Nos tempos que correm, ainda faz sentido estudar a União Europeia? Há quem já preconize a sua morte.
Faz cada vez mais. Afastamo-nos, temporalmente, cada vez mais, de realidades que foram traumáticas e que impediram que a Europa se desenvolvesse tanto quanto se poderia ter desenvolvido. Falo das constantes guerras – as mais próximas são os dois grandes conflitos do século XX – e o maior genocídio da História Humana ou do discurso, comum na Idade Média, que considerava que o outro era a ameaça e que está, hoje, a ser reavivado. A maior ameaça para a Europa veio do interior, do conflito entre Estados e dos nacionalismos, que são avivados por crises, como as que temos vivido. Esta pandemia irá suscitar discursos desses.
Na Europa comunitária, desde o primeiro Tratado de Roma, nos anos 50, temos tido muita economia, a possibilidade de um exército comum, fronteiras abertas. Porém, nesta pandemia percebeu-se que falta falar de temas como a Saúde?
Falta falar-se na Saúde, porque a UE, institucionalmente, não tem competências na área. Tal como a Educação e a Cultura, por exemplo, ela é uma competência nacional. Legalmente, a União só pode complementar e auxiliar a acção dos Estados-membros. No início da pandemia, os países actuaram cada um por si, mas a UE utilizou os mecanismos de coordenação inter-governamental e fez coisas que não são visíveis para o público: coordena o abastecimento de equipamentos entre Estados ou disponibiliza financiamento para a Saúde. O que esta crise trará, será uma revisão das suas competências. Faz sentido termos fronteiras abertas e não haver uma competência de Saúde Pública na UE?
Será uma revisão de competências como aconteceu com a questão bancária, na crise anterior.
Sim. Embora na crise anterior a evolução não tenha sido a ideal. Aliás, está-se outra vez a retomar essa discussão. Quando se introduziu a liberdade de circulação de capitais, após se ter tirado aos Estados-membros as ferramentas nacionais de regulação dos mercados, não se regulou nada. Depois da crise, a UE deu resposta a isso, no entanto, o resto do trabalho, que é a criação de uma redistribuição financeira forte, ainda não foi feito e fala-se nisso, agora, devido aos coronabonds.
Por um lado, se houvesse mais Europa, alguns dos problemas que temos sentido não teriam acontecido. Por outro, há muitas vozes a pedir menos Europa, por entenderem estar ali a fonte dos problemas.
O crescimento dos nacionalismos, da xenofobia e do eurocepticismo tem uma perspectiva histórica. Nas primeiras décadas, a construção europeia teve repercussões positivas para a população: houve um crescimento económico excepcional nas duas primeiras décadas do pós-guerra. Durante a criação do mercado livre de pessoas mercadorias e capitais, os Estados apenas se preocuparam em conceder competências à comunidade europeia para a liberalização do mercado e, através dela, ter crescimento económico interno para a construção do estado-social. Mas os partidos não discutiam questões europeias no território nacional e há um desconhecimento geral do eleitorado das dinâmicas europeias. Nos anos 90 e, mais tarde, quando estoirou a crise financeira, a integração europeia teve repercussões negativas por não ter criado mecanismos de resposta social. De facto, as respostas dadas à crise foram de estabilização financeira, com os cortes de despesas sociais que isso implicou nos Estados do Sul. No Norte, o impacto dessas medidas levou a que se criasse a noção de que eles estavam a pagar os gastos do Sul. Criou-se dúvidas nas pessoas: “o que é a UE se ela não me beneficia no dia-a-dia?”, “o que é a UE se me levam a cortar o subsídio de desemprego ou a reforma?”. Isto leva à desconfiança sobre esta instituição e ela é aproveitada por partidos eurocépticos antigos e por novos partidos, com mensagens que respondem à crise dos refugiados, aos ataques terroristas, trazendo mensagens securitárias. A UE deveria ter acompanhado a sua construção económica com uma construção na área social. O futuro do projecto europeu depende de se avançar ou não nesse capítulo.
O murro na mesa de António Costa, em resposta a Wopke Hoekstra, ministro das Finanças holandês, surpreendeu- a? Não esperava que ele fosse tão veemente.
Esteve muito bem e fez aquilo que Portugal deveria ter feito há muito. A UE não é um ser etéreo. É constituída por uma realidade que é a participação dos Governos na decisão. Embora Portugal tenha um espírito muito europeísta, em muitos períodos teve uma atitude passiva.
Foi sempre “o bom aluno”.
Exactamente. Não teve uma atitude enfrentadora e construtora da UE. Esta reacção de Costa vem em linha com o posicionamento da Geringonça, o anterior Governo, e após toda a desconfiança da UE relativamente ao seu primeiro orçamento e ao facto de um partido europeísta estar coligado com dois partidos eurocépticos. Foi um sinal de mudança, de que a Europa tem de se fazer de forma diferente e com uma vertente social mais forte. O que Costa fez, para moralizar o discurso político, foi um exemplo.
Ele lançou um aviso: isto é “repugnante” e se continuar assim, se não houver solidariedade, a UE acaba.
Portugal lançou um aviso sério à Holanda, à Finlândia, à Alemanha e a outros Estados-membros: “não nos assustam mais com a vossa estratégia de que precisamos desesperadamente de vós para nos emprestarem dinheiro”. Foi direccionado à Alemanha, país que poderá ser essencial para mudar o jogo. Isso viu-se no último Conselho Europeu, onde, entre as várias propostas para utilizar o dinheiro que fará parte da ajuda da Comissão Europeia, a Alemanha adoptou a solução intermédia e não a extremista dos países do Norte. Costa e Portugal avisaram: “atenção, se a zona euro se desintegrar, vamos todos ao fundo. As economias do Sul, estruturalmente mais débeis, terão um grande impacto, mas as vossas estratégias de competitividade falharão”. Estamos todos no mesmo barco, agora”. Na crise económica, havia uma certa razão histórica para que os países do Norte pudessem invocar a incúria da governação dos países do Sul. Tinha havido exagero no endividamento e um historial de desgoverno financeiro de vários Estados. Neste momento, há esforços de convergência e Portugal é um bom exemplo. Mais uma vez, é um bom aluno.
Como será, afinal, o apoio da UE? É uma “bazuca” ou uma “fisga”?
Podemos especular. Temos o pacote do mecanismo europeu de estabilidade, uma espécie de FMI da Europa, mas isso é um empréstimo que serve para as necessidades de emergência. O que foi falado no Conselho Europeu é que a Comissão Europeia ficaria habilitada a contrair um empréstimo entre um bilião e 1,5 biliões de euros. É muito dinheiro, mas como António Costa disse, “o diabo está nos pormenores”. O que está por decidir é a utilização do dinheiro. Serão empréstimos aos Estados-membros, como querem os países economicamente mais fortes? Isso não resolve o problema estrutural da zona euro. Será por subvenções ou investimento directo nos Estados? A presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, falou noutra solução intermédia: uma parte sob a forma de empréstimos e outra por canalização directa. Curiosamente, a Alemanha não apoia a solução dos empréstimos. Está no meio. O facto de a presidente, que é alemã, ter apontado a solução intermédia, é uma janela que se abre. E há a questão do quadro financeiro plurianual, 21-27, e do grupo dos países que pagam mais para esse orçamento europeu do que o que recebem dele, que já tinha dito que não iria aumentar contribuições. Porém, agora parece que já há um consenso de que é preciso aumentar e pretende-se criar um novo fundo financeiro, o de Recuperação para os Estados-membros. Também já se fala de criar um Seguro Europeu de Emprego e um Salário Mínimo Europeu, isso são avanços na Europa social. Tudo depende da forma como o seguro irá funcionar; é uma redistribuição de riqueza ou só uma facilitação do empréstimo?
Qual é o impacto prático destas medidas na vida dos cidadãos?
O principal será um alívio nas políticas orçamentais e fiscais dos Estados, por uma maior redistribuição de riqueza – aquilo que fazemos nos nossos países. A Europa diferencia-se dos EUA, que são economicamente mais desenvolvidos, porque tem um Estado Social de Direito que, embora tenha sido enfraquecido e alvo de cortes, ainda sobrevive. Agora, na pandemia, todos são defensores do Estado Social… Ele existe porque há redistribuição de riqueza nos vários países, desde a construção do Estado Previdência, no pós II Guerra Mundial. Pagamos impostos e contribuições e queixamo- nos disso, mas é em momentos destes que percebemos porquê. Muitos de nós, certamente, pagamos mais para o orçamento do que o que beneficiamos. Se calhar não usamos o Serviço Nacional de Saúde, mas é assim que as coisas funcionam. A nível europeu, desmantelámos os mecanismos de proteccionismo económico aos Estados e eles ficaram sem ferramentas para adequar as políticas económicas e financeiras às suas realidades. Neste momento, estamos tão interdependentes, que temos de avançar para a redistribuição de riqueza a nível europeu, que não existe com o actual orçamento europeu, irrisório de apenas 1% do PIB de cada país. Os cidadãos beneficiam disto com o alívio de medidas, como a permanência do Estado Social, mais dinheiro para a Saúde, menos aumento de impostos ou cortes nas subvenções sociais, investimento em infra-estruturas e indústrias-chave. Ficou evidente agora que a deslocalização da produção industrial que a economia europeia esteve a fazer para a China e outros territórios, a tornou dependente dos materiais e do sistema produtivo que lá se instalam. Está a haver a discussão do regresso da indústria da China para a Europa, mas para isso acontecer tem de haver apoios estatais que criem condições e atraiam o investimento.
O modo como os portugueses se comportaram na pandemia e os baixos números de vítimas, distingue-nos como dos países que melhores resultados teve no Ocidente. Em brincadeira, dizem que somos os “nórdicos do Sul”, por mantermos a distância física. No futuro, isto poderá ser uma mais-valia?
Acredito que sim. António Costa estava numa posição legitimada para falar, porque ninguém podia apontar nada a Portugal em termos de desempenho financeiro e porque estava a lidar bem com a pandemia. Por estarmos a responder bem ao nível da Saúde, Economia e nos aspectos sociais, a generalidade dos portugueses também teve essa percepção e a consciência de que isto era sério e que cabia em muito ao seu comportamento alterar as coisas. Por outro lado, é um erro atribuir isso a um virtuosismo nacional. Embora haja casos, pela negativa, como os EUA, Brasil ou o Reino Unido… Nós tivemos tempo de perceber como actuar, porque aprendemos com os outros países. É evidente que isso não retira o mérito às autoridades nacionais. Enquanto portuguesa orgulho-me bastante da [LER_MAIS]diferença entre o modo como nós, culturas do Sul, talvez marcadas positivamente pela religião, actuámos, em contraste com as culturas mais pragmáticas do Norte. Isto porque o pragmatismo nem sempre é positivo. Todos devem ter direito ao Serviço Nacional de Saúde e não deve haver excluídos, independentemente da sua idade. A Itália teve de escolher quem iria ser ligado ao ventilador… mas alguns países do Norte permitiram a contaminação com regulação. Os efeitos colaterais foram o grande número de mortes de idosos. Um desses países criticou a Itália por socorrer toda a gente no hospital, colapsando o serviço de saúde. Mesmo a Suécia, não tendo tido um aumento exponencial de casos, tem um alto nível de motalidade e é um país com baixa densidade populacional e uma população com um número semelhante ao de Portugal. É uma estratégia pragmática. Se calhar, se não houver vacina daqui a um ano, eles estarão óptimos, imunes, com a economia a recuperar e nós novamente confinados. Terão menos idosos e menos pessoas com doenças crónicas… Não vale tudo no pragmatismo.
Portugal, perante a reacção na última crise com o aumento das exportações e novas áreas de negócio, e nesta pandemia, onde respondemos, na generalidade, a uma voz, mostra um povo tenaz que com novas regras e com um desígnio nacional poderia libertar-se de fantasmas do passado e estar no pelotão da frente?
Um dos problemas do País é o corporativismo mau, a propensão para a corrupção e estarmos apegados a uma cultura negativa que vem do Estado Novo ou mais atrás. Temos uma gestão e administração públicas muito demoradas. Sou defensora do Estado Social e creio que há serviços inconcebíveis de estarem nas mãos dos privados, porque têm de ser universais, mas a Administração Pública tem muitos vícios, relaxamentos e permissividade de desvios. Depois, há a questão dos partidos políticos. A cultura politico-partidária está muito envolvida numa perspectiva carreirista e não de causa pública. Os que são realmente bons não querem ir para a política, devido a essa natureza dos partidos. Estamos a colher os frutos daquilo que foi a nossa transformação de recursos humanos, dos últimos 20 anos. Não nos podemos esquecer que acabámos a ditadura com níveis de analfabetismo que o Reino Unido não tinha desde o início do século XX. Isto também é a transformação da nossa economia, que deveria ter sido feita desde que entrámos na Comunidade Europeia, com impacto nos sectores tecnológico, científico e formação. A alteração da forma como as empresas são geridas, não elimina a cultura que vem de trás mas começa a haver repercussões. Preocupa-me a participação política dos eleitores mais jovens. O actual eleitorado, embora mais informado e educado em escolaridade, não é mais escrutinador dos seus políticos e é mais permeável a falsas notícias, potenciadas pelas redes sociais e algoritmos. É assim que aparecem fenómenos como André Ventura, como o Vox, como o Alternativa para a Alemanha. É assim que Trumps e Bolsonaros são eleitos. As premissas destes populismos são dizer coisas que são simples e parecem a resolução imediata dos problemas, mas há conversas de café mais interessantes e profundas do que o que dizem estes populistas. Nada é mais paradigmático do que agora vermos que, perante esta crise, as soluções simplistas de Bolsonaro e Trump não resultam. Esta pandemia foi óptima para desmontar os discursos populistas, embora estes lideres tenham boas taxas de aprovação.
O teletrabalho veio para ficar?
Para ficar não, mas para tornar o trabalho mais misto, partilhando espaço com as formas presenciais de trabalho. Veio eliminar viagens para ir a reuniões desnecessárias, o que vai ter impacto nas alterações climáticas e poupar tempo e dinheiro às empresas. Veio também demonstrar o quanto precisamos de contacto humano e da necessidade da dinâmica de estar no local de trabalho com aquele colega de quem não se gosta muito. Precisamos do contacto humano.
E para o ensino, este é um ano perdido?
Depende dos níveis de ensino. Para o Básico, talvez seja um terço do ano perdido. Mas também acho que é bom para os alunos, pois ensina-lhes o valor da escola. No Secundário, talvez se consiga concertar leccionação à distância. No Universitário, consegue-se também fazê-lo e vê-se o comprometimento dos alunos. Não me parece que seja um ano perdido. Agora, no próximo ano, não sei se estaremos em condições de retomar as aulas em sala com normalidade.