Assinar despachos e passar o tempo em reuniões matou a veia da criatividade?
Não, pelo contrário. É preciso criatividade para assinar despachos. A criatividade artística está em pausa. Não tenho tempo para ir ao atelier com a frequência com que ia antes, até porque há outras coisas que se privilegiam. Por outro lado, se assinar despachos é uma coisa automática, repetitiva, em que a única coisa que treinamos é a nossa capacidade de não nos aborrecermos e de fazer sempre a mesma assinatura (por isso, às vezes, digo que vou inventar uma nova), também é preciso criatividade para fazer os despachos, que são o resultado de uma negociação. Aí não matou a veia, criou foi uma nova.
A ESAD.CR já tem o cunho de João Santos?
Todos os dias acordo com a intenção de chegar ao fim do mandato deixando um cunho do João Santos, mas a escola tem um cunho próprio muito forte. Aquela negociação de que falo para os despachos passa muito por negociar aquilo que a escola é, com o que foi e com o que pode vir a ser. A ESAD.CR faz 30 anos para o ano e gostava de poder participar nessa altura com o meu cunho, mas a escola não tem de ter necessariamente um vinco do director.
E que futuro pode ser esse?
Primeiro é o que deve vir a ser. Há cada vez menos pessoas, mais escolas e mais cursos e há, acima de tudo, uma mudança no mundo, que se está a digitalizar de alguma maneira. Em Leiria, a ESTG [Escola Superior de Tecnologia e Gestão] tem a bandeira da indústria 4.0, a escola das Caldas não tem uma arte nem um design 4.0, por muito que ache que se deva pensar nisso. Um dos futuros da ESAD.CR deve passar por pensar que modo pode uma escola de design estar inserida num instituto que tem este desígnio e de que forma pode reflectir e produzir no seio da digitalização do mundo. Talvez uma das intenções do meu cunho seja a de provocar uma reflexão e uma acção mais profunda do que aquela que tem sido habitual. A escola é formada por docentes que são profissionais activos, de mérito reconhecido no mundo inteiro, por isso nunca teve o problema de pensar em actualizar-se. Actualiza-se naturalmente. Agora temos a necessidade de nos integrar numa outra revolução. Isso tem um custo, acima de tudo financeiro. Temos de criar condições de espaço, de equipamento, que é transversal a todo o Politécnico e instituições, mesmo aquelas de que se fala que têm um superavit orçamental. Mas o debate que tem de ser feito é de que modo é que temos a vontade e a capacidade de nos adaptarmos e provocarmos uma mudança. Não basta adaptarmo-nos. A ESAD.CR precisa de ser líder e promotora da mudança.
De que forma é que a ESAD.CR poderá criar essa mudança?
Uma forma é com muitas parcerias com as instituições, com as empresas, com as comunidades, com os territórios regionais e nacionais e também parcerias internas. Se queremos reflectir na digitalização do mundo e temos uma escola irmã, mesmo que noutras áreas, devemos primeiro pensar internamente qual é o papel da ESAD.CR e do Politécnico de Leiria neste contexto. Isto tem de ser estratégico para o instituto. Depois é na relação com a indústria e com os outros parceiros. Temos uma boa relação com a comunidade e com as suas instituições. Agora, temos que procurar outras parcerias fora do País. Temos tentado estabelecer contactos que nos permitam aprender, cooperar e até ensinar, porque também temos coisas que os outros não têm, como a capacidade de não pensar como uma empresa. Estamos inseridos num mundo interdisciplinar, e temos consciência de que sozinhos não fazemos um caminho. Temos de encontrar os parceiros certos que estejam disponíveis e temos que saber qual é a nossa posição no meio desta rede.
Não noto uma diferença significativa da vida cultural de Leiria, do ponto de vista da qualidade e da exigência, que se esperaria que uma capital de distrito tivesse
Internacionalização é um dos desígnios do IPL, também o é da ESAD.CR?
É. Fazemos um esforço grande para captar estudantes internacionais. Estamos a trabalhar no sentido de criar um plano para que a mobilidade de professores tenha um impacto no funcionamento e nos resultados dos cursos da escola. São passos lentos, mas queremos estar numa posição em que podemos escolher estrategicamente o que queremos. Neste momento, temos cerca de 60 estudantes estrangeiros. É um número que se tem mantido mais ou menos estável, mas queremos que cresça. Nos últimos dois anos aumentou o número de estudantes em mobilidade, acima dos 50%.
De que forma é que Leiria pode aproveitar a formação dos alunos da ESAD.CR para melhorar a sua vertente cultural?
A região de Leiria consegue fixar alunos, aliás, pela indústria que tem até devia fixar mais designers industriais e de produto. Também temos designers de comunicação e artistas plásticos que ficaram a viver na região, mas que desenvolvem o seu trabalho profissional para fora. Somos um bom parceiro para trabalhar com as instituições públicas, especialmente com as autarquias, mas não podemos apressar as coisas. Leiria tem uma grande profusão de eventos e o relacionamento com a Escola das Caldas deve acontecer pela qualidade das suas propostas, como tem acontecido especialmente pelas exposições de estudantes de Artes Plásticas e de Som e Imagem. Esta é uma relação que tenderá a crescer e permitirá, de algum modo, contribuir para o desenvolvimento cultural da região. Nas Caldas da Rainha, quando terminam o curso, os alunos têmatelierscom rendas baixas e criam comunidades. É uma cidade diferente para se estar, mais próxima de Lisboa. Em Leiria, as coisas são dispersas. Além da Casa da Reixida, que continua viva, não noto uma diferença significativa da vida cultural de Leiria, do ponto de vista da qualidade e da exigência, que se esperaria que uma capital de distrito tivesse. Mas há sinais de melhoria. Para aproveitar a formação dos alunos temos, acima de tudo, de criar as condições para eles se fixarem. Não bastaria fabricar um bairro de artistas, sem um plano e tendo como finalidade potenciar um modelo de desenvolvimento urbano assente no negócio imobiliário. Não gosto de falar em educar os públicos, porque andamos há 20 anos a fazê-lo, mas provavelmente deveria pensar-se numa colecção de arte e design contemporâneo para Leiria, que pudesse criar condições de estudo e de visita, onde os artistas pudessem trabalhar, apoiados ou em colaboração com determinada instituição e, assim, contribuir para que houvesse mais coleccionadores dispostos a vir a Leiria.
Leia aqui a segunda parte da entrevista
Leiria tem hipóteses de ser Capital Europeia da Cultura?
Precisamos de demonstrar ambição e escolher a área em que queremos apostar, se é no design, nas artes contemporâneas… Se Leiria tiver ambição, disponibilidade financeira e capacidade de delegar, não tenho a menor dúvida de que é uma candidatura válida com muitas hipóteses de ganhar. Temos os meios humanos, pessoas dispostas a colaborar, instituições e associações e até a colaboração das escolas do Politécnico. A ESAD.CR já manifestou essa disponibilidade. Temos é que rapidamente encontrar a fórmula que pretendemos seguir.
Que análise faz à cultura de Leiria?
Temos um bom festival de música, três companhias de teatro de que nos podemos orgulhar: O Nariz, o Tea-to e o Leirena. Temos dois festivais de cinema de boa qualidade, o Cinantrop e o Leiria Filmfest, que dentro das suas especificidades atraem muito bons filmes. Temos bons ranchos folclóricos, filarmónicas e boas escolas de música. Há uma série de condições entre a alta e a baixa cultura, fora dos eventos festivos, do barulho na praça ou do estádio. Isso é outro tipo de cultura de entretenimento. Temos boas instituições como a Livraria Arquivo e bons museus, que podem ser potenciados. Por exemplo, o m|i|mo [museu da imagem em movimento] tem um enorme potencial e podia ser muito mais bem aproveitado. Sempre defendi que o m|i|mo é o que temos de melhor para internacionalizar Leiria em termos culturais. O Museu de Leiria tem uma boa programação, está a fazer um excelente trabalho e essa pode ser uma forma de ver a cultura. Embora um bocado dispersa, temos uma boa cena cultural, agora falta comunicá-la. Sou a pior pessoa para dizer o que vou dizer, porque tenho sido contra, mas começo a acreditar que deve haver um plano conjunto de comunicação que [LER_MAIS] permita criar uma massa crítica para que se visite Leiria não só a pensar no estádio ou no centro comercial, mas porque se sabe que há uma boa exposição.
Por que é que a programação do Colectivo a9)))) não tem muito público?
O a9)))) reduziu quase 90% da sua actividade nos últimos anos. Neste momento, a actividade que o a9)))) tem são as exposições na sede, uma página no jornal e a organização das conferências na Livraria Arquivo. No início, o a9)))) enchia as ruas com as suas actividades. Entretanto, houve muita gente que saiu de Leiria, veio uma geração nova, com outros interesses, mas também não há muito público, porque as exposições que temos colocam questões ao espectador, não são fáceis. São boas, geralmente tentamos que sejam de alunos de Caldas da Rainha e podemos gabar-nos de ter alunos que depois ganham prémios. Já as conferências da Arquivo têm sido um sucesso. Mas as conferências não são arte pura e dura. A arte interpela o mundo e cada um de nós tem de ir procurar as perguntas. Acima de tudo a arte precisa da nossa disponibilidade e, se calhar, ao fim-de-semana gostamos mais de estar distraídos do que disponíveis para nos preocupar com estas coisas. A arte joga connosco, com quem somos, com as nossas emoções, com o que pensamos e obriga-nos a um tempo que não estamos habituados a ter. Por exemplo, estamos aqui a falar e há uma música de fundo, raramente nos sentamos apenas para ouvir música. É preciso tempo e disponibilidade para a arte. Muitas vezes não temos tempo nem o queremos ter. As conferências da Arquivo, graças à programação exigente de Sofia Rino, mostram que as pessoas se interessam pelas coisas da cidade. Também conseguimos demonstrar que o a9)))) tem uma atitude construtiva.
Não gosta de falar em educar os públicos, mas não é isso que falta a Portugal?
Apostar na arte desde o jardim- de-infância? Os miúdos são criativos desde a pré-primária, vêem as coisas de outra maneira, são curiosos, têm e constroem outro mundo. A partir do momento em que têm que aprender a tabuada, a ler e a ter uma série de regras que vêm em tabela, perdem essa criatividade. O mundo está a ser orientado para as engenharias, mas essas também precisam de ser criativas. E para ser criativo é necessário ter tempo, não bastam felizes acasos. Nas escolas a educação artística passa muito pela bricolage, por uma ocupação dos tempos livres, uma ocupação manual, automática, de construção de pequenas coisas, de relacionamento de curiosidades, que poderia ser mais aprofundada. A bricolage pode ser uma coisa muito interessante, mas é preciso conhecer bem os materiais e experimentá-los, para quando se misturam saber o que estamos a fazer. A escola deveria ter um papel mais consciente, mas há grandes dificuldades de tempo. Um professor tem pelo menos 50 horas de trabalho por semana, tem de resolver vários problemas e ainda encontrar as estratégias para que a educação artística seja um contributo grande para o desenvolvimento dos miúdos. Isso é heroico. Mas compete ao País dar condições para que não seja heroico, mas natural e entendido como uma necessidade. Caso contrário, vamos ter uma sociedade formada por pessoas iguais, que sabem todas fazer a mesma coisa.
Concorda com aqueles que dizem que a escola mata a criatividade dos miúdos?
É uma ideia de formatação. Às vezes confunde-se a harmonização com a formatação. A escola parece ter como desígnio quebrar e aniquilar a criatividade, mas sabemos que há exemplos de escolas que não o fazem, que promovem precisamente a abordagem individual. No contexto que referi não há dúvidas que a escola está desenhada para matar a criatividade, mas não devemos dizer isso. Temos que pensar que se pode mudar, que a escola é feita para fomentar a criatividade. Podemos ser uns magos de preenchimento de tabelas e ser criativos ao mesmo tempo. Conseguir criar novas fórmulas de encarar o mundo, de fazer novas tabelas, de ser produtivos e de gerar riqueza. O medo que se tem da criatividade é o medo de confrontar a mudança. Se há uma fórmula boa por que é que se mexe? Isto é o mundo e a humanidade mexe-se. Temos de saber que a criatividade é essencial para acompanhar este movimento.