Leia a primeira parte da entrevista aqui.
Leia a terceira parte da entrevista aqui.
Cada aluno é um caso, mas o modelo actual de ensino permite essa diferenciação?
É um desafio muito grande. Em Portugal temos uma situação que é inédita: todos os jovens com 15 anos estão na escola (e queremos chegar aos 18 anos). Nunca isso aconteceu e significa uma responsabilidade enorme e, sobretudo, a compreensão da própria diversidade. Os estudos e os inquéritos junto de muitos jovens são muito exigentes. Muitos perguntam-se o que estão a fazer na escola e dizem que a escola é uma maçada. Quando um jovem diz isso cabe à sociedade e aos decisores motivá-lo. Não é dizer-lhe que não é. Há muitos anos que sou defensor do ensino profissional e entendo que a diversidade de vias tem de ser garantida. A reforma de Veiga Simão, que não chegou a ser concretizada, propunha três vias: clássica, artística e técnica. Temos que perceber que há essas diferentes vias e que temos que motivar os estudantes e os cidadãos em geral para a aprendizagem e a aprendizagem tanto é importante para o artesão como é para o cientista. Não podemos dizer que o artesão é mais ou menos importante do que o cientista e que o cientista que trabalha em investigação fundamental é mais importante do que aquele que trabalha em investigação aplicada. Todos são importantes. O que temos é que encontrar as condições de motivação e a percepção de que a sociedade tem que se envolver neste acto. Todas as pessoas têm qualquer coisa de positivo, algo em que possamos pegar. O ensino profissional é absolutamente fundamental desde que não crie becos sem saída. Quem escolha a formação profissional pode continuar para a universidade ou para o politécnico ou para uma profissão mais ligada à prática.
Mas, por vezes, empurram-se os alunos considerados mais fracos para esta via de ensino.
Não nos cabe a nós dizer se os alunos são mais ou menos capazes. Cabe-nos garantir a aprendizagem para eles. Obviamente nem todos são Einstein, nem todos são Rosa Ramalho, nem todos são Amália Rodrigues, mas todos têm direito à aprendizagem nas melhores condições. E todos têm as suas capacidades, se não não havia Jogos Paralímpicos. Por isso, falar de igualdade não é só falar de igualdade de oportunidades, é falar de igualdade de oportunidades mais a correcção das desigualdades. Temos que descobrir como é que o jovem que está menos motivado para determinada área ou tarefa vai ser útil, e todos são úteis.
O professor que apresenta um número muito significativo de alunos com má classificação não está a desempenhar bem a sua função. A culpa não é naturalmente do aluno. Há alunos que não estudam?
Os professores têm tempo para descobrir a qualidade inerente a cada aluno?
Essa pergunta obriga-me a referir algo para o qual não há muitas vezes uma grande atenção dos decisores: a avaliação. A avaliação só pode funcionar no caso educativo se abranger três áreas com muita seriedade. A área institucional, como funcionam as escolas e como é garantida a sua liderança. A avaliação dos professores. E a avaliação dos alunos. Sou crítico de uma lógica meramente aritmética dos rankings. Não estou contra que eles existam, mas temos que perceber que, muitas vezes, a melhor escola não é aquela que obtém numericamente aquela classificação. Deve haver avaliações, até para sabermos que os programas foram cumpridos. Agora, a avaliação do aluno não é dizer apenas que é bom ou mau. A avaliação é um elemento para dizer se a educação está ou não a funcionar. O professor que apresenta um número muito significativo de alunos com má classificação não está a desempenhar bem a sua função. A culpa não é naturalmente do aluno. Há alunos que não estudam? Trabalhemos com eles. O sistema finlandês garante, por exemplo, que em determinada altura do ano verifiquem se os objectivos do aluno estão a ser atingidos e pode-se corrigir e reforçar a aprendizagem. Por isso, no caso da Finlândia os resultados têm sido muito bons, porque temos a possibilidade de corrigir no sistema e não através de sistemas de explicações, que é um fenómeno anómalo.
Voltamos à desigualdade pois nem todos têm acesso às explicações.
Isso cria e agrava as desigualdades. O aluno que é filho de um professor tem melhor aproveitamento que o filho de um empregado não qualificado. Veja-se por que razão estes elementos de correcção têm que estar no próprio sistema. É aquilo que eu e o professor Marçal Grilo temos designado como o Serviço Público da Educação, que é a consideração da rede no seu todo. Quando lançámos com sucesso a rede da educação pré-escolar fizemo- lo em termos globais envolvendo a rede pública, a rede social e a rede privada e funcionou bem. Os resultados que temos tido nas avaliações internacionais, no Pisa ou no TIMSS, não aparecem por acaso. Uma medida educativa só tem real eficácia num prazo mínimo de 20 anos. O lançamento da educação pré-escolar nos anos 90 só agora é que está a ter efeitos.
Os currículos muito extensos contribuem para a desmotivação dos alunos?
Não se deveria apostar nas matérias mais importantes? Esta é uma matéria que tem de ser vista com muito cuidado, designadamente com os melhores especialistas. Encontramos pessoas excelentes no plano científico que têm a tentação de sobrecarregar os currículos com tudo o possível e imaginário. Temos de ter muito cuidado com isso. Se nos estamos a preparar para a incerteza vamos ter de cuidar disso que é absolutamente essencial na compreensão de quem somos, mas simultaneamente temos de perceber que perdemos muito conhecimento na informação e que perdemos muita sabedoria no conhecimento. Ou seja, temos que transformar a informação em conhecimento e o conhecimento em sabedoria. Vivemos numa sociedade de informação, mas temos muita dificuldade em gerir essa mesma informação, retirar aquilo que é verdadeiramente útil e necessário. Neste paradigma de educação e formação [LER_MAIS] ao longo davida temos que perceber que quem termina uma licenciatura só tem licença para aprender. Temos que garantir a aprendizagem logo quando a mãe está a gerar o seu filho. E aí há uma grande desigualdade. Temos que corrigir isso, garantindo a igualdade e permitindo que haja uma emancipação para todos. Por isso, quando o jovem diz que a escola é uma grande maçada, nós temos de lhe perguntar como é que a escola não é uma maçada, porque a aprendizagem não é uma maçada. No tempo dos currículos alternativos visitei uma escola em Peniche e lembro-me da alegria dos jovens que tinham sido iniciados nas artes da pescaria. Eram jovens que tinham insucesso escolar e que agora estavam a ter sucesso. Numa escola em Algés, os jovens passaram a ter sucesso em português e em matemática, porque tinham sucesso no funaná, no ensino artístico. Não vamos motivar por segmentos, vamos motivar para a aprendizagem e quem diz que a escola é uma maçada não está a dizer que o português ou a matemática são uma maçada. Aquele jovem que tinha sucesso no funaná naturalmente sentiu- se na obrigação de se empenhar mais nas outras matérias até porque no português ou no crioulo poderia perceber melhor a relação entre a palavra e o gesto e a música.
A valorização da nota ainda está muito assente na nossa cultura, apesar de hoje muitos empregadores defenderem que, por vezes, é melhor alunos medianos, mas com outras competências, como flexibilidade, saber trabalhar em equipa e ter humildade para aprender todos os dias.
Isso existe porque vimos de uma sociedade que tinha níveis de qualificação baixos e hoje as coisas estão a mudar radicalmente. Hoje mais importante que a nota é aquilo que cada um sabe e pode fazer. Como professor gosto muito de dar boas notas, mas a minha preocupação é garantir que quem melhor atinge os objectivos possa depois prosseguir da melhor maneira esses objectivos no dia-a-dia. Não se pense que a classificação não é importante. É. Temos que cuidar dos nossos talentos. A Fundação Calouste Gulbenkian há muitos anos que tem a experiência de apoiar os melhores, mas apoiar os melhores não é deixar ninguém para trás. É incentivar todos para a qualidade. Há três questões fundamentais que na sociedade portuguesa têm que ser garantidas: o combate da mediocridade, a ideia de que somos periferia e que estamos condenados a sê-lo e que o improviso é bom. O improviso não é bom e a História portuguesa demonstra que nós fomos sempre melhores quando planeámos as coisas.
A pressão para conseguir boas notas leva alguns alunos ao burnout. Há quem critique esta pressão, mas se ela acabar ou a aliviarmos, os alunos não poderão ficar menos bem preparados para o mercado de trabalho?
Temos que trabalhar com o aluno na medida das suas capacidades. Este trabalho é de facto exigente e é por isso que a promoção do talento e o combate da mediocridade é algo que obriga a que tenhamos uma relação natural com o jovem para que sinta prazer na aprendizagem. Não é preciso ser o melhor aluno. Tenho grandes resistências relativamente às crianças prodígio. Há de facto situações excepcionais, mas são tão excepcionais que prefiro dizer que devemos encarar a criança no seu desenvolvimento sem pressionar. O bom educador é aquele que permite o equilíbrio entre o conhecimento, a aprendizagem, o prazer e depois a compreensão do ócio. Scholé em grego é o lugar do ócio, este ócio significa disponibilidade. Temos de ter muito cuidado com essa pressão.
Os portugueses parecem lidar mal com o erro. Apontam-se rapidamente as falhas, mas esquecem-se que sem errar a sociedade não evolui. Deveria dar-se mais importância a um ensino baseado na tentativa e erro?
Concerteza. É o valor do erro. O cientista lida todos os dias com o erro. Mas, por vezes, os pais não são capazes de dizer aos seus filhos que afinal errar é humano. Uma coisa é errar intencionalmente outra é errar no sentido de crescer, da aprendizagem. Todos nós erramos. A democracia é o regime da imperfeição e o regime do reconhecimento de que somos cidadãos imperfeitos. Ai daqueles que pretendam criar a sociedade perfeita. Na inteligência artificial não vamos criar inteligências perfeitas, se não criaríamos a tirania da máquina. A máquina ou o robot tem de ser um instrumento auxiliar e vai ser fantástico, porque vai permitir coisas absolutamente extraordinárias, como ter mais disponibilidade para aprender outras coisas. O conhecimento perfeito não existe, como a sociedade perfeita não existe. Há um caminho de partilha e de conjunto e só assim é que é possível garantir que a escola seja motivadora.
A entrada no ensino superior faz-se com base na média das notas do secundário. Há quem defenda que deveriam ser as universidades e politécnicos a estabelecer os métodos de entrada. Concorda?
Há muitos anos que precisamos de aperfeiçoar o sistema. Quando fui ministro da Educação lancei uma experiência piloto no ensino da Medicina, que foram as entrevistas e não funcionou, porque havia um enviesamento. Os familiares dos profissionais de saúde tinham vantagem relativamente a outros. Não é isto que acontece nos países anglo-saxónicos, onde as universidades recebem os seus alunos através de uma análise específica. É preciso mudar, mas este nosso sistema, com os seus defeitos, tem uma vantagem: a sua legitimidade. Os cidadãos aceitam melhor o resultado de uma média por computador e terem ficado de fora por uma décima do que ficar de fora por uma entrevista. Vamos ter que trabalhar, porque há um problema significativo, sobretudo, nas profissões de saúde, que é a vocação. Muitas vezes, estamos a receber o melhor aluno, mas que tem vocação para ser investigador de ciência e não para estar num banco do hospital a fazer 24 horas. Precisamos do bom aluno e de quem tenha uma boa vocação para aprender, mas simultaneamente quem também tenha capacidade para estar 24 horas com competência nas urgências do hospital. Temos de ir ao encontro das vocações e das capacidades e isso não podemos descurar.