Uma das principais conclusões do recente relatório Estado da Educação 2022 é a extinção do 2.º ciclo.
Decidimos escolher cinco áreas temáticas que consideramos que são desafios para o desenvolvimento do sistema educativo e melhoria da sua qualidade. Questiona-se a existência do 2.º ciclo do ensino básico, que é uma singularidade no contexto de sistemas educativos europeus. As razões que levaram à sua criação, não existem neste momento. É um ciclo entre ciclos, cujo problema principal será os alunos no 1.º ciclo estarem habituados a um professor titular da turma e depois entrarem num mundo onde aparecem 12 professores. Isto não tem explicação e não é positivo sob o ponto de vista das aprendizagens. É uma transição muito exagerada que levanta uma série de problemas. Muitos académicos e até políticos têm referido a falta de sentido para este 2.º ciclo. Eu, pessoalmente, já defendi na Assembleia da República e junto do Governo a necessidade de começarmos a ter uma educação dos 0 aos 12 anos, que nos possa ajudar a gerir de uma forma mais integrada, com um fio condutor lógico e consistente. Claro que se teria de pensar como é que organizaríamos o actual 3.º ciclo. Na esmagadora maioria dos países da Europa, e mesmo fora da Europa, há um primeiro momento de escolaridade, que pode ir até aos 12 ou 14 anos, em que há uma certa integração e unidade. Depois têm aquilo que se chama o lower secondary e o upper secondary, que são os 10.º, 11.º e 12.º anos. A mim não me chocaria rigorosamente nada que tivéssemos um primeiro momento, dos 0 aos 12 anos, depois um segundo momento, dos 13 aos 15, que seria o lower secondary, e a seguir um secundário superior, tal como ele existe agora.
Manter-se-ia a monodocência no primeiro momento?
Julgo que não. Até sou apologista que se poderia acabar com a monodocência. Não é criar grandes especializações, mas termos uma situação que fosse evoluindo para que a tal transição não fosse também complicada. Mas, nunca se justificam 12 professores. Criámos uma situação em Portugal, que é bastante única no mundo. Em rigor, no 2.º ciclo, deveria haver cinco ou seis professores, porque estão divididos em grupos de docência.
As escolas estão a enfrentar um novo desafio com a entrada de alunos migrantes. Tem havido a resposta adequada?
Tivemos uma mudança brutal nas escolas em todo o País e isto levanta problemas muito sérios aos sistemas educativos e ao nosso, porque é particularmente rígido. Temos uma cultura que nos leva a ter muita dificuldade em alterar procedimentos. O grande problema é as crianças não saberem português. E se não aprendem, vão para a rua, criam-se guetos e surgem problemas sociais. Tenho muita pena que não se discutam estas questões substantivas, numa oportunidade como a que estamos a viver agora. Temos cento e tal mil alunos estrangeiros e a frequência na disciplina português língua não materna parece-nos bastante curta. Tem de ser feito um esforço significativo ao nível da frequência, mas também na forma como essa disciplina é trabalhada com os alunos. A maior comunidade que temos é de brasileiros, mas mesmo alguns destes alunos precisam de a frequentar, o que é residual. O alerta já está dado. Quais são os alunos que mais reprovam no sistema educativo português? São os portugueses que provêm de classes sociais mais debilitadas do ponto de vista económico, social e cultural e os estrangeiros.
E as escolas estão preparadas para receber esta diversidade?
Não tenho dúvidas que em geral as escolas recebem muito bem as crianças do ponto de vista afectivo e do acolhimento. É muito bom acolher bem, mas há que pôr esta criança a aprender português rapidamente. Aí não temos tradição e até temos uma certa rigidez. Não digo que não se preocupem se as crianças estão a aprender português, mas as pessoas não estão habituadas a lidar com a diferença, o que já acontecia, e acontece, com os lusos que vêm de culturas diferentes.
A inteligência artificial também já chegou às escolas. Como lidar com esta ferramenta?
Seria de uma grande ingenuidade da nossa parte acharmos que só daqui a 20 anos é que vai acontecer e que os alunos não a utilizam. Também elegemos esse tema como uma área que tem de ser trabalhada, porque levanta questões éticas que têm de ser devidamente equacionadas e abertamente discutidas, porque ensinar a muito curto prazo vai ser necessariamente diferente. Aprender e avaliar também. Como é que a pedagogia entra aqui e como é que avaliamos os alunos? Como é que eles vão aprender? Qual o papel do professor? Qual o papel da inteligência artificial e como é que vamos lidar com essa situação? Há já professores que estão a utilizar a inteligência artificial com os seus alunos sem tabus.
No relatório também se focaram no ensino artístico especializado e profissional nas escolas públicas.
Nos anos 70, a taxa real de escolarização não chegava aos dois dígitos. Hoje estão no ensino secundário 88% dos alunos, o que já é acima da média da OCDE, mas só ficarei satisfeito quando tivermos quase ou 100%. Os chamados percursos directos de sucesso e a conclusão estão praticamente resolvidos e comparamo-nos bem com qualquer país ao mais alto nível. Estando esses problemas resolvidos, temos de virar uma página. E a página tem de se virar para a qualidade, sob muitos pontos de vista. A qualidade está traduzida no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, um documento importantíssimo, que é uma espécie de farol que indica para onde deve ir o sistema educativo português. Esse documento está extraordinariamente bem feito e diz, por exemplo, que no final do 12.º ano o jovem deve ser autónomo, ter capacidade de resolução de problemas, ser criativo e usar o pensamento crítico, além de aprender a fruir as artes, o belo, as humanidades e as ciências. Ou seja, contempla um conjunto de competências que necessitamos de enfrentar nas sociedades cada vez mais complexas em que vivemos. Esse perfil funciona como um indicador de qualidade e tem de começar a ser trabalhado desde a mais tenra idade. No tal virar de página, temos de nos preocupar com o ensino básico, o que implica a tal reconfiguração de que falei e em melhorar a qualidade das aprendizagens. Depois temos de ter um ensino secundário forte e condições para o pôr num outro patamar de qualidade. Por isso é que falamos do ensino profissional e do ensino artístico especializado, porque é necessário ter uma diversidade de ofertas. Ou seja, tem de haver uma excelente oferta de ensino artístico especializado e dos cursos profissionais, que não podem ser cursos das ‘traseiras’, têm de ser cursos ao mais alto nível. E temos também de ter uma oferta ao mais alto nível de cursos científico-humanísticos. Isso é enriquecedor para a sociedade e para os alunos. É democratizar o ensino da música ou do teatro. Temos de consolidar e melhorar substancialmente a natureza e a identidade do ensino secundário. O que lhe dá identidade é esta diversidade, pois acaba por ser uma plataforma de oportunidades para os alunos. Neste momento, o ensino secundário ainda é uma espécie de corredor de passagem para o ensino superior. Uma coisa algo descaracterizada. O que me interessa é fazer Física, e etc, para entrar no ensino superior. O Estado tem de ter políticas públicas que transformem a escola secundária num espaço com três tipos de ofertas, todas ao mais alto nível. Não podemos discriminar os alunos dos cursos profissionais nem do artístico especializado.
Os alunos reclamam que muitas matérias não abordam os temas práticos da vida. Os currículos não deveriam ser mais curtos e ajustados para serem mais atractivos?
Há um excesso claro. Os nossos alunos conseguem ter uma preparação em termos internacionais que pode ser considerada boa ou até muito boa em muitos aspectos. Noutros nem tanto. No Estado da Educação 2022 sinalizámos um problema que é o facto de os nossos alunos serem muito bons a reproduzir aquilo que lhes é dito ou que vêem no PowerPoint, mas nem tanto ao nível do pensamento crítico da resolução de problemas. Não estamos a fazer um bom trabalho. Os nossos alunos estão a concluir o secundário, mas com que qualidade? Sabem resolver problemas? Em relação aos currículos, esse é assunto que em Portugal nunca se pode falar muito, porque as pessoas dizem logo: ‘já estão a mudar tudo’. Mas muda tudo muito pouco. Temos currículos enciclopédicos, que não fazem sentido, que estão feitos à medida das sebentas universitárias, sobretudo nos cursos científico-humanísticos. Um aluno do curso científico-humanístico comparado com um aluno do ensino profissional, sob muitos pontos de vista, é uma pessoa muito perdida no mundo. Pode saber muito de matemática e de física, mas no resto não vê nada. E o aluno do curso profissional tem, por vezes, um discurso absolutamente inacreditável, com uma visão do mundo claramente destacada. Temos preconceitos em relação a tudo o que é manual e concreto. A nossa relação com o conhecimento, tende a ser muito abstrata. Temos de introduzir um equilíbrio entre os cursos profissionais e os científico-humanísticos. Só para dar um exemplo, os alunos do curso profissional terminam-no com uma prova de aptidão profissional, na qual têm de demonstrar competências para mobilizar, integrar e utilizar informação. Os alunos dos cursos científico-humanisticos só têm de fazer os exames para ingressar na universidade. É a tal coisa do corredor. Porque não os alunos dos cursos científico humanísticos prestarem uma prova de aptidão científica-humanística?
Como se poderá combater a falta de professores?
O Governo tem feito um esforço significativo, dentro das suas possibilidades. A curto prazo, não temos muito mais alternativas que não seja recrutar docentes junto de pessoas licenciadas que tenham a competência científica para poder leccionar. Mas isto não pode ser feito de qualquer maneira. O Ministério da Educação tem de assegurar a formação pedagógica, porque não basta saber de matemática. O conhecimento pedagógico é aquele que permite compreender o que é aprender, o que é ensinar, o que é avaliar e, acima de tudo, como é que vamos organizar o ambiente dentro das salas de aula, para que os alunos aprendam.
O plano de recuperação das aprendizagens dos alunos não terá resultado. O que falhou?
Tenho de louvar o esforço do Governo, mas o que me parece é que o plano pecou por excesso. Temos de ser muito criteriosos no foco, porque isso vai permitir que os esforços se concentrem naquilo que é mais fundamental. Esse esforço terá ficado um pouco aquém. Tivemos umas 15 ou 16 medidas e isso dispersou muito e torna- -se extraordinariamente difícil o acompanhamento dessas medidas. Focaria muito mais nas primeiras idades e seria muito selectivo até aos 15 anos. É na primeira infância que temos de focar a aprendizagem da língua, leitura e escrita, porque se eles não aprendem a ler no primeiro ano, depois no segundo não aprendem as matérias. Não tenho dúvidas que as crianças mais prejudicadas foram as crianças dos 1.º e 2.º ciclos.