosso jornal.
Empenhada, Valeria não se coíbe de fazer esforços para continuar a estudar ballet. Os seus pais, também refugiados da guerra, estão a morar em Aveiro, onde já estão empregados. Quanto a Valeria, foi acolhida no Conservatório Internacional de Ballet e Dança Annarella Sanchez, em Leiria, que lhe assegura os estudos. E é nesta cidade que está a residir, graças à ajuda de Nataliya Pobuta.
Nataliya, também ela ucraniana, radicada em Portugal há vários anos, é mãe de uma aluna de Annarella Sanchez, que foi recentemente contratada para trabalhar numa companhia profissional em África. Disponibilizar o quarto vago para receber uma jovem compatriota está a ser uma forma de ajudar a Ucrânia neste combate, realça Nataliya.
Valeria estuda na Escola Secundária Afonso Lopes Vieira e também no conservatório, pelo que só aos fins-de-semana tem a possibilidade de rever a família. Mas a experiência está a correr bem para todos. A professora Annarella Sanchez salienta que a adolescente “tem muito talento”, demonstrando ter sido também “muito bem trabalhada”.
Embora só fale Russo e um pouco de Inglês, está a ser muito acarinhada pelos colegas e não se sente diferente, até porque foi integrada numa instituição frequentada por muitos alunos estrangeiros, repara Annarella Sanchez, para quem a transicção está a ser “suave e sem dramas”. Aliás, no passado domingo, a jovem teve já a oportunidade de se apresentar publicamente no espectáculo Dança pela Paz, que decorreu no Teatro José Lúcio da Silva.
Quanto a Valeria, gosta especialmente de aprender nestas grandes salas de aula, com bastante luz. Gostaria de terminar os estudos neste conservatório, não descartando, contudo, a possibilidade de trabalhar como bailarina da Ucrânia.
Annarella Sanchez adianta que está a trabalhar no sentido de integrar mais jovens refugiados da Ucrânia, havendo possibilidade de acolher entre 20 a 30 alunos. Não é de todo a primeira vez que esta instituição de Leiria promove iniciativas do género. Deu início a bolsas para candidatos internacionais em 1998, envolvendo inicialmente sobretudo candidatos portugueses, sendo que, a partir de 2017 aumentou o número de jovens estrangeiros recebidos, desde brasileiros, italianos, romenos, espanhóis, sul-africanos, argentinos e uruguaios.
Nos últimos cinco anos, a Academia Desportiva do Colégio Conciliar de Maria Imaculada (ADCCMI), de Leiria, tem acolhido vários meninos refugiados, a quem, através da Academia Solidária, é dada a possibilidade de atenuar a experiência de guerra, através do futebol. Além de crianças portuguesas, carenciadas, foram já incluídos nesta iniciativa meninos vindos de Angola e do Uzbequistão, recorda o presidente, Renato Cruz.