Depois do consistório, onde foi feito cardeal, acaba de ser escolhido pelo Papa para o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. Como vê mais esta escolha do Papa Francisco?
Era uma pergunta para pôr ao Papa (risos). Já a nomeação para cardeal foi surpresa para mim. Não sei os motivos pelos quais o Papa me escolheu para ser seu colaborador próximo nas questões do governo da Igreja. Não fiz a escolha para este dicastério nem fui ouvido sobre o meu gosto.
Mas é uma área que lhe interessa, nomeadamente as questões da família.
É uma área onde me sinto bastante à vontade. Porventura, o Papa sabia isso, pelas conversas que tive com ele sobre a questão da família, sobre a exortação apostólica sobre a alegria do amor e a propósito da situação dos fiéis que vivem em nova união. Talvez tenha sido por isso que me escolheu para este dicastério, que é uma espécie de ministério do governo da Igreja. Este é sobre a vida e a missão dos leigos e da família na Igreja e no mundo, sobre o cuidado pastoral dos jovens e a promoção e defesa da vida. É um campo muito vasto.
Já tem ideia de qual será a sua agenda neste dicastério?
Ainda não. Certamente serei chamado a Roma para me atribuírem tarefas específicas, porque é impossível abarcar todas as áreas. Isto realiza- -se em diálogo, com as Conferências Episcopais e com as igrejas locais, mas também através de congressos, de estudos específicos ou da realização de encontros internacionais, como as jornadas mundiais da juventude ou o encontro mundial das famílias.
Teve já a oportunidade de falar com o Papa Francisco sobre a nomeação para cardeal? Consegue perceber as razões da sua escolha?
Quando fui receber as insígnias de cardeal e cumprimentei o Papa, disse- -lhe: "Santo Padre, Nossa Senhora de Fátima e os Pastorinhos agradecem- -lhe o dom que quis fazer a Fátima". E ele, que tem sempre resposta pronta, perguntou-me se eu era o representante deles. Ri-me. Disse-me [que a nomeação para cardeal] era uma carícia de Nossa Senhora para comigo. Penso que a nomeação terá a ver com a projecção de Fátima, que foi o motivo pelo qual me encontrei com ele em audiências privadas. Além da preparação da viagem a Fátima, falávamos sobre a vida da Igreja. Porventura, terá visto em mim um bom parceiro, alguém que está em sintonia com ele neste processo de reforma da Igreja, que ele iniciou e que quer levar para a frente.
Houve quem considerasse a sua nomeação como "uma reprimenda" aos sectores mais conservadores da Igreja em Portugal.
Não acredito nisso. O Papa não segue esses critérios. Encontrou aqui um interlocutor e um apoiante para a reforma da Igreja e, porventura, quis reconhecer a projecção mundial que Fátima tem. Não mais do que isso.
Afirmou, durante a recente peregrinação internacional ao Santuário de Fátima, que as reformas na Igreja encontraram sempre oposição. Em que difere hoje essa oposição?
Os que hoje estão a fazer oposição ao Papa Francisco, são da mesma linha daqueles que nunca aceitaram o Concílio Vaticano II. O que tem de mais específico a oposição que hoje é feita prende-se, em primeiro lugar, com a globalização. Antigamente, as oposições eram restritas aos lugares onde ocorriam. Hoje, num instante, todo o mundo fica a par disso. Depois, é feita por um grupo ultraconservador que tem por detrás motivos políticos e económicos. O Papa é, neste momento, uma figura de referência mundial. Talvez a única referência mundial que é aceite por crentes e não crentes, que põe o dedo nas feridas do mundo moderno, concretamente nas desigualdades gritantes, num certo capitalismo selvagem, na questão do fenómeno migratório e da resposta solidária que a comunidade internacional lhe deve dar. Isso incomoda vários países, grupos e lobbies económicos, que se têm aproveitado da situação de oposição ao Papa desencadeada pelo antigo Núncio para uma campanha organizada, não apenas contra a Igreja, mas contra a pessoa deste Papa, chegando ao cúmulo de pedir a sua demissão.
Aquando da sua nomeação para cardeal, apontou alguns temas “apaixonantes”. Além das questões da família e dos jovens, referiu a “purificação da Igreja”. Em que sentido defende essa purificação?
A reforma que o Papa quer empreender e para a qual entende ter sido mandatado pelo colégio [LER_MAIS] dos cardeais, exige uma purificação de atitudes e de relacionamento, quer dentro da Igreja quer na relação da Igreja com o mundo. A primeira coisa a defender é a conversão ao Evangelho. Tornar a Igreja mais evangélica, para que não se deixe contaminar por aquilo que o Papa chama o mundanismo, ou seja, por critérios meramente mundanos.
O que se pretende com uma Igreja mais evangélica?
Quer-se uma Igreja mais acolhedora, mais próxima das pessoas e mais misericordiosa. Uma Igreja mais em saída, sem se considerar auto-referencial e auto-suficiente, que vai mais ao encontro das periferias, como as novas formas de pobreza, os mais necessitados, os mais vulneráveis e os mais afastados. Uma Igreja que deita abaixo os muros de separação e que procura estabelecer pontes e encontros com todos. A Igreja precisa também de uma purificação de atitudes e de comportamentos, que são corrupção, praticados por um número notável de clérigos, como é a questão dos abusos sexuais de menores e de pessoas frágeis. São comportamentos escandalosos. É uma chaga social que entrou na Igreja, onde isso tem uma relevância muito maior. É algo de ignóbil e de vergonhoso ver quem deveria cuidar de levar os menores e os mais frágeis até Deus cometer crime de abuso.
Além do crime, a forma com a Igreja lidou com a situação, abafando alguns casos, também merece muitas críticas.
A Igreja não deu o melhor dos exemplos com a chamada cultura do encobrimento. Em vez de se dar atenção às vítimas e às feridas que isso deixa, procurou-se remediar de outro modo, para salvaguardar a imagem da instituição. E isso é também uma forma de corrupção. É escandaloso e é também pecado. O Papa tem pedido perdão e tem iniciado uma reforma no sentido de pôr termo, de uma vez para sempre, a esta chaga.
Esta situação esta também a abrir feridas entre a Igreja e os fiéis.
A primeira reacção é de dor, de humilhação e de indignação. Apanhámos um choque tremendo ao descobrir que isto existe dentro da Igreja. É a dor das vítimas que nos toca. É a humilhação que sentimos por esta vergonha. É uma espécie de catástrofe de ordem moral e espiritual dentro da Igreja. Não podemos admirar-nos que haja indignação. Isso é saudável. Significa que há uma reacção da sociedade. Por outro lado, podemos ver isto como uma oportunidade para uma busca de maior verdade e transparência dentro da Igreja e uma nova ocasião de renovação. Uns afastaram- se devido ao escândalo. Outros aproveitaram a situação para dizer que é hora de lançar mãos em ordem a uma renovação da Igreja, de autenticidade. A Igreja até poderá diminuir um pouco no número de membros, mas acredito que crescerá de novo, com um rosto mais autêntico e mais evangélico.
Publicou recentemente uma nota pastoral, intitulada O Senhor está perto de quem tem o coração ferido, que admite que os católicos em segunda união possam aceder aos Sacramentos, após um “caminho de acompanhamento e discernimento”. O que implica esse caminho?
É uma situação real, à qual a Igreja não pode fechar os olhos. No Evangelho é claro que o matrimónio baseia-se no amor fiel, duradouro, de entrega total e para sempre. E, nesse sentido, é indissolúvel. Mas, por outro lado, assistimos também à realidade do fracasso de muitos matrimónios de gente crente, de pessoas que querem continuar a viver a sua fé, numa boa relação com Deus e com a Igreja. E, por isso, são membros desta família. Quando um filho se desvia, não deixa de pertencer à família, não é excomungado como se pensou no passado. O Papa Francisco abriu um caminho para uma maior integração dessas pessoas na comunidade cristã. Não se põe em causa o matrimónio fiel e indissolúvel. Por isso, não há umas segundas núpcias sacramentais. Mas há um novo caminho de discernimento, acompanhado por um pastor. Um percurso de exame de consciência, feito pela pessoa, da situação que está a viver. Há situações que não têm retorno, até para o bem da nova família que, entretanto, se constituiu. É um percurso rezado, reflectido, meditado e confrontado com outros, cuja decisão última é da consciência da pessoa. Cada caso é seu caso. Não há uma norma para todos. Feito o percurso, pode chegar-se à admissão aos sacramentos da reconciliação e da comunhão, outrora, vedado a essas pessoas.
Não faria mais sentido que um documento dessa natureza emanasse da Conferência Episcopal, aplicando-se a nível nacional?
Tinha, de facto, um peso e um significado maiores se tivesse vindo da Conferência Episcopal. Alguns bispos, entenderam levaram mais à letra aquilo que o Papa diz nessa exortação, sublinhando que cada bispo é autónomo e dá as orientações para a sua diocese. Mas, na prática, creio que afinamos todos pelo mesmo diapasão.