Já tinham ouvido falar um do outro, mas não se conheciam pessoalmente. É normal. Quando, em 2017, Auriol Dongmo passou a morar em Leiria, já há muito que Pedro Portela se tinha mudado para Lisboa e, mais tarde, para Paris.
Ela é campeão europeia do lançamento do peso em pista coberta, ele um elemento fundamental da selecção nacional de andebol que fez história no Europeu e no Mundial. No fundo, dois dos mais conceituados atletas nacionais, desportistas ambiciosos que querem levar o nome de Portugal bem longe.
A maior competição desportiva do planeta vai testá-los a fundo e nós decidimos fazer o mesmo. Desafiámo-los a trocarem de modalidade, bem diferentes, mas com algo em comum, num exclusivo para os leitores do JORNAL DE LEIRIA. Eles acederam e à hora combinada estava tudo pronto no Centro Nacional de Lançamentos.
Depois das apresentações, seguiu-se o desafio. “Queres lançar com o peso de quatro quilos? É que nem pensar! Homem lança com peso de sete quilos”, adverte a quarta melhor mundial do ano na especialidade. Pedro Portela lá a convence que será melhor assim.
Pega no engenho feminino e fica surpreendido com o peso do peso. “Qual é o teu recorde? Dezanove metros e 75 centímetros? Uau.” Vamo-nos afastando do círculo para ter a perfeita noção daquela marca de excepção e ela vai dizendo “mais, mais, mais”, até ficar mesmo muito longe.
Auriol começa por dar as primeiras dicas, sempre em português escorreito. “Tens de encaixar o peso no pescoço. Depois, tens me meter o pé do braço do lançamento à frente e dar um salto para trás.” Ela exemplifica com a maior das fluências. Desliza e lança. Ele vai olhando.
Como Pedro é canhoto, tem de fazer o movimento em espelho, de pé esquerdo à frente. “Cá vai disto.” Tentou uma, tentou duas, tentou três vezes. Se a rapariga usa a técnica rectilínea, há também quem use a rotação e ele ficou algures a meio caminho entre uma coisa e outra. “Não podes passar a antepara. É nulo”, diz ela.
“Só passei para ir buscar o peso”, desculpou-se ele. A marca até não foi má. Uns bons dez metros, metade do que ela lança, mas a treinadora parecia impressionada. “Tem jeito. Foi bom! Isto com treino ia lá.”
Medalha
Pegamos no carro e vamos até ao pavilhão da Juve Lis para os atletas trocarem de papéis. Aproveitamos a viagem para conversas sérias. Auriol Dongmo está em Portugal há quatro anos. Rumou a Leiria, cidade que adora, pouco tempo depois de ter sido finalista olímpica, ainda com as cores dos Camarões, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.
“Os primeiros anos foram complicados. Tive algumas dificuldades de adaptação à língua e não foi fácil ser mãe estando cá sozinha”, explica.
[LER_MAIS]Com a situação mais estabilizada, deu um enorme salto qualitativo. Pôde treinar de forma mais objectiva sob as ordens de Paulo Reis e os resultados não demoraram a aparecer.
De tal forma que desde Outubro de 2019, quando se naturalizou portuguesa, já bateu por nove vezes o recorde nacional da disciplina, fazendo a marca subir nada menos do que 2,21 metros.
Os 19,75 metros do actual máximo português são também a quarta melhor marca mundial do ano. Esse facto, juntando ao título europeu de pista coberta que conquistou em Março, fazem dela um foco de todas as atenções. “Nas provas lá fora já sinto que sou um alvo a abater.”
O sonho do treinador de Leiria de ter uma atleta a ganhar uma medalha olímpica parece, pois, ter todas as condições para se concretizar. Ela também tem uma “esperança grande”. “Acho que se as coisas correrem normalmente consigo ganhar uma medalha”, admite Auriol Dongmo, de 30 anos.
Mas mesmo que esse objectivo seja concretizado, ainda terá um mundo por conquistar. Há, até, um número redondo, só ultrapassado por 17 senhoras desde 2000, que quer rapidamente superar.
“Não só quero chegar aos 20 metros, como quero fazer muito mais. Agora, tem de ser pouco a pouco. Primeiro passamos os 20, depois os 21 e mais tarde, quem sabe, o recorde do mundo (22,63 metros).”
Para lá chegar, como em tudo na vida, conta com ajuda divina bem próxima da cidade onde escolheu viver. “Fátima é muito importante para mim, porque sem Deus eu não sou nada. Quando tirar a carta e comprar o meu carro vou lá sempre que puder. Agora tenho de pedir boleia e não gosto de incomodar as pessoas.”
Tudo é possível
O último ano tem sido louco para o andebol português. Após mais de década e meia ausente dos grandes palcos, de repente começou a marcar presença nas competições internacionais. Ainda por cima, com as melhores prestações da história, como o sexto lugar no Europeu e o décimo no Mundial.
A tragédia que se abateu sobre a selecção nacional, com a morte do guarda-redes Alfredo Quintana, em vésperas do apuramento para os Jogos Olímpicos, onde se enfrentaram adversários de elite como França e Croácia, podia fazer prever o insucesso, mas o grupo de trabalho uniu-se ainda mais e tornou possível o impossível.
Um golo nos últimos segundos marcado por um jogador, Rui Silva, que tem a imagem de Quintana cravada na derme no braço de remate fez o milagre acontecer.
“Foi um sonho”, diz Pedro Portela. “Mesmo depois do que passámos, conseguimos superar-nos. Entrámos mal no jogo e depois foi mais com o coração do que com a cabeça, mas nunca desistimos. Fomos buscar forças onde não sabíamos que tínhamos, mas não tenho dúvidas de que além da nossa energia tivemos a força do Quintana sempre connosco. Queríamos dedicar-lhe aquele momento.”
Foi um “misto de sensações”, admite o ponta, de 31 anos, que na próxima temporada vai trocar o Tremblay, dos arredores de Paris, pelo gigante Nantes, uma das melhores equipas do mundo.
“Por um lado estávamos a viver aquele sonho e queríamos festejar, mas a verdade é que não era a mesma coisa. O que aconteceu tem a mão dele, de certeza que está orgulhoso e garanto que vamos deixá-lo ainda mais.”
O que quer isso dizer explicou o seleccionador nacional à chegada a Lisboa. “Posso parecer louco, mas vamos lutar pelas medalhas nos Jogos Olímpicos.” Pedro Portela concorda.
“Temos consciência da nossa qualidade, que somos difíceis de bater. Ele fala da loucura das medalhas e nós vamos atrás, mas primeiro temos de passar a fase de grupos. Depois, a partir dos quartos-de-final, é jogo a jogo e tudo pode acontecer. Portugal pode ganhar a qualquer um. ”
Camião
Chegámos. Mal pisamos o soalho somos surpreendidos com a destreza de Auriol. Tínhamos sido enganados. De sorriso nos lábios, pega na bola, dribla, dá os três passos da ordem e remata, com força, à baliza. Afinal, ela já sabe (quase) tudo.
“Quando era criança fui andebolista durante três anos, lá nos Camarões”, admite, com sorriso malandro. “Defendia na ponta-esquerda e ninguém passava por mim. Era muito bruta a defender e no ataque era um camião, ninguém me parava, por isso é que o meu treinador me mandou para o peso”, conta a atleta.
Já que Pedro Portela não lhe pôde ensinar o básico, estava ansioso por metê-la em dificuldades. “Consegues fazer uma rosca?” Auriol tenta, mas a bola não ganhou o efeito necessário para mudar de direcção quando tocou no chão. “Isso não consigo”, responde .
De qualquer maneira, a força e a colocação do remate, a mudança de direcção e a agilidade da atleta não deixou qualquer dúvida: “Esta menina tem lugar na Juve Lis! Se o mister Diogo Guerra estivesse aqui já não lhe escapava!”