Se o fim do tecto máximo que impede os juízes de ganharem mais do que o primeiro-ministro for aprovado, os magistrados terão um aumento até cerca de 500 euros brutos por mês. Esta medida peca por tardia?
Não é uma coisa pela qual tenha lutado, nem me vai beneficiar, porque estou jubilado. Agora, se há aumentos salariais em muitos sectores, por que não nos magistrados também? É justo, até porque têm funções de grande responsabilidade. Quanto ao tecto do primeiro-ministro, desconheço o seu ordenado e que outras vantagens tem. Mas há muitas profissões e sectores de actividade onde a remuneração é superior à do primeiro-ministro.
A violência doméstica tem estado na ordem do dia. O juiz Neto de Moura foi alvo de várias críticas da sociedade civil por algumas passagens no seu acórdão e foi-lhe aplicada uma advertência pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM). Concorda?
Um juiz é alguém que ao decidir se põe todo ele na decisão. Aquilo que os juízes fazem não é uma jurisciência, mas uma jurisprudência. Não são dados que se metem num computador e sai o resultado. Pelo contrário, há uma experiência de vida que não pode deixar de se reflectir na decisão. É evidente que o juiz tem de obedecer à lei e, portanto, a garantia de todos os cidadãos é que a lei está a ser cumprida. Mas, há uma flexibilidade nas decisões, porque a lei tem de ser interpretada e, sobretudo, a lei é abstracta e cada caso é um caso. Em relação ao juiz Neto de Moura, não vou criticar nem apreciar a sua decisão, mas o que posso dizer é que o resultado final dessas decisões é perfeitamente aceitável. As considerações que terão sido tecidas para fundamentar a decisão é que poderão ou não ser aceites. Também me parece que houve uma reacção como nunca vi, mas tem uma razão de ser: vivemos numa época em que os casos de violência doméstica estão a ser um escândalo. Estive 11 anos numa secção criminal do Supremo e fiquei muito espantado com o número de casos, não propriamente de violência doméstica, porque este crime só associado a outros é que chega ao Supremo, que existem na sociedade familiar e conjugal e que são terríveis. Estou convencido que sempre existiram só que agora conhecem-se. A visibilidade é maior e, sobretudo, tem a ver com o papel da mulher, que descobriu, e muito bem, que deveria ter um estatuto equiparável ao do marido. Há muito a fazer ainda nesse campo, aliás a situação é talvez até – não digo penosa – mais difícil, porque a mulher atingiu uma autonomia profissional e de procriação, que não tinha, mas não significa que fique liberta de todas as suas tarefas de mãe, doméstica… Há uma cultura tradicional que leva a que as tarefas domésticas sejam sobretudo da mulher. Falo por mim: em casa, faço tudo o que me pedem, mas a minha mulher faz tudo sem lhe pedirem. Esta diferença é importantíssima. Mas também tenho 68 anos, já venho de outra geração. Os meus filhos já não são assim e ainda bem.
E Neto de Moura foi bem sancionado? Houve pressão da sociedade?
Estou convencido que o CSM não se deixa levar por pressões. Claro que a conjuntura aconselharia a que se tomasse uma posição, o que não significa necessariamente sancionar ou não. De qualquer forma, a decisão não deixa de ser elucidativa, porque o resultado ficou empatado e foi o presidente do CSM que desempatou. Suponho que os membros do conselho que votaram contra a aplicação da sanção não subscrevessem a fundamentação, mas foram sensíveis ao facto de o resultado da decisão ser aceitável.
Recentemente, outro caso idêntico foi divulgado na comunicação social. Noutra situação, o juiz considerou que a sexualidade não é tão importante aos 50 anos. Como se explica que no século XXI ainda haja juízes que profiram estas decisões?
Deontologicamente não devo comentar decisões de colegas, mas também não conheço os casos. Ainda há pouco tempo uma revista tinha na capa o seguinte título: "Os outros Netos de Moura". E fiquei muito espantado porque foram buscar dois acórdãos meus de há mais de dez anos. Esses meus casos eram de violação e apresentaram-nos como sendo altamente criticável uma passagem da decisão, que, completamente descontextualizada, não tem sentido nenhum. Num caso, uma rapariga foi violada por um primeiro elemento e depois por um segundo. Aquilo que retiraram da sentença foi uma passagem em que dizia que em relação ao segundo era preciso ter em conta que usou preservativo. Isto para justificar que, em penas que foram de muitos anos de cadeia, o segundo tivesse menos dois meses ou uma diferença muito pequena. Mas esse facto foi tomado em consideração pela razão simples que a própria lei considera que o uso ou não do preservativo é uma circunstância a atender. Esta simples passagem tirada da sentença para dizer que sou um outro Neto de Moura é um abuso.
A lei permite suspender a pena de prisão em condenações até cinco anos. Nos crimes e violência doméstica deveria haver uma excepção?
Não. Cada caso é um caso e o juiz tem a plena possibilidade de não suspender a pena.
Em alguns processos têm sido divulgados sons do julgamento. No processo Marquês, a comunicação social também divulgou partes da audição do juiz de instrução a José Sócrates. Estas fugas de informação podem comprometer a investigação?
Não sei se comprometem a investigação, sei é que não deveriam ser admitidas. É mau, descredibiliza a justiça e, sobretudo, é crime. De uma vez por todas, a comunicação social tem de se convencer que há limites e como é um crime público – não é preciso queixa – as autoridades devem actuar. Quando fui procurador-geral pus um procurador a tratar só dos crimes de violação do segredo de justiça. Não tive grande sucesso porque a lei tinha uma redacção completamente diferente da que tem hoje. Toda a problemática está em saber se, desconhecendo a identidade de quem passa a informação, se deve ou não perseguir quem publica e divulga a informação. Pergunto se há razão para estabelecer neste sector específico regras diferentes das que existem em todo o Direito Penal. Se tiver duas pessoas a assaltar um banco e não descobrir quem é uma delas não vou deixar de actuar contra a outra. Isto são princípios base do Direito Penal.
Mas, são poucas as condenações pelo crime de violação do segredo de justiça. Ele existe apenas no papel?
A imagem que passa é um pouco essa. Pode ter a ver com uma cultura que se herdou e do regime antes do 25 de Abril, em que havia censura e não havia liberdade de imprensa. Há uma preocupação legítima, porque é fundamental à democracia que haja liberdade de imprensa e que os jornalistas sejam protegidos em matéria de fontes. Agora, tirem o crime do código. Se lá está, não se pode ignorar.
Casos mediáticos como o Casa Pia e Freeport decorreram no seu mandato enquanto PGR. Sentiu pressões?
Não. Eventualmente porque as pessoas sabiam que não serviria de grande coisa. Agora não sou insensível ao que se passa à minha volta nem às reacções das várias forças sociais e políticas. Tive um processo, ainda procurador da República em Setúbal, relacionado com o contrabando de tabaco, e aí senti alguma pressão. Mas não teve resultado absolutamente nenhum e fiz exactamente aquilo que faria se não tivesse havido esse telefonema. O processo Casa Pia ocorreu numa altura em que era procurador-geral, mas não era titular do processo, nunca despachei o processo, muito menos tomei decisões sobre a posição de pessoas, porque isso competia ao juiz de instrução. Havia uma equipa de três procuradores do DIAP e nem sequer fui buscar alguém ad hoc. Não poderia dar uma ordem aos magistrados a dizer: não acusem este. O Ministério Público [LER_MAIS] é uma magistratura autónoma e obedece a critérios de legalidade e de verdade. Não faz sentido haver um critério deontológico para os magistrados e o superior hierárquico poder fugir a esses critérios.
José Sócrates está a ser investigado, Armando Vara está cumprir pena de prisão, sentença aplicada a Isaltino Morais. Estas investigações e penas aplicadas a políticos são a prova de que ninguém está acima da lei?
Parece-me evidente, sobretudo, quem começou como eu, antes do 25 de Abril. Houve um progresso nesse campo. Fala-se muito dos Ballet Rose de eventuais influências que houve, mas havia muitos outros casos em que as coisas não andavam para a frente, como andariam hoje, dada a importância das pessoas envolvidas.
Foi escolhido pelo patriarca de Lisboa para liderar comissão que analisará denúncias de abusos sexuais por padres. Mostra uma abertura da Igreja a assumir que há um problema?
Para já, fui convidado para colaborar na acção de uma comissão que iria fazer a triagem, mas confesso que ainda não falei com o senhor cardeal para saber o que querem de mim. O problema que há dentro da Igreja é insofismável. Havia uma cultura de proteger a instituição. O prestígio e a protecção à instituição levaria a que não se revelasse tudo. Mas este Papa tem um papel altamente meritório em combater esse estado de coisas e, passo a passo, espero que se progrida no sentido de que, perante a lei, sejam todos iguais, sacerdotes ou não. O juiz transmite sempre um ar superior, sério e distante. É preciso ter esse ar para ser levado a sério? Os juízes intervêm em muitas situações e sentam-se muitas vezes à volta de uma mesa com outros operadores judiciários para resolver problemas. Agora, há uma coisa muito importante, o juiz decide um conflito. No Penal, por exemplo, entre a sociedade ou a vítima e o criminoso, e há sempre duas partes. Há quem queira uma coisa e quem queira outra e há sempre uma decisão que agrada a apenas uma das partes. Portanto, é preciso exercer a autoridade individualmente, com independência e imparcialidade. E, para causar sofrimento às pessoas, no caso do Direito Penal em que se aplica uma pena, é preciso alguma distância. A distância é funcional, quando se está a decidir contra alguém. Houve algum caso que lhe tenha trado o sono? Não me recordo de nada, mas houve coisas que me deixaram um pouco surpreso. No campo da violência doméstica e dos crimes ditos passionais em que estão emoções à flor da pele fiquei espantado com a frequência com que há violações e violência entre namorados. Ao fim de muitos anos toda a gente sabe que as coisas podem acontecer entre casados, agora entre namorados, fico muito espantado. E também fiquei muito espantado nos processos que me apareceram no Supremo de relacionamentos que se iniciam nas redes sociais e, muitas vezes, quando há um primeiro encontro, depois de um relacionamento de anos, ocorre uma violação. Absolveu algum arguido ficando com a convicção de que deveria ser condenado, mas não o fez por falta de provas? Muitos. Se não há provas não se condena. São as regras. Não há nada a fazer. O que seria extremamente grave era estar convencido da inocência e condenar. Era um homem com vocação para as artes plásticas. Por que não seguiu essa área? Tive uma inclinação enorme para tudo o que sejam artes plásticas, sobretudo, pintura, história de arte, etc, mas hesitei. Aos 14 anos decidi, se calhar, pelo caminho da maior estabilidade e segurança. Isto passou-se em 1964 e, nessa altura, ser artista e ir para as Belas-Artes, numa família tradicional e numa cidade algo provinciana, como era o Porto, não era uma opção muito fácil. Atirei uma moeda ao ar e saiu-me Direito, porque as duas alternativas eram Direito ou Arquitectura. Mantive-me sempre interessado por tudo o que fosse arte e pintura, fui fazendo os meus desenhos e não estou arrependido. Depois do curso de Direito por que seguiu a magistratura? A partir do momento em que fui para Direito pensei: tenho que ser magistrado, porque só assim poderia ser independente. Os advogados são fundamentais, não há justiça sem advocacia, mas para a minha maneira de ser, talvez por não ser muito pro-activo, muito voluntarista, agradava- -me que viessem ter comigo para me perguntarem o que é que pensava e eu pudesse decidir com toda a independência e imparcialidade. Insistiu para que o seu irmão Eduardo fosse para a arquitectura. Teve alguma coisa a ver com o facto de não ter seguido essa área? O meu irmão é mais novo dois anos, por isso é que quando ele teve que tomar a decisão de que caminho seguir, suponho que tive alguma influência- aliás, ele é quem o diz – no sentido que via nele condições e qualidades para seguir uma carreira de arquitectura e disse- lhe: não fui, eu vais tu. E assim foi.
Aluno nota 20 a…artes
José Souto de Moura foi procurador-geral da República, nomeado pelo Presidente da República Jorge Sampaio. Aos 68 anos está jubilado e voltou a acreditar em Deus. “Sou crente, mas respeito as pessoas que não o são. Tenho pessoas na família que são óptimas e não são crentes. Eu próprio já fui agnóstico. Neste momento, sou praticante e estou envolvido em várias iniciativas da Igreja. Todos nós actuamos para aquilo que fazemos, mas tudo somado, o sentido dos sentidos, não pode estar neste mundo”, salienta.
Licenciou-se em Direito, mas tem uma paixão pelas belas-artes. Aliás, chegou a ser o melhor aluno de artes no liceu, obtendo nota 20. Optou pela magistratura, tendo sido procurador em várias comarcas até chegar ao Supremo Tribunal. Foi professor no Centro de Estudos Judiciários e chefe de delegação no Comité Director dos Problemas Criminais do Conselho da Europa entre 1992 e 2000.