“Bom dia menina Sónia!”. O cumprimento alegre chega de Ansião. Desta vez, é Carlos Lopes quem telefona. Quer ouvir Eduardo Santana e dedicar a cantiga a todo o auditório, com votos de bom almoço.
A radialista, Sónia Simões, corresponde com boa disposição e pede a tal frase que dá livre acesso à música marota. O slogan da empresa de móveis sai-lhe sem gaguejos e, depois das rápidas despedidas, a canção já toca.
Emitido a partir de Pombal, Discos Pedidos, da Rádio Cardal, é um dos programas que abrem espaço à conversa com os ouvintes e lhes dão carta branca para escolher músicas e lançar as suas dedicatórias. Ao longo de décadas, rubricas como esta constroem legiões de fãs, que tecem laços de amizade entre si e para com os locutores.
Para muitos destes profissionais não restam dúvidas de que, num mundo acelerado e de solidão, relações de proximidade como estas são alimento [LER_MAIS]para ouvintes e âncora para rádios locais.
Sónia. Não é trabalho, é prazer.
Sónia Simões tem 45 anos, 30 dos quais dedicados à rádio. Passou por três estações diferentes e com ela levou sempre o seu grupo de ouvintes, fãs da “boa energia” que a locutora transmite.
“Não é trabalho. É um prazer. Não é cansativo”, assegura a radialista. “Basta ligar o microfone que todos os meus problemas ficam para trás”. Tudo o que lhe interessa é escutar quem telefona, lançar as músicas que gostam, apresentar passatempos e deixar o público animado. Enquanto os mais velhos gostam de pedir discos por telefone, os jovens tanto o fazem assim como através mensagens no WhatsApp.
Certo é que o programa tem conquistado público de todas as idades. As pessoas sentem necessidade de receber atenção, seja no ar, seja durante as conversas particulares que mantêm com a locutora, que muitas vezes acaba por ser um pouco família, um pouco psicóloga, explica Sónia.
E o apego é reciproco. Ao ponto de a própria animadora ter necessidade de contactar ouvintes habituais, quando inesperadamente deixam de participar no programa. Como aconteceu há dias com uma seguidora septuagenária, exemplifica. E é esta proximidade que mantém a rádio viva, acredita a locutora.
Pedro. Na alegria e na tristeza
Pedro Nobre apaixonou-se pela rádio há 38 anos e tem feito quase todo o seu percurso de locutor na Cister FM, de Alcobaça. Presentemente, tem em mãos o programa Bom Dia Alegria, que está no ar de segunda a sexta-feira, das 10 às 13 horas, que promove a interacção entre animador e ouvintes, com momento de discos pedidos.
“As pessoas conversam em directo, por telefone, sobre as suas alegrias e tristezas. Quase somos família. E é gratificante saber que há quem esteja à espera, naquele horário, pelo locutor”, expõe Pedro.
Seja neste programa matinal, ou no Peça que não maça, que também conduziu ao longo de vários anos, ao final da tarde, não têm faltado a Pedro memórias felizes, como as frequentes declarações de amor atiradas entre ouvintes. Mas também surgem realidades duras de gerir. Como o momento em que uma senhora fez a ligação habitual, procurando, daquela vez, palavras de conforto para a morte do marido.
Sejam mais jovens, sejam mais idosas, “há pessoas que são extremamente solitárias” e programas destes “tornam-se uma rotina para brincar ou enviar mensagens”, reconhece o animador. “Nem conseguimos antecipar o bem que lhes fazemos”, acredita Pedro, entendendo que, para muitos, a palavra dada é mais importante que a selecção musical.
Em simultâneo, também a saúde das rádios locais passa pela proximidade que constroem com as comunidades. “Vivemos de publicidade que é captada pelas audiências”, repara o locutor.
Manuela. O cupido marcou hora com o camionista
Emitida a partir de Castanheira de Pera, Hora do Camionista, da Rádio São Miguel, é um programa de tal sucesso, que Manuela Freire, locutora, entende ser crucial para a vitalidade da estação.
Aos 39 anos, metade dos quais vividos nestas lides, Manuela explica que começou por animar a Hora do Camionista com um colega mais velho, Arlindo Simões. Quando o veterano deixou a rádio, a jovem assumiu este espaço, onde há tempo para discos pedidos, conversas e dedicatórias. “Faço-o para todos os profissionais do volante, para todos os que viajam de automóvel”, explica a animadora.
As preferências musicais do auditório são diversificadas, vão desde o pop ao folclore e tendem a privilegiar autores portugueses. Se as redes sociais vieram quebrar um pouco a magia da rádio, quando nada se sabia da locutora, além da sua voz, por outro lado, vieram familiarizar o público com a radialista. “Muitas vezes mandam um beijinho para o meu filho Afonso”, refere Manuela.
Mais novos ou mais velhos, aqueles que telefonam e pedem discos não o fazem por desconhecer a internet. Fazem-no num gesto de partilha dos seus gostos, realça a animadora. E tantas vezes os ouvintes se dão a conhecer, a si, aos seus hábitos e preferências musicais, que o programa já resultou num casamento.
“Às tantas, comecei a perceber que o camionista e a camionista já trocavam dedicatórias. Vim a saber que agora estão juntos”, alegra-se a radialista.
Lelita. Madrugar e animar aos 80 anos
Aos 80 anos, Maria Manuela Jorge, a Lelita da ABC Portugal, será uma das mais velhas animadoras de rádio desta região, no activo, depois de 34 anos de emissões. Mais do que um cumprimento, “Olá, olá! Bom dia, bom dia!” tornou-se numa das marcas desta icónica locutora de Ourém.
Natural da Atouguia, Lelita regressou de Angola nos anos 70 e sempre foi muito dada a cantorias. Já na década de 90 foi desafiada a aproveitar o gosto pela conversa e pela música para fazer rádio.
Atravessou a era dos discos, dos CD e dos computadores, sempre somando seguidores. Recorda até hoje uma festa de aniversário da rádio, que juntou ouvintes de muitos locais, onde se deu conta do alcance dos seus programas. “Veio uma camioneta cheia de gente da Figueira da Foz”, lembra a radialista.
Colecciona inúmeras mensagens e recordações daqueles que ao longo do tempo lhe têm expressado admiração. Hoje, volvidas mais de três décadas ,e já aposentada do emprego de telefonista, nos bombeiros, Lelita continua do outro lado da linha, ao microfone da rádio, todas as manhãs de sábado, pronta para conversar com quem lhe liga.
“Falam-me da sua vida, da família, dos seus animais. Há pessoas que cantam. O senhor João, por exemplo, inventa anedotas.” P
arte dos ouvintes que lhe telefonam são idosos, sozinhos. “Ouvem -se as pessoas, as suas dores. Às vezes querem desabafar comigo, nem querem ir para o ar”, conta Lelita.
E tão importante é a rádio nas suas vidas como na da animadora, que todos os sábados se levanta às 5:30 horas disposta a mais uma manhã de convívio.
“As pessoas gostam de se ouvir”
Quando a internet confere actualmente ao público a possibilidade de escolher e ouvir as músicas e outros conteúdos da sua preferência, o que motiva jovens e menos jovens a telefonar para as rádios para pedir uma canção? Jorge Bruno, director da licenciatura em Ciências da Comunicação na Lusófona, doutorado na área da Rádio, apresenta várias justificações. “As pessoas gostam de se ouvir ou, pelo menos, de ouvir o seu nome na rádio. Há uma humanização que a rádio tem, uma cumplicidade que se gera com o locutor, que as outras plataformas não têm”, considera o docente. Por outro lado, “a rádio sempre teve a característica de misturar a esfera pública e a esfera privada. Mais do que os outros meios”, salienta Jorge Bruno. “É a possibilidade de numa emissão de rádio, pública, eu, ouvinte, olhar para ela e senti-la como qualquer coisa de privado, como qualquer coisa que é feita para mim. E, por isso, o ouvinte estabelece um conjunto de laços com aquele locutor. Olha-o quase como um amigo.” Antigamente, recorda o investigador, “era na rádio que se depositava a esperança de resolução de problemas privados. Quando já nada nos dava alento, quando entendíamos já não conseguir resolver nada na esfera privada, remetia-se para a esfera pública, falando com o locutor, expondo o problema na rádio. Ainda acontece um pouco nalguns programas televisivos, onde o público faz denúncias dos problemas, tentando que as reportagens os resolvam”, compara o docente.