“Lutar sempre, vencer às vezes, desistir nunca”, foi com estas palavras que Ana Sofia Costa, a caminho de Tóquio, se despediu do treinador. Ia “nervosa”, mas “muito motivada” e prometeu “dar o melhor”, perfeitamente ciente de que estava “a caminho do mais importante evento desportivo do planeta”.
David Henriques, técnico da desportista e professor no Centro de Apoio a Deficientes Profundos João Paulo II, em Fátima, tem “pena” de não seguir na comitiva, mas sabe que a jovem de 24 anos está muito bem entregue a Celina Gameiro, auxiliar na instituição, que a acompanha para todo o lado e ajuda nos aspectos mais práticos, dentro e fora da competição.
É que Ana Sofia nasceu com uma distrofia neuromuscular que lhe retirou a capacidade de andar no final da infância. Contudo, como não é menina para se resignar, encontrou no boccia uma modalidade que a preenche.
Descobriu-a aos 14 anos, quando entrou para o Centro João Paulo II. Gostou, quis mais e foi sempre “em crescendo” até chegar aos Jogos Paralímpicos, com “muito trabalho, esforço e sacrifício”.
À semelhança da petanca, o objectivo do boccia é colocar as bolas de cor – seis azuis frente a seis vermelhas – o mais perto possível de uma bola alvo, branca. Ana Sofia precisa de “montar a estratégia, ler a jogada e delinear o que vai fazer a seguir”.
O número
4
Celina, depois, tem um papel decisivo no resultado, pois é ela que coloca a bola na calha e o dispositivo no local exacto indicado pela atleta, obrigatoriamente de costas para o recinto de jogo.
“É uma parceira para 25 horas por dia. Tem de haver uma disponibilidade muito grande por parte da Celina, que também tem de abdicar de muita coisa a nível pessoal. Não só dentro de jogo tem de haver uma cumplicidade enorme – e elas falam através do olhar – como depois há a parte diária da higiene, da alimentação e do descanso. Se não houver cumplicidade, nada disto resulta.”
Está visto que resulta, mesmo que tal obrigue a um esforço suplementar de todos. “Com objectivos desta dimensão tem de se trabalhar bastante. Treinamos duas vezes por dia, de manhã e de tarde, e em estágios é o dia inteiro”, explica David Henriques.
Motivada por natureza, Ana Sofia quer sempre mais e nunca está satisfeita. “Se o treino tem duas horas ela quer duas horas e meia.”
Curiosamente, a jovem natural da freguesia de Maceira, Leiria, apontava para Paris’2024, mas de repente o sonho tornou-se na mais bela das realidades. O Open Mundial de boccia, que decorreu na Póvoa de Varzim em finais de 2019, era a última oportunidade de antecipar o sonho.
Nessa competição aconteceu “um milagre”. Apesar de ter o pior ranking entre os dez em competição, o par BC3 de Portugal, composto pela nossa conterrânea, por Avelino Andrade e por José Carlos Macedo, conquistou a medalha de ouro e um lugar em Tóquio. A prova começa a 2 de Setembro.
Nos últimos dias, porém, uma outra notícia veio alegrar a comitiva, pois a rapariga também será uma das 20 a entrar na competição individual, que começa a 28 de Agosto. “Não estava previsto. É uma ascensão meteórica e um orgulho enorme”, enfatiza o treinador.
O trabalho de uma década de David Henriques já tinha dado frutos, como as medalhas nos Jogos Europeus da Juventude, mas Jogos Paralímpicos são outra loiça.
Feliz, Ana Sofia agradece “a todos” que a apoiaram, em especial ao “mister” e “à grande parceira de competição”.
Para o treinador, porém, o sonho não acaba aqui. “A participação já é uma vitória e não podemos exigir que tragam de lá uma medalha.
Apesar de ser possível, não é expectável, e fazer com que os adversários tenham de dar tudo para eliminar Portugal já é um bom objectivo. Agora, não dou a derrota por garantida frente a nenhum jogador do mundo.”
Improvável maratona
O processo foi “complexo” e a boa nova de que tinha lugar surgiu apenas nos últimos dias. “Pistas fechadas, parques e jardins interditos, não obstante as excepções para os atletas, e falta de provas para fazer marca” condicionaram o percurso da atleta, mas às 10:30 horas portuguesas do dia 4 de Setembro, Odete Fiúza entrará em acção na maratona, a “mais mítica” das provas olímpicas.
“É uma tremenda emoção, um profundo orgulho e uma grande felicidade estar, pela sétima vez, nos Jogos Paralímpicos”, sublinha a atleta natural de Quinta dos Frades, na freguesia de Santa Eufémia, Leiria.
Treinada por João Campos e a participar na classe T12, destinada a pessoas com deficiência visual, tem noção de que esta aventura, a primeira paralímpica na distância mais longa é “totalmente inesperada” para quem, há 28 anos, no início da carreira, nem sequer nutria simpatia pela corrida. “Na altura diria que não era para mim.”
“Sofre-se muito e é preciso aprender a gostar”, mas a corrida, à qual aderiu quando se mudou para Lisboa para frequentar o primeiro ano de Direito, é, hoje, de tal forma importante que já não admite passar sem ela.
“Tornou-me uma pessoa mais feliz, de bem com a vida e recompensada. É um excelente veículo de inclusão, uma vez que praticamos no mesmo local de qualquer outra pessoa.”
É sempre assim. Após um dia passado sob a pele de jurista, calça as sapatilhas, veste as licras e atira-se à pista ou ao alcatrão. É aí que está a grande dificuldade: “conciliar o atletismo com a minha carreira profissional e coordenar o trabalho com a disponibilidade dos guias”, absolutamente fundamentais na carreira desta atleta.
[LER_MAIS]Para que tudo funcione, é necessário que exista, por isso, “empatia, cumplicidade, compreensão e amizade”, salienta a antiga recordista mundial dos 5.000 metros, marca obtida quando venceu os Jogos Mundiais de Madrid, em 1998, “um dos melhores momentos” da sua carreira.
Nesta longa carreira, a advogada de 48 anos também soma perto duas dezenas de medalhas em Europeus e Mundiais. A verdade, porém, é que nunca chegou a um pódio nos Jogos Paralímpicos.
Tudo começou em Atlanta’1996, mas foi em Sydney’2000 que ficou mais perto, tendo sido quarta nos 5.000 metros e quinta nos 1.500. “Todos sonhamos, mas considero que fiz o que estava ao meu alcance.”
Naturalmente, com uma carreira tão longa, “nem tudo fora sempre rosas, mas os problemas servem para crescer e fortalecer laços”. “Devo muito aos atletas-guias que ao longo destes anos trabalharam comigo, abdicando muitas vezes das suas próprias vidas”, agradece Odete Fiúza, designadamente a Vera Nunes e António Sousa, que a vão acompanhar nesta longa aventura.