Tudo começou numa conversa. É assim que começam todas as boas ideias.
Tinha passado pouco mais de uma semana desde o início de Março de 2020 e os fotojornalistas Miguel Lopes e Gonçalo Borges Dias debatiam os tempos complicados que se abatiam sobre o Mundo.
Fora de fronteiras, havia uma doença desconhecida que ameaçava precipitar o Mundo num cenário próprio da Idade Média ou, pelo menos, colocá-lo em suspenso. Sentiam que tinham de fazer alguma coisa.
Criaram um projecto documental fotográfico, que retrata Portugal durante o confinamento, provocado pela Covid-19 e que agora, seis meses após o desconfinamento, foi publicado em livro.
Naqueles primeiros dias de Março, a Covid-19 fazia vítimas em catadupa em Itália e, no ar, como se do prenúncio de uma tempestade se tratasse, havia a certeza que a pandemia galopava a caminho de Portugal. De Espanha, também não vinham bons ventos.
Foi neste cenário que Miguel e Gonçalo resolveram retratar os estranhos dias, o quotidiano das ruas, das conferências de imprensa do Governo e da Direcção-Geral da Saúde, as escolas e as empresas que fechavam.
Era um país que se recolhia e confinava para fintar a peste. Primeiro, criaram um grupo de Whatsapp onde desafiaram outros fotógrafos a partilhar as imagens do que se passava. Depois, avançaram para o Instagram.
Mas não era suficiente, dada a quantidade de participações de tantos profissionais da imagem. Acabaram por lançar mão ao modelo que já tinham usado, há anos, no projecto Um Estranho Por Dia e nasceu o EverydayCovid – diários fotográficos em estado de emergência.
As fotografias passaram a ser alvo de apreciação crítica, seleccionadas e publicadas online.
Com o fim do confinamento, em Junho, os mentores perceberam que tinham de ir mais longe e surgiu um livro com o mesmo nome do projecto, com o contributo de mais de 100 fotógrafos de todo o País, que será lançado no dia 16, no Palácio da Ajuda e numa sessão online.
É um volume onde a imagem ocupa 99% da área disponível e onde as fotografias falam, mostram-se e nos desafiam a interpretá-las.
As legendas que as acompanham respondem às perguntas quem, onde, quando, como e deixam o porquê para o leitor descobrir por si próprio.
Acessível a todos, há apontamentos em braille e áudio, de modo a facilitar um contacto com o trabalho aos invisuais ou pessoas com visão reduzida.
É um registo documental para o futuro, verdadeiro documento histórico, que Miguel A. Lopes, natural das Caldas da Rainha, crê ir contar a história deste estranho 2020, ou, pelo menos, de 80 dos seus 366 dias.
“Os meus filhos e os filhos de outras pessoas vão poder recordar o que se passou neste episódio das suas vidas, onde a vida que conheciam se suspendeu e recolheu em casa.”
Fotógrafo de agência, optou por seleccionar imagens que captou dos procedimentos em funerais, das ruas vazias, dos hospitais e da actualidade noticiosa, num resumo da sua visão dos cerca de dois meses e meio de confinamento.
O EverydayCovid pode ser adquirido em www.everydaycovid.pt e os primeiros volumes, desta primeira edição de 2500 exemplares, deverão começar a chegar a quem fez encomenda amanhã, sexta-feira. Após o pagamento de todas as despesas de publicação, o projecto irá fazer chegar os lucros das vendas deste livro, que tem o apoio do Presidente da República, a pessoas necessitadas.
“O som do vazio”
João Vieira é um jovem fotógrafo e fotojornalista de 28 anos. O início da pandemia apanhou-o em França, num limbo entre persistir na busca de um emprego, desenraizado numa terra estranha ou regressar a Ourém, ao lar.
Optou pela segunda escolha.
Habituado que estava ao bulício e confusão dos 13 de Maio e ao quotidiano frenético de Fátima, vivido muitas vezes ao serviço do jornal Notícias de Ourém, descobriu, com surpresa, que o maior santuário mariano do mundo tinha congelado.
Não tinha apenas assumido um movimento de câmara lenta. Tinha, efectivamente, perdido todo e qualquer movimento.
“A realização de portas fechadas do 13 de Maio teve um grande impacto em mim. Ver a missa acontecer sem ninguém, o som dos altifalantes a ecoar em nada e as estradas desertas, foi muito estranho. Era o som do vazio.”
João retratou esses dias abafados por uma espécie de bruma e vividos num misto de tristeza e estranheza.
Acompanhou o quotidiano de quem nunca parou, de quem nunca ficou em casa, para que os outros o pudessem fazer. “Partilhei e retratei o dia-a-dia com os padeiros, com a polícia, com as pessoas que continuaram a prestar apoio domiciliário aos idosos”, conta.
Quotidiano para lá das máscaras
Fátima também foi o pólo de atracção de Rui Miguel Pedrosa. Natural de Leiria e habituado a seguir as movimentações do 13 de Maio, perante a ausência da presença humana trazida pela Covid-19, tentou retratar o vazio.
Num exercício de comparação entre o antes e o depois. Procurou no seu arquivo por fotografias de anos anteriores, de locais de passagem das multidões em busca do pagamento de promessas e, nos mesmos dias, estava lá para fazer o registo comparativo.
“O retrato que mais me impressionou foi, em Pombal, junto a um albergue que acolhe peregrinos. Nas peregrinações está cheio de gente. Este ano, estava transformado em centro de testes Covid.”
Fátima, adianta, sempre o fascinou, embora admita não comungar do sentimento religioso que atrai milhares ao local.
“Quando vi aquele sítio, um dos maiores santuários do mundo, vazio de gente, senti que tinha de ir além das simples fotografias de pessoas com máscaras nas ruas.”
Volta ao confinamento em 80 dias
João Matias há anos que abandonou o fotojornalismo, mas o espírito jornalístico manteve-se dentro de si, como elemento indelével da sua personalidade.
Por isso, no primeiro dia em cenário de confinamento, o gestor de projectos na Imago, agência de comunicação de Leiria, já sabia que tinha de contar a história ou, pelo menos, a sua versão daquilo que estava a viver.
A 14 de Março, o dia que marcou o início do seu confinamento, captou a sua imagem favorita para o projecto EverydayCovid, ainda sem saber que ela iria ser publicada neste livro ou sequer que iria tomar parte na iniciativa.
Foi a primeira fotografia dos 80 dias de confinamento.
“Fotografei o meu filho a fazer uma videochamada para os padrinhos que, na ocasião, estavam a viver em Emilia-Romagna, zona da Itália que, naquele momento, a nível mundial, era o sítio com o maior número de infecções por SARS-CoV-2. Eles já estavam confinados há três semanas”, recorda João Matias.
Ao olhar para essa fotografia, percebeu que documentar os 80 dias, iria ser um exercício e uma obrigação diários.
E assim foi.
Curadores: André Dias Nobre, Ângelo Lucas, Gonçalo Borges Dias, Gonçalo Delgado, João Almeida, Miguel A. Lopes, Rui Miguel Pedrosa, Rui Soares
Coordenação: Aurora Diogo Revisão: Berta Neves e João Lopes
Concepção e Design: Gráficos Associados
Impressão: Empresa Diário do Porto
Fotógrafos: Adelino Meireles, Adriano Miranda, Álvaro Isidoro, Álvaro Miranda, Ana Brígida, André Gouveia, António Araújo, António Azevedo, Artur Cabral, Bruno A. Gonçalves, Bruno Colaço, Carlos A. Costa, Carlos Pimentel, Carlos Pinota, Carlos Santos, Dinorah, Diogo Baptista, Filipe Amorim, Flávio Alberto, Gonçalo Lobo Pinheiro, Gonçalo Villaverde, Hugo David, Hugo Delgado, Humberto Magro, Igor Martins, Índio Nelson, João Carlos, João Cortesão, João Ferreira Figueiredo, João Matias, João Pedro Domingues, João Porfírio, João Silva, José Oliveira, João Vieira, José Carlos Carvalho, José Sena Goulão, Kenton Thatcher, Lino Borges, Luís Filipe Catarino, Luís Filipe Coito, Luís Manuel Neves, Luís Vieira, Mag Rodrigues, Manuel Manso, Manuel Martins, Marcos Sobral, Maria João Gala, Martin Henrik, Miguel Esteves, Miguel Figueiredo Lopes, Miguel Manso, Miguel Pereira, Natacha Cardoso, Natércia Machado, Nuno André Ferreira, Nuno Ferreira Santos, Nuno Fox, Nuno Fernandes, Nuno Silva Pinto, Octávio Passos, Paulo Pimenta, Pedro Correia, Pedro Noel da Luz, Pedro Rocha, Rafa Lomba, Reinaldo Rodrigues, Ricardo Almeida Xe, Rodrigo Cabrita, Rui Duarte Silva, Rui Gaudêncio, Rui Minderico, Rui Oliveira, Samuel J. Rodrigues, Sara Matos, Tiago Maya, Tiago Miranda, Timothy Lima, Vítor Mota