Numa sociedade global, é a história do vizinho do lado e da nossa rua que é importante para o público?
Já era assim, mas agora está-se a dar mais ênfase a isso. Na Vice, um dos grandes objectivos é precisamente esse. Temos escritórios em 35 países e tentamos captar histórias de cada um deles – e não só das capitais onde estão sediados mas também do resto do país -, que possam interessar ao mundo todo. Na última reunião estivemos a desenvolver temas em conjunto e a ver de que forma podemos tratar vários temas que consideramos globais, a um nível local, e manter o interesse ao nível global. As histórias locais são cada vez mais o nosso objectivo e aquilo que as pessoas querem saber.
A Vice é uma espécie de agência Reuteurs da Geração Millennial?
É e não é. Com a escala global que fomos ganhando, fomo-nos apercebendo que não podíamos estar focados no nosso próprio mundo nem desaproveitar as vantagens que temos em estar em todo o lado. Tínhamos mesmo de fazer histórias locais que fossem interessantes globalmente. Foi uma questão lógica de que as pessoas não tinham noção há dois ou três anos. Somos um meio de comunicação global, mas isso não nos dá nenhum estatuto. Não vamos só falar dos grandes temas mundiais – o que quer que isso seja. Vamos tentar falar daquilo que os outros não abordam ou, pelo menos, tentar falar com uma linguagem mais próxima daquela de quem nos lê.
A Vice aborda temas tabu, pode dizer-se que faz serviço público?
Sim. Cada vez mais. Sempre falámos de temas tabu, como as drogas ou o sexo e de uma maneira mais desbragada. Se calhar, sem esse sentido "educacional" que agora temos e que é obrigatório que tenhamos. Neste momento, está a decorrer uma série editorial ao nível internacional para criar um conjunto de artigos, sobre o que é agora e o que será a educação sexual, com toda a tecnologia que existe. Falamos as coisas de uma maneira mais aberta, tratamos as pessoas por tu, dizemos asneiras se for preciso, não temos pruridos. Somos um bocadinho, ou, pelo menos, queremos ser, serviço público.
Quando começou a aparecer o digital falou-se do fim do papel, mas, com o passar do tempo, ele tem resistido. A relação afectiva com o papel objecto é mais forte do que com o ficheiro PDF?
Para uma certa geração era, até para a minha, mas começa a deixar de o ser. Eu próprio gosto muito do papel, mas já não sinto tanto essa distinção. Tanto gosto do papel como gosto de ver uma página bonita na internet. Na Vice, somos absolutamente multiplataformas. Não acreditamos que o papel vá deixar de existir e até continuamos a editar uma revista em vários países. Nada disso nos impede de continuar a crescer no digital e esse crescimento não nos impossibilita de pensarmos nas outras plataformas. Isso é uma falsa questão.
Os novos suportes ocupam novos espaços? Quando apareceu a rádio, ela ia substituir o papel, quando a televisão apareceu, ia substituir o papel e a rádio, quando a internet apareceu ia substituir tudo, mas assiste-se a uma ligação entre as plataformas.
É uma questão de adaptar as coisas que fazemos a cada plataforma onde as vamos difundir. Uma não elimina as outras. Pode complementá-las ou até pensar-se em fazer diferente para cada plataforma. Algumas das coisas que fazemos para a televisão são feitas de raiz e há artigos da nossa revista que publicamos no digital. No entanto, quando se lê o artigo da revista no digital temos de saber que ele saiu no papel. Há é que dar essa informação a quem lê.
Como se paga a imprensa online?
É uma coisa simples e complicada ao mesmo tempo. Dentro da Vice temos uma agência criativa que trabalha em perfeita harmonia com toda a componente editorial e que o que faz é captar dinheiro para alimentar a máquina, ao nível de publicidade básica, banners na net, e, principalmente, conteúdos sponsorizados ou brandeados – branded content [conteúdo de marca] -, que é algo em que, há muitos anos, temos vindo a apostar. Nos conteúdos sponsorizados, a marca não tem qualquer interferência no conteúdo editorial. Para poder sobreviver, é preciso trabalhar com marcas, com organizações não governamentais, com Governos… criar conteúdo relevante.
Estamos numa fase onde "quem tem ética passa fome"?
Não é preciso chegar aí. É uma questão de separar bem as coisas e de as apresentar aos leitores. É preciso dizer- lhes que aquele conteúdo foi sponsorizado por aquela marca e, se eles não quiserem, não lêem. Se se interessarem vão ler ou ver, mesmo não tendo interesse na marca. É um equilíbrio. Não é uma questão de ética, é uma questão de realidade e de assumirmos que as coisas são assim. Depois podemos fazer branded content, aí já com a interferência da marca, mas, muitas vezes, nem aparece o nosso logo. Produzimos muitas vezes coisas de marca branca, com a nossa linguagem, como anúncios de televisão ou eventos, mas também recusamos marcas. Claro que há sempre uma fronteira perigosa onde se pode estar a trabalhar para as marcas, mas nunca tive uma a dizer: ‘tens de fazer isto assim’ ou ‘não podes escrever isto porque nós patrocinamos’.
Quais os desafios do jornalista actual? Faz sentido ser alguém que faz tudo?
É inevitável. O jornalista teve sempre de saber um bocadinho de tudo, por isso é que não sabemos muito de nada. Todos sabemos muito de várias áreas e depois, concretamente – à excepção dos jornalistas especializados em determinadas áreas -, não aprofundamos muito as coisas. Ao nível técnico, cada vez mais, é necessário conhecimento. Para estar nas várias plataformas e redes sociais é inevitável ter mais ferramentas e perceber exactamente como falar no Facebook, noTwitter ou no Instagram, porque são linguagens completamente diferentes. A maioria das redacções ainda é um bocadinho avessa ou não dá o devido valor a estas coisas, mas não há volta a dar.
Como se pode insistir no “jornalismo do cidadão”, quando ele nem faz contraditório?
Isso é uma falácia que tem de acabar. Os meios de comunicação também têm muita culpa nisso, porque deixaram que as coisas chegassem a esse ponto nas redes sociais e nas caixas de comentários. Levou a isto o facto de não respondermos ou de não haver um guia básico nos jornais, para responder nas caixas de comentários… ou, simplesmente, acabar com elas. A Vice acabou com as caixas de comentários no ano passado. No Facebook, temos de encontrar uma forma para responder às pessoas. Eu, às vezes respondo e, uma vezes, sai-me bem e outras nem por isso, porque me irrita ver o nosso trabalho vilipendiado gratuitamente. É uma estupidez permiti-lo. Como é que acabamos com isso? Não sei. O jornalista está sempre desprotegido e numa posição inferior, porque nos dizem logo: ‘está aí um profissionalismo a responder assim’. Então, temos de ouvir tudo e não podemos responder? O cliente nem sempre tem razão.
É a credibilidade do jornalismo que se tem de destacar?
Sim, tem. E tudo isto tem de ser amplamente discutido entre todos os profissionais e não é. Não sei qual é o medo. Se calhar, é porque as pessoas vão pensar que somos fascistas e que vamos cortar-lhes a palavra. Antes das tecnologias recebíamos cartas dos leitores e também não as publicávamos todas.
Tornou-se fácil falar mal do outro nas redes sociais?
Completamente e, às vezes, o pior nem são as pessoas que escrevem atrocidades, mas aquelas que vão meter ‘gosto’ no insulto e nem gostam da página, não têm sequer opinião e nem leram, de certeza absoluta, o artigo. Só vão lá para apoiar o ‘troll’. Há que haver bom-senso.
Faz fata uma verdeira revolução nos media? Chegou tudo muito de repente e as pessoas perderam-se um pouco?
A revolução já aconteceu. Faz falta é grande parte dos media perceberem que estão na revolução e que têm de fazer uma contra-revolução. Só agora as pessoas começam a perceber os novos modelos de negócio no digital. Mesmo os clientes, há um ou dois anos, não percebiam o que era isto do ‘conteúdo sponsporizado’. Se a coisa for bem explicada, o público também percebe que ninguém os está a tentar enganar. Sempre se fizeram anúncios e jornalismo, publirreportagens e cadernos nos jornais, pagos por empresas.
Leiria Capital da Cultura foi um fait-divers que fugiu ao controlo ou uma intenção séria?
Poderá ter sido uma intenção séria. Faz todo o sentido. Somos uma cidade com pessoas que se interessam pela cultura, com património cultural antigo e novo, moderno, jovem, com coisas a acontecerem e temos infra- estruturas. Estamos no centro do País com um apoio económico gigantesco à volta; estamos na boca do mundo por vários motivos, como a Nazaré ou a música [LER_MAIS] que se faz e temos grupos de teatro com décadas de existência, que são super respeitados. Temos condições para isso.
Leiria tem possibilidades de vencer Coimbra e Braga?
Não temos de ter medo de ninguém. Temos é de fazer as coisas com as pessoas que fazem a cultura. Não é estar fechado num gabinete da Câmara a pensar no Carnaval do Pedrógão. Tem de ser mais do que isso. Temos de agarrar nas pessoas que fazem a cultura acontecer e serem elas a fazer o projecto da Capital da Cultura.
Parece que agora as coisas arrefeceram.
Porque, se calhar, a política não quis largar mão do poder de decisão sobre o que é a Capital da Cultura e entregá- lo às pessoas que o devem fazer. Posso estar a especular, mas, se calhar, mandam uma candidatura como se se estivessem a candidatar a fundos comunitários para a recuperação da sede de uma associação e acham que isso chega. Não chega. As coisas têm de ser muito mais aprofundadas e vir de fora para dentro.
Uma candidatura assim rompe com os modelos anteriores de capital da cultura?
Claro. Se forem fazer o que se fez nas outras, haverá espectáculos de videomaping, o Cirque du Soleil, o festival do teatro e vão convidar uma série de companhias nacionais… Aí não te diferencias de ninguém. Se calhar, as pessoas que estão a fazer a cultura têm ideias fora da caixa, que podem ser uma mais-valia.
É marcar a diferença que faz falta para atrair mais turistas?
Claro que sim. Mas isso não é totalmente culpa de Leiria ou das cidades que não conseguem atrair o turismo. A culpa é mais estatal. Não há motivo algum para Lisboa ou Porto não estarem cheios de campanhas das outras cidades do País, para as pessoas que vêm aqui poderem visitá-las. Se calhar, têm culpa por não terem feito pressão suficiente para isso. Mas não é com festivais medievais que vamos diferenciar Leiria. A cidade tem outros pólos à volta, como Óbidos, Fátima e Nazaré que chamam imensa gente de fora para ver… nada. Por que é que essas pessoas depois não vão a Leiria?
O que podem os turistas ver em Leiria?
Podem ver o castelo, podem comer como em poucas regiões do País, de uma maneira característica e tradicional, podem ver espectáculos, podem desfrutar da cultura, se houvesse um circuito cultural interessante para isso… podem ir à praia e podiam ir ao pinhal. São estratégias que têm de ser definidas. Mas ninguém vai ver uma feira medieval, porque isso há em todo o lado e em todo o mundo. Por que é que, em vez de se gastar não sei quanto numa feira medieval, não se aposta a sério na Feira de Maio, que é uma coisa com tradição e que pode chamar gente?
Como é que alguém que está em Lisboa assistiu à destruição do Pinhal de Leiria?
Foi um choque. Fiquei um bocadinho zombificado. Nem estava a perceber bem o que se estava a passar. Já não ia há dois ou três anos à praia do Pedrógão, onde passava sempre as férias e estive lá em Agosto, andei pelo pinhal e passado tão pouco tempo vi tudo a desaparecer… nem sei o que dizer. Não consegui aperceber-me ainda da dimensão do estrago. Ainda sinto que vou chegar lá e ver que há zonas em que ainda está tudo igual. Mas não está.
Perfil
Da chocolataria para a Vice
Natural de Leiria, Sérgio Felizardo, 43 anos, é o editor-chefe e director de conteúdos da VICE Portugal. Licenciado em Ciências da Comunicação, foi jornalista no Notícias da Covilhã eDiário XXI e em 2005 assumiu a co-direcção do IMAGO – Festival Internacional de Cinema Jovem, no Fundão, projecto que desenvolveu até 2009, altura em que rumou até Lisboa, onde ainda hoje vive. Ainda no Fundão, foi coordenador do projecto Frame a Frame“Depois de uma aventura de seis anos atrás do balcão de uma loja de chocolates, a Xocoa, regressei à comunicação social em 2015.” Afirmando que não é “muito saudosista”, sempre que vem a Leiria gosta de andar a pé pelo Terreiro e pela rua Direita, onde vivia a sua avó. “Agora acho sempre que a cidade é muito mais pequena e que é uma estupidez ir de carro da Av. Marquês de Pombal ao Maringá.”