A opinião pública valoriza as queixas dos profissionais da Cultura, que estão entre os mais prejudicados pela pandemia?
É difícil responder, porque acho que as pessoas não valorizam e não ouvem a voz dos profissionais da Cultura. E por isso é que é difícil, porque é uma pergunta um bocadinho triste de responder. Por um lado, Portugal, como país, carece de resposta a questões estruturais que muitas pessoas sentem no seu dia a dia. Algo tão brutal como esta pandemia afecta a vida das pessoas de forma profunda: não ter dinheiro para pagar a renda, não ter dinheiro para ir ao supermercado, estar na iminência de perder o emprego e não saber o que fazer. Depois, há uma questão de fundo: para muitas pessoas, mesmo muitas, a Cultura não é um bem essencial. E nota-se isto, também, do ponto de vista das políticas públicas, porque, quando se fazem os confinamentos e os desconfinamentos, nós vemos como a Cultura é dos primeiros sectores a fechar e dos últimos a abrir.
Podia ter sido diferente?
Sim, podia. Faltou ao Ministério da Cultura robustez e visão. Entretanto, com este segundo confinamento, houve a esperança de que as medidas de emergência propostas pelo Ministério pudessem dar resposta, mas a maioria das medidas, na verdade, não chegou. A pandemia revelou toda a fragilidade de um sector inteiro que emprega milhares de pessoas.
Há mesmo casos de fome?
Sim, claro. E vamos a ver: já quando foi a crise anterior, que iniciou em termos globais em 2008, houve várias pessoas na área da Cultura, precisamente pela precariedade laboral em que trabalham, que regressaram a casa dos pais, aos 30 e tal, 40 e tal anos. Isto é dramático. E agora estamos a viver o mesmo tipo de situação. Não é só fome, é perder a casa, ter de voltar a dividir casa, voltar a casa dos pais. Como a quebra de actividade está muito próxima dos 100 por cento, obviamente o impacto é profundo e de abrangência máxima.
A paralisação quase total do sector era inevitável?
Compreendo que, no início, as medidas de confinamento total e de paragem total fossem inevitáveis. Actuou-se da forma mais preventiva possível. A partir de uma certa altura, quando se começa a conhecer melhor este coronavírus, os seus efeitos, a sua forma de propagação, penso que era evitável um fecho tão radical de algumas das actividades culturais. Há medidas complementares que podem ser tomadas.
Neste cenário, como é que se programa um festival que tem como premissa interagir com o território e com as comunidades locais?
Estamos mais ou menos a seis meses da próxima edição [do Materiais Diversos] e já percebemos que não sabemos como vai ser do ponto de vista dos factores externos. Pensámos que a nossa opção, e é nisso que estamos a trabalhar, era transformar o que seria um plano B num plano A. Com cada equipa, encontrar soluções para que nenhum dos projectos fosse cancelado. E, sobretudo, que não fosse alterado, a um mês ou quinze dias, para um formato que deixasse insatisfeitos os artistas, nós e por consequência o público. Portanto, com cada um dos artistas estamos a trabalhar em formatos, inclusive presenciais, na expectativa de que, pese embora possa haver novo confinamento, não será radical e que poderemos concretizar algumas das coisas presencialmente. Estamos a pensar em formatos que permitam que nenhum espectáculo seja cancelado, que as lotações sejam relativamente reduzidas (e os espaços seguros) e que algumas das propostas que seriam presenciais possam passar, por exemplo, a ser áudio ou vídeo. Mas mantendo uma componente presencial que considera a pequena escala de público, uma mobilidade simplificada e algum cuidado naquilo que diz respeito à mobilidade internacional, ou seja, encontrar soluções específicas para os artistas que vêm do estrangeiro.
Já disse numa entrevista que não será o mercado a suportar a Cultura. Porquê?
A Cultura no sentido plural, nas suas mais diversas manifestações, precisa de mais do que o mercado. Só o mercado não garante a existência dessa diversidade de manifestações, porque a maioria ditará aquilo que deve ser programado, que deve ser exibido, que deve ser mostrado, e, portanto, gera-se facilmente uma ditadura de números. Se retirássemos o Estado desta equação, e deixássemos o mercado, só, a funcionar, eu creio que assistiríamos a uma amputação violenta de muitas manifestações culturais de grande qualidade e de grande relevância. Mais ainda hoje, que a diversidade é tão discutida, posta em causa e até parece causar tanto medo. Por outro lado, nós somos muito poucos para que todo o sector cultural viva apenas do mercado português. Não é o mercado português, com o estilo de vida das nossas famílias, as condições estruturais que lhes faltam, que vai suprir a necessidade de suporte financeiro para o sector da Cultura. Duvido que seja possível.
Em Portugal, a Cultura dá mais à Economia do que a Economia dá à Cultura?
A Cultura é uma área da Economia e ao mesmo tempo muito mais do que a Economia. O valor simbólico da Cultura é aquilo que de facto importa e extrapola obviamente o campo da Economia. Há um valor incalculável na experiência cultural para cada indivíduo e para nós como sociedade. E para a reconstituição do colectivo. Nós vivemos há muitos anos assolados por uma ideologia individualista que fragmenta a sociedade, que nos esvazia como sociedade e como indivíduos e que gera, do meu ponto de vista, infelicidade, porque gera divisão, gera competição.
E a Cultura é um antídoto?
A Cultura, declinada no plural, as culturas, a Cultura abrangendo as várias manifestações culturais, é um antídoto, sem dúvida. Pela existência dessa diversidade, mas [também] pela capacidade que a prática cultural tem de reconstituir as nossas relações, uns com os outros. As relações entre aquilo que é diferente entre si. Acredito muito na capacidade que as práticas culturais têm de pôr em relação, de forma concreta ou imaginada, aspectos diferentes da vida, sensibilidades diferentes, ideologias diferentes. E assim contribuir para o território, porque um território esvaziado de comunidades não é um território por inteiro.
Pela sua experiência, e já que estamos a falar de território, o que é que os autarcas, normalmente, querem da Cultura?
Depende dos autarcas. Já fui mais crítica dos autarcas e, ainda assim, acho que sou bastante. É-lhes difícil, muitas vezes, sentir que têm uma visão eslarecida o suficiente para planear estrategicamente uma acção cultural para os territórios que representam. Muitos decisores políticos, e é aí que sou muito crítica, querem resultados rápidos, querem resultados que respondam à duração dos seus mandatos. No fundo, querem deixar obra feita na área da Cultura. E como é que isto se faz? Gerando números. Quando não se gera obra edificada, gerando números. E, portanto, em que é que apostam? Grandes eventos, coisas com muita visibilidade, escolhas já validadas e mediatizadas. E isto não permite fazer um trabalho de fundo, porque estamos sempre a esgotar os meios. Porque quem tem mais dinheiro paga a figura mais mediática. E a cidade ao lado se tiver mais dinheiro paga o maior festival. E este tipo de competição não leva a lado nenhum. Esvazia. E ao fim de um mandato, dois mandatos, três mandatos, podemos não ter construído nada.
As políticas culturais estão condicionadas por essa procura de atrair públicos e consensos?
Sim, porque a Cultura nos últimos anos em particular tem respondido muitas vezes a um incremento da capacidade atractiva dos territórios. E portanto as cidades competem entre si, as regiões competem entre si, também, através da oferta cultural que proporcionam. Agora, é preciso pensar noutra coisa diferente da oferta cultural. Há uma expressão que eu gosto muito, que é do Luís Sousa Ferreira, que é a Cultura do dia a dia. O que é preciso é investir na Cultura do dia a dia porque a Cultura do dia a dia é que cria raízes. A Cultura do dia a dia chega a muito mais pessoas. O investimento multiplica-se. O investimento torna-se transgeracional, as várias gerações podem partilhar dessa distenção temporal das actividades de fundo na área da Cultura. E é aí que é preciso investir. Colaborações entre as instituições culturais e as instituições educativas, por exemplo, levando a um investimento nas novas gerações, a um conhecimento, a um amor pelo património, pelas artes, mas, também, revitalização do próprio espaço público, que não pode ser um espaço só de passagem, mas tem de ser um espaço para habitar e para ususfruir, porque se as pessoas habitarem vão cuidar, e se vão cuidar, vão construir em conjunto, vão reconstruir esse espaço público.
Um dos efeitos da pandemia foi precisamente que praticamente toda a actividade cultural que ainda persiste tem o suporte dos municípios. Dizendo de outra maneira, se não fossem os municípios, se calhar, estava mesmo tudo parado. Isso é bom ou é mau?
É bom no imediato porque alguém tinha de assumir esse papel. E os municípios cumpriram a sua obrigação. Mas, de facto, também pode ser pernicioso. Esta dependência quase exclusiva de uma única fonte de financiamento. Aliás, nos últimos anos tem havido uma tendência para a municipalização da Cultura, de muitas formas diferentes. Isto é pernicioso porque obviamente deixa os agentes muito mais reféns de uma relação em particular, de uma determinada relação de poder e isto pode criar um desequilíbrio que ou lhes retira independência na sua actuação ou então os relega para um isolamento, porque podem de facto entrar em conflito e serem relegados para fora de campo.
É também um sintoma de que outros não estão a cumprir o papel que deviam cumprir?
Do ponto de vista do eu consumidor, todos juntos somos sector privado. Mas há de facto outros agentes locais. O sector empresarial tem também uma responsabilidade social a este nível, responsabilidade social que se estende à necessidade vital de Cultura na vida das comunidades. Se houver esta percepção da parte do sector empresarial, são os territórios em primeira mão que terão a ganhar e consequentemente as próprias empresas terão a ganhar, não apenas os agentes culturais. Outra vez aqui a ideia de trabalho de fundo. E trabalho de fundo pressupõe colaboração entre diferentes actores. A capacidade atractiva dos territórios não se pode medir só pelos grandes eventos, pelas efemérides, que congregam milhares de pessoas. Um trabalho de fundo gera um tipo de atractividade muitíssimo mais interessante, que é as pessoas fixarem-se nos territórios. E como os territórios em Portugal precisam disto. Não só os territórios do interior precisam, as grandes cidades precisam também de sentir menos pressão sobre a chegada consecutiva de novas pessoas para se fixar. Nos próximos anos joga-se aqui uma equação muito interessante que é qual é o papel que as cidades de pequena e média dimensão querem desempenhar no futuro dos países. E pensando na proposta de Leiria, na sua candidatura a Capital Europeia da Cultura, temos 26 cidades e vilas que se reúnem para pensar nisto em conjunto.
Fotografia nesta entrevista: Materiais Diversos / Luísa Baeta