José Henriques Vareda desapareceu há 30 anos, mas sobreviveu-lhe um relevante legado, na advocacia, na luta antifascista, também na cultura e no associativo. O JORNAL DE LEIRIA partilha hoje o testemunho de quem privou com esta personalidade incontornável, que nasceu na Marinha Grande e se notabilizou por todo o País.
José Henriques Vareda nasceu a 24 de Fevereiro de 1927 , no seio de uma família humilde e trabalhadora. O seu pai era ferrador de profissão. Foi também na Marinha Grande que José Henriques Vareda fez o ensino primário e também cursou na escola industrial. E foi já a trabalhar, como empregado de escritório, que completou o curso na Faculdade de Direito de Coimbra, aos 27 anos. Uma vez licenciado, Vareda dedicou-se à advocacia, e em especial ao Direito Comercial, com um desempenho que lhe valeu uma enorme reputação profissional a nível nacional e, marcadamente, na região de Leiria, onde tinha escritório. Por esta sua casa, que se transformou num autêntico centro de estágios, passaram, de resto, inúmeros jovens advogados da região, à época em início de carreira.
Entre esses jovens estava Victor Faria, que não esquece as várias dimensões de José Henriques Vareda. Foi durante os tumultuosos tempos de PREC que Victor Faria assistiu ao pulso e à motivação do Dr. Vareda, a quem gentes ligadas aos movimentos de extrema esquerda tinham tomado de assalto o escritório, destruindo quase por completo os muitos processos que o advogado tinha em mãos. “Estive no escritório dele nessa face complicada, em que íamos para as diligências com partes de documentos que tinham sobrado”, recorda Víctor Faria. E foi por essa altura que “se estabeleceu uma proximidade muito grande entre nós”, salienta o antigo estagiário. “Ele tinha o escritório mais concorrido. Tinha mais de metade dos clientes da zona de Leiria”, salienta Vítor Faria, apontando o seu valor especialmente no que dizia respeito ao Direito Comercial.
Víctor Faria recorda também o Dr. Vareda como “um homem muito solidário”, que trabalhava mais para os outros do que para ele”. “Nunca conheci ninguém tão solidário e preocupado com os outros”, confidencia. Além do Direito, José Henriques Vareda foi também um senhor da cultura, realça o antigo estagiário. Além de ter criado o jornal O Correio, na Marinha Grande, o advogado foi também responsável pela criação da galeria de arte Diedro, em Leiria. E mais uma vez se manifestava aqui a sua “profunda humanidade”, sublinha Víctor Faria. “Além de ter sido o patrono de grande parte dos jovens advogados de Leiria, o Dr. Vareda incentivava todos os jovens artistas a expor, tinha um enorme respeito pelos criadores”, relata ainda o advogado.
Pelos valores da democracia
Na biografia escrita pela professora Helena Pato, dedicada a Antifascistas da Resistência, a autora descreve o Dr. Vareda como “uma prestigiada personalidade da oposição democrática ao regime fascista”. “Durante a ditadura, sempre respondeu aos apelos de apoio jurídico que lhe chegavam da oposição democrática. Defensor da verdade e da justiça, foi o último causídico a intervir num julgamento no Tribunal Plenário em defesa de um preso político (e defendeu muitos)”, aponta Helena Pato.
Preso por três vezes, “integrou sem desfalecimentos todos os movimentos de cariz antifascista em luta pela liberdade”, lembra a autora, que passa a especificar: “pertenceu ao MUD Juvenil, ao Movimento Nacional Democrático, à CDE, ao MOD e ao MDP/CDE. Activo participante das campanhas presidências de Norton de Matos e Humberto Delgado foi igualmente um dos principais organizadores do Congresso de Aveiro em 1969. Foi ainda um dos principais obreiros da plataforma unitária da CEUD/CDE que em 1969 passou à história como Plataforma de S. Pedro de Moel”. Helena Pato recorda que, em Junho de 1969, em S. Pedro de Moel, representantes distritais dos vários sectores da oposição democrática, do continente e ilhas, reuniram-se em S. Pedro de Moel e aprovaram uma Plataforma de Acção Comum, onde formularam princípios e reivindicações essenciais da oposição nos vários planos da actividade política, social e cultural. A oposição ali reunida decidiu, igualmente, participar no acto eleitoral seguinte, apresentando candidaturas em todos os círculos sendo para tal constituída uma comissão coordenadora das actividades eleitorais. José Henriques Vareda viria a ser candidato a deputado pelas listas da CDE em 1969 e 1973.
Helena Pato escreve que o advogado viveu a aurora da liberdade em 1974 ao lado dos seus conterrâneos. “Recusou diversos cargos políticos para que foi convidado, optando por continuar as suas tarefas pelo desenvolvimento da sua terra e da sua região”. Além de ter sido vereador da Cultura na Câmara Municipal da Marinha Grande, em 1976 e 1977, o advogado foi também um dos mais destacados deputados na Assembleia Municipal da Marinha Grande, desde 1986 até à sua morte. E foi também na Marinha Grande que “desempenhou um papel de grande relevo no devotamento à cultura e ao associativismo”, salienta a autora.
É sobre o homem da democracia, e também sobre o homem empreendedor e mobilizador que fala Telmo Ferraz ao JORNAL DE LEIRIA. O empresário natural da Marinha Grande explica que foi pelo desafio lançado pelo advogado que aceitou integrar a direcção do Sport Operário Marinhense. Desses tempos, recorda o Dr. Vareda como alguém “empreendedor por natureza”. Um homem que, quando tinha um sonho, não só acreditava na sua concretização como levava outros a acreditar também. E essas suas ideias, até as que pareciam à partida mais irreais, eram de facto realizadas, explica Telmo Ferraz, que enfatiza o espírito “cativante e mobilizador” do advogado.
O empresário lembra ainda o “democrata por excelência”, primeiro mais ligado ao Partido Comunista, depois mais crítico em relação a algumas ideias centralizadas do PCP, mas que nunca deixou de pautar pelos valores da democracia.
O legado gigante nas artes e no desporto
Helena Pato recorda que Dr. Vareda foi diversas vezes dirigente do Sport Operário Marinhense, tendo assumido a presidência daquela associação desde 1982 até 1989. José Henriques Vareda foi de resto “o principal obreiro da sua profunda remodelação transformando-o num espaço cultural e de convívio de reputação nacional”, escreve a professora. “O seu dinamismo permitiu a criação de magníficas instalações, recuperadas a partir de uma velha fábrica de vidro, que são unanimemente consideradas uma excelente recuperação do património cultural”, prossegue a autora da biografia. “A sua acção naquele clube deu aso a uma nova fase na vida cultural marinhense já que é especialmente no espaço deste clube que a Marinha Grande e as suas diversas instituições públicas e privadas levam a cabo as mais importantes iniciativas na área cultural, económica, recreativa e de formação escolar”, sublinha a professora.Mercê da iniciativa e da actividade de José Vareda, existe aí, em pleno funcionamento, uma escola de música, uma escola de ballet, grupo de teatro, núcleos desportivos, designadamente xadrez, judo, ginástica e voleibol, secção de danças e galeria de arte, especifica Helena Pato.
A professora escreve ainda que o Dr. Vareda “foi um dos principais incentivadores dos cursos de línguas no Sport Operário Marinhense que muito dinamizaram a formação escolar de várias gerações de operários. Foi também um dos principais activistas da criação e dinamização da Biblioteca do Sport Operário Marinhense que muito contribuiu para o gosto cultural de sucessivas gerações de marinhenses”. Cristina Carapinha, actual presidente do Sport Operário Marinhense reconhece também que o Dr. Vareda foi o principal mentor da profunda remodelação do clube, ao nível das infra-estruturas e das valências que foi multiplicando, transformando-o “num espaço cultural e de convívio de reputação nacional”.
“A sua acção deu aso a uma nova fase na vida cultural marinhense já que é especialmente no espaço deste clube que a Marinha Grande e as suas diversas instituições públicas e privadas levam a cabo as mais importantes iniciativas na área cultural, económica, recreativa e de formação escolar”, expõe Cristina Carapinha. Em 1989, “morria o sonhador, mas os sonhos continuaram” e os anos que se seguiram à abertura da nova sede foram marcados por uma enorme dinâmica.
“Em 1990 chegou finalmente a justa homenagem por parte do Governo Central, ao atribuir ao Operário o estatuto de Instituição de Utilidade Pública. Daí até aos nossos dias, o Operário tem continuado a ser a grande referência cultural da Marinha Grande, mantendo em funcionamento um conjunto de actividades, das quais será justo destacar a Escola de Arte e Movimento que é composta pelos departamentos de dança, movimento e música, o grupo de teatro, a secção de voleibol e o núcleo de xadrez”, salienta a presidente. Na sua biografia sobre o Dr. Vareda, Helena Pato menciona ainda que, entre outras responsabilidades, o advogado foi um dos fundadores do Clube de Campismo “Unidos” na Marinha Grande; foi dirigente do Clube de Pesca da Marinha Grande; foi um dos principais dinamizadores do Conselho das Colectividades da Marinha Grande; foi presidente do extinto Grupo de Teatro Miguel Leitão, de Leiria; fundou e dirigiu os jornais Linha Geral, de Leiria, e O Correio, da Marinha Grande. A Marinha Grande atribuiu-lhe, ainda em vida, a Medalha de Ouro, e já depois de ter falecido, a 16 de Março de 1989, o Estado Português atribuiu-lhe o grau de Grande Oficial da Ordem da Liberdade (1990).