Em matéria de ordenamento do território, quais os grandes pecados que o País tem cometido?
Foram muitos, embora reconheça que, nas últimas décadas, o País se transformou, espantosamente, para melhor, no que respeita a infra-estruturas, equipamentos ou acção cultural. Ao nível do ordenamento do território as coisas correram mal. O ordenamento está muito relacionado com a propriedade do solo e com a procura de valorização fundiária e de facto o ordenamento não a tem sabido enquadrar e disciplinar. Na ocupação florestal, por exemplo: a lógica da pequena propriedade traduziu-se no abandono da floresta ou na plantação de eucalipto, na expectativa de conseguir algum rendimento. Não há hoje qualquer possibilidade de ordenar a floresta sem processos de emparcelamento ou, pelo menos, de gestão integrada. Nesta área continua a pecar-se por omissão. No domínio da agricultura notam-se iniciativas interessantes, produtivas, embora também com impactos ambientais negativos, mas essa dinâmica não resulta de uma política nacional. Também neste sector se verifica uma quase ausência de ordenamento.
Fala em ausência de planeamento, mas fomos pródigos em produzir legislação, planos de ordenamento, planos directores municipais (PDM)…
Pois, mas tem-se esquecido que planear não é só fazer planos. Pressupõe escolha de objectivos e de caminhos para os atingir, exige programação e execução. É exactamente isto que tem faltado. Investiu-se muitíssimo na elaboração de planos, em processos que se arrastam durante décadas e, em grande parte, os planos não chegam a ser executados. Produz-se muita legislação e discute-se muito a letra da Lei, muito ao lado da ocupação do território que vai acontecendo. Tem havido uma enorme ineficácia na compreensão do que é o planeamento, reduzindo- o à elaboração de planos. A programação e a execução são essenciais. Sem elas os planos são ineficazes, são um desperdício de recursos. Em alguns casos nem planos se fizeram. Nos domínios da floresta e da agricultura fizeram-se poucos. Mas todos os municípios elaboraram o seu PDM, que se centraram–se quase apenas nas questões urbanísticas e edificatórias. Também neste domínio a falha foi enorme. Digo-o com especial tristeza, porque toda a minha vida trabalhei nesta área. Posso apontar alguns êxitos (e eu próprio estive envolvido nalguns deles), mas foram pontuais e contra a corrente. O que proliferou foi a dispersão edificatória e a especulação fundiária.
A dispersão da edificação foi um dos grandes erros?
Claramente. A construção de edifícios pressupõe a existência de vias de comunicação, electricidade, redes de água, esgotos… Essas infra-estruturas foram-se estendendo, mobilizaram muitos recursos financeiros públicos e a sua capacidade não é aproveitada. Existindo uma casa aqui e outra acolá, há um claro desperdício. A dispersão tem também outras consequências negativas, ao nível ambiental e na mobilidade. As deslocações exigem veículo privado. Mesmo investindo em transportes públicos seria impossível ter uma rede que fosse buscar cada pessoa a casa. Esta irracionalidade na ocupação do solo traduz a inoperância do ordenamento do território.
Liderou o projecto Custos e benefícios, à escala local, de uma ocupação dispersa. Este tipo de ocupação trouxe mais custos do que benefícios?
Podemos pensar as coisas do ponto de vista colectivo ou do ponto de vista individual. Na perspectiva colectiva, acarretou imensos custos, ao nível das infra-estruturas e da mobilidade, impactos ambientais negativos e ainda diminuição da vivência colectiva e enorme gasto de tempo com as deslocações. Do ponto de vista colectivo e da organização do território a dispersão só trouxe prejuízos.
E do ponto de vista individual?
Poderá não ser bem assim. No âmbito do projecto que citou fizemos inquéritos à população, que confirmaram a aspiração à vivenda, embora, note-se, a grande aspiração revelada foi a de tê-la no centro da cidade, próxima da escola e dos equipamentos. Mas muitas pessoas aspiram de facto a ter a sua vivenda. É algo que vem muito da cultura anglo-saxónica, ruralista e da influência das cidades americanas, assentes no automóvel que muitos puderam ter – o Ford – e que suscitou o espalhar da cidade, com vivendas, por quilómetros e quilómetros. Uma vivenda em contexto de dispersão pode ser uma aspiração legítima, compatível com capacidade económica não elevada. Mas do ponto de vista individual há uma outra razão, um benefício claro da dispersão, que foi o da valorização das propriedades aonde ocorreu. E foi isto que dominou. [LER_MAIS] A ocupação do território não decorreu do ordenamento, mas de uma dinâmica individualizada, cada um procurando valorizar o a sua propriedade. Não são apenas os grandes especuladores imobiliários. São os proprietários grandes e os pequenos. Cada um tenta rentabilizar o mais possível o respectivo bem, o que aliás é expectável e legítimo. Esta dinâmica individualizada de valorização fundiária explica a ocupação que foi acontecendo.
Há forma de conciliar os interesses específicos de cada proprietário e o interesse colectivo, aparentemente tão contraditórios?
Antigamente, quando era a função agrícola que valorizava o solo, o problema não se punha. O proprietário utilizava-o de forma racional, o interesse individual era compaginável com o colectivo. Mas isso mudou radicalmente. Actualmente o que valoriza verdadeiramente a propriedade é a edificabilidade. Ora, ordenar a edificação, fazer cidade racional, exige equilíbrios e continuidades, o que não é compatível com as pretensões dispersas e casuísticas da generalidade dos proprietários. O crescimento ordenado pressupõe direcção e iniciativa pública.
De que forma se pode traduzir essa iniciativa pública no ordenamento do território?
Um plano não deveria dizer aonde é que se pode construir, mas sim aonde é que se vai construir. A partir do momento que, com o plano, o proprietário ganha o direito de construir, deve passar a ter também o dever de o fazer. Se não o fizer, o Estado substitui-se. É isso que acontece em muitos países, por exemplo na Alemanha. Os processos de urbanização podem também ser de iniciativa totalmente pública. Voltando a referir exemplo alemão, os municípios adquiriram atempadamente solo que albergou quase metade do crescimento urbanístico do século XX. Em Portugal, as iniciativas urbanísticas, na maioria, acontecem por iniciativa individualizada de um proprietário, fechadas nos limites do respectivo prédio. Assim sendo, mesmo cumprindo o plano, não ocorre crescimento ordenado, o qual exige uma perspectiva colectiva. Por outro lado, sendo a transformação urbanística que valoriza determinados terrenos, deveriam ser os proprietários a pagar as respectivas infra-estruturas e não os nossos impostos. Valorizam-se os terrenos de alguns com o dinheiro que é de todos. O urbanismo não se esgota em questões de desenho, exige também política fundiária, equilíbrio económico-financeiro, transparência e justiça.
Quando se fala em falta de ordenamento, os autarcas aparecem quase sempre como um dos grandes culpados. Temos hoje autarcas mais sensibilizados para as questões do ordenamento do território?
Olhando para o passado, podemos, de facto, responsabilizar os autarcas, mas as suas falhas foram as falhas da nossa sociedade. Podemos culpar a administração local e a administração central, os promotores imobiliários (embora estes em menor escala, porque se limitaram a defender o que era deles), mas também devemos responsabilizar a sociedade em geral. A actual cultura dominante não percepciona e não valoriza a dimensão colectiva da ocupação do território. Os problemas de ordenamento não são mais do que a expressão global do individualismo crescente. São o reflexo do momento cultural e ideológico que vivemos. Por isso, é injusto centrar nos autarcas a culpa pelos erros de ordenamento. Após o 25 de Abril, foi entregue aos municípios a principal responsabilidade pelo ordenamento urbanístico. Houve um conjunto de câmaras que caminharam no sentido de um ordenamento mais eficaz. Contudo, o crescimento do individualismo, numa sociedade liberal, criou dificuldades. Os próprios fundos estruturais vieram desajudar.
Por quê?
Antes do 25 de Abril, quando um município queria fazer uma obra, pedia autorização à Administração Central. Depois, ganharam a sua carta de alforraria financeira e passaram a gozar de meios jurídicos e financeiros próprios. Com a entrada na União Europeia, houve uma corrida aos fundos estruturais. Às tantas, candidatavam-se obras não tanto por serem precisas, mas porque havia dinheiro para aquela área. Era possível articular o planeamento de longo prazo com a oportunidade de recorrer aos fundos, que não se podiam desperdiçar. Mas, em muitos casos, não foi isso que aconteceu. Seguiu-se o caminho do casuísmo, do fazer planos que nunca mais acabavam, do ficar atrás do guichet à espera da iniciativa privada e de ver o que se poderia fazer com os fundos que aí vinham. Para ordenar o território, o esforço de cada município deveria ser o de articular capacidade de investimento privado e público. Pareçe-me, aliás, que já vão surgindo sinais positivos de mudança.
Que sinais são esses?
Já se percebeu, por exemplo, que não podemos continuar a construir e que temos de passar à fase da reabilitação. Em Portugal, chegaram-se a construir dois milhões e meio de fogos em duas décadas, enquanto o número de famílias cresceu pouco mais de um milhão. Estão também a ser feitos estudos integrados de reabilitação para determinadas áreas – ainda muito centrados nos centros históricos – que articulam intervenção no espaço público com interacção com os proprietários para que estes reabilitem e dêem uso aos edifícios. Também já se percebeu que um dos instrumentos mais importantes de ordenamento do território é a fiscalidade sobre os imóveis, equilibrando direitos e deveres. A par do direito de propriedade de um imóvel, o proprietário tem o dever de o manter conservado. Há um outro domínio sem o qual não haverá mudanças a sério em termos urbanísticos: os municípios tomarem consciência de que têm de tomar a iniciativa. Têm de fazer acontecer, com localização e programa adequados, as operações de que a sua cidade necessita e têm de ser capazes de mobilizar proprietários e investidores para alocarem a tais operações os respectivos recursos.
Percurso
Uma vida dedicada ao urbanismo
Licenciou-se em engenharia civil, mas foi ao urbanismo que Jorge Carvalho dedicou toda a sua vida profissional. Uma vida “cheia e intensa, com o dramatismo de olhar para o território” e de se “sentir derrotado”, tantos foram os erros cometidos. “Não é uma derrota pessoal. Posso dizer que consegui, nos grupos que fui integrando, fazer coisas contra a corrente. Consola-me um pouco o nunca ter desistido, o manter a insistência, o ter obtido alguns êxitos. Mas é impossível não sofrer quando se olha para o território e se vêem os erros que se cometeram”, confessa o urbanista, de 71 anos. Pós-graduado em Planeamento Regional e Urbano e doutorado em Ciências Aplicadas ao Ambiente, dirigiu o Departamento de Administração Urbanística da Câmara de Évora e colaborou na elaboração de planos e projectos urbanos. Foi também professor e investigador na Universidade de Aveiro, à qual ainda mantém ligação.